Quando a Democracia é real?

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A democracia pode ser conceituada de maneira jurídica, política ou sociológica, sendo que cada um dos conceitos elaborados trará uma compreensão a respeito de seu alcance e valor. Apesar disso, nítido e notório é que se trata da única forma aceitável de governo1, posto que nela todos os homens são livres e iguais e têm a oportunidade de participar dos governos de seus países, concretizando o significado etimológico da palavra (demos = povo e kratos = poder2). Se dos tempos da Grécia Antiga até o presente a ideia e conceito de Democracia passou por diversas alterações3, o que se manteve inalterado e inalterável é que a Democracia só pode existir pelo exercício do poder pelo povo, quer seja de maneira direta ou por representação4 e que esse regime ou forma de governo, como afirma Cruz, “sempre teve como requisitos os direitos inalienáveis, deveres recíprocos e virtudes perseverantes dos indivíduos”5. No mesmo sentido, tem-se os ensinamentos de Dallari6:

“(...) consolidou-se a ideia de Estado Democrático como ideal supremo, chegando-se a um ponto em que nenhum sistema e nenhum governante, mesmo quando patentemente totalitários, admitem que não sejam democráticos”.

Se os conceitos e princípios mais modernos para considerar um Estado como “Democrático” incluem a existência instituições estáveis que assegurem a democracia; economia de mercado; igualdade de direitos e autodeterminação dos povos; Estado de Direito; e segurança jurídica, um ponto merece especial destaque: o respeito e proteção aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e às minorias. Isso porque, quando se fala de Democracia tem-se a errônea visão de que se trata da submissão de todos à vontade da maioria, o que não poderia estar mais distante da verdade: ainda que o referido regime de governo privilegie a representação popular e sua participação no exercício do poder, não significa que aqueles que divergirem da opinião preponderante deverão se amoldar a ela inexoravelmente, sob pena de extinção. Nesse sentido, pode-se afirmar que, dentre os muitos Estados que adotam a forma de governo democrática, infelizmente, o fazem apenas formalmente, posto que deixam a desejar quanto à qualidade da mesma ao não assegurarem os ideais de justiça, dignidade e igualdade como valores supremos, afastando-se da substância e metodologia inerentes a um regime democrático.

Por isso, a Democracia pode ser resumida na liberação dos indivíduos em relação a todas as formas de opressão, como ensina Burdeau7:

“(...) dentro do contexto de ideias no qual situa-se a democracia social, os direitos do homem não são mais apenas protetores da liberdade, mas exigências de ação do Estado visando a satisfazer as necessidades humanas que, se não forem satisfeitas, impedem ao homem de alcançar a plenitude de seu ser. (...) uma sociedade democrática é, pois, aquela em que se excluem as desigualdades decorrentes da área da vida econômica, em que a fortuna não é uma fonte de poder, em que trabalhadores estejam defendidos da opressão, em que cada um, enfim, possa fazer valer um direito a obter da sociedade uma proteção contra os riscos da vida”.

Logo, um regime democrático, como aquele estabelecido no Estado brasileiro, tem como base fundante a dignidade da pessoa humana e, portanto, o dever de proteger os direitos e garantias fundamentais, que nada mais são do que os direitos humanos positivados em sua ordem jurídica. Ademais, considerando que não existe Democracia apartada da Constituição8, o texto da Carta Magna nacional, em seu preâmbulo, determina como objetivo:

“(...) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)9” (grifos nossos)

Significa dizer que Estado brasileiro, ao adotar um modelo Democrático de Direito, comprometeu-se a primar pela construção de uma sociedade plural (ou seja, comprometida com a diferença e o multiculturalismo10 existente entre seu povo), livre e na qual haja a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Referido compromisso se coaduna com o princípio basilar da dignidade da pessoa humana e permite que as chamadas minorias se coloquem em pé de igualdade com a classe dominante11, ao passo que se propõem a garantir que essa minoria tenha o direito de ser diferente sem sofrer violação aos seus direitos de cidadania. Tal fato encontra respaldo nas palavras de Corrêa12:

“(...) a realização democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos a ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da vida. Isso exige organização e articulação política da população voltada para a superação da exclusão existente.”

Nesse mesmo escólio, tem-se os ensinamentos de Alain Touraine13 que afirma que:

“(...) o que define a Democracia não é, portanto, somente um conjunto de garantias institucionais ou o reino da maioria, mas antes de tudo o respeito pelos projetos individuais e coletivos, que combinam a afirmação de uma liberdade pessoal com o direito de identificação com uma coletividade social, nacional ou religiosa particular”.

Apenas assim, garantindo as particularidades de cada povo que vive sob sua proteção, é que um Estado Democrático “ganha legitimidade, não pela força, mas pela consciência dos cidadãos de se organizarem por regras que promovam o desenvolvimento e o progresso de todos, num processo de coesão e unificação do povo”14, posto que deve ser “um sistema de vida em que se assegure às minorias políticas a possibilidade de existência legal na vida nacional”15.

Por minorias, entende-se os grupos sociais que se distinguem dos demais por serem considerados inferiores e, em razão disso, são alvos de discriminação e preconceito social, o que interfere diretamente no exercício dos seus direitos e cidadania. Cumpre ressaltar que os grupo minoritários não são, necessariamente, numericamente inferiores ao resto da população do Estado. O conceito exclusivamente quantitativo – outrora utilizado - não é capaz de abranger a essência das chamadas minorias, que se consusbstancia na discriminação que as inferioriza e as coloca à margem em relação ao resto da população16. Isso porque, esse critério quantitativo não leva em conta a subjetividade indispensável para definição completa do que seria minoria. Para que haja essa abrangência, a conceituação dos chamados grupos minoritários deve se basear em uma série de elementos como o contexto social, político ou econômico em que tais grupos estão inseridos, bem como nas particularidades em cada um deles17, podendo ser revistas a qualquer momento, de modo a evitar a exclusão de determinados grupos minoritários e incluir posteriormente outros que venham a surgir. Desta forma, pode-se afirmar que se trata de um conceito aberto, que deve considerar sempre novas realidades e a mudanças com o decorrer do tempo, sendo necessário atentar-se para um conceito prima facie qualitativo.

Outro fator que é elementar à definição de “minoria” se refere à dificuldade enfrentada por estes grupos em ocupar posições de poder ou tomar decisões que possam influenciar nos rumos da sociedade. Até por isso que o critério quantitativo merece cair em desuso, já que mulheres, negros, idosos, crianças e adolescentes compõem atualmente número significativo da população mundial, não se encaixando no critério de “grupo numericamente inferior” adotado tradicionalmente18, mas claramente compõem grupos minoritários, que fazem jus à proteção especial de um Estado Democrático, a fim de que haja o reconhecimento da sua identidade e diferença, em prol do pluralismo social19. Na América Latina, em especial, posto que se reconhece a existência de significativa desigualdade social e pela marginalização de grandes camadas da população, bem como a falta de representatividade política das minorias, a violação sistemática dos direitos humanos, é indiscutível que a disparidade no tratamento dispensado aos mais diversos grupos que integram a totalidade do povo pode acarretar na escalada da violência de discriminação.

A importância de se definir e conhecer os grupos minoritários é de suma importância na promoção da democracia, da liberdade, da igualdade e do reconhecimento da identidade dessas minorias, evitando a sua discriminação que que prejudica o reconhecimento e o exercício dos direitos humanos de forma igualitária20. Urge destacar que a igualdade não deve ser limitada à igualdade perante a lei, mas deve ser vista sob uma perspectiva material, reconhecendo as identidades e diferenças dos grupos e visando a inclusão dos indivíduos pertencentes a eles. A promoção da igualdade material redimensionada pela diferença contribui para superar preconceitos e paradigmas na sociedade, evitar conflitos civis e concretizar a Democracia21 e só pode se dar através do desenvolvimento e implementação de políticas públicas que levem em consideração as condições especiais de cada minoria e, consequentemente, destinem especial proteção aos seus direitos. Caso contrário, estar-se-ia estimulando e fomentando a proliferação atos discriminatórios, segregação e não reconhecimento de minorias, obstando que os integrantes desses grupos minoritários exerçam seus direitos de forma igualitária, reduzindo as oportunidades de escolha, o que configuraria patente violação e desrespeito da dignidade humana, da liberdade e da democracia22.

Portanto, diante das considerações apresentada, depreende-se que não é possível haver a efetivação de direitos humanos, direitos e garantias fundamentais e, consequentemente, a existência de uma Democracia real, sem a aplicação da igualdade no seu sentido material. Deste modo, necessário que haja o reconhecimento da existência de minorias e, consequentemente, da necessidade de proteger os direitos inerentes a esse grupo, bem como a aceitação da aplicabilidade do direito à diferença, considerado, nesta linha, como um redimensionamento da igualdade material e como diretriz que possa viabilizar a concretização de condições melhores para os grupos minoritários23.


  1. CRUZ, Paulo Márcio. Democracia e Cidadania. Revista Novos Estudos Jurídicos. Ano V. nº 10. 2000. Pág. 111. “(...) consolidou-se a Democracia enquanto valor fundamental, vista como o regime mais adequado ao atendimento das necessidades humanas e que mais respeita a natureza do homem”.

  2. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Glossário Eleitoral. Brasília. 18/01/2023. Disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Janeiro/glossario-eleitoral-destaca-conceito-de-democracia. Acesso em 15/10/2023.

  3. DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Editora UNB. Brasília. 2001. Pág. 18/24.

  4. CRUZ, Paulo Márcio. Democracia e Cidadania. Revista Novos Estudos Jurídicos. Ano V. nº 10. 2000. Pág. 108/109.

  5. CRUZ, Paulo Márcio. Democracia e Cidadania. Revista Novos Estudos Jurídicos. Ano V. nº 10. 2000. Pág. 107.

  6. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. Editora Saraiva. São Paulo. 1985. Pág. 132.

  7. BURDEAU, Georges. La demcrácia. Trad. Hector Morales. Editora Ariel. Barcelona. 1970. Pág. 58/61.

  8. “[...] a realizabilidade da democracia, [orientada segundo diretivas axiológicas e normativas,] tem como exigência necessária e inarredável a efetividade da Constituição, o respeito à Constituição, o acato da força normativa de suas regras e princípios”. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Democracia, Constituição e princípios constitucionais: notas de reflexão no âmbito do Direito Constitucional brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 38, p. 05-17, jun. 2003. Pág. 6. Disponível em https://revistas.ufpr.br/direito/article/viewFile/1757/1454. Acesso em 16/10/2023

  9. BRASIL. Constituição Federal. Brasília. 1988.

  10. SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis. 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Pág. 26 “a expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades ‘modernas’.”

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  11. KOSOVSKI, Ester. Minorias e discriminação. In: SÉGUIN, Elida (Coord.). Direito das minorias. Rio de Janeiro, Forense, 2001. Pág. 2. BARBIERI, Samia Roges Jordy. Os direitos constitucionais dos índios e o direito à diferença, face ao princípio da dignidade da pessoa humana. Coimbra: Almedina, 2008. Pág. 22. “(...) o Estado Democrático de Direito traria em seu conceito todo o ideário de justiça, igualdade e dignidade, com um mínimo normativo capaz de fundamentar os direitos e pretensões da sociedade e também de princípios, também formais do Estado de Direito que são: soberania, cidadania, Dignidade da Pessoa Humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político encartados no mandamento constitucional.”

  12. CORRÊA, Darcisio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas. 4. ed. Ijuí: Unijuí. 2006. Pág. 217.

  13. TOURAINE, Alain. O que é a democracia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 2ª edição. Editora Vozes. Petrópolis. 1996. Pág. 26.

  14. VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. Pág. 24.

  15. FERREIRA. Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. Editora Saraiva. São Paulo. 1991. Pág. 87.

  16. NÓBREGA, Luciana Nogueira; JOCA, Priscylla. Direito das minorias à luz do direito fundamental à igualdade. XVIII COGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 2009, São Paulo. Anais eletrônicos. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2009. Disponível em: Anais do Conpedi - Fortaleza - PE. Pág. 681/709. Acesso em 17/10/2023.

  17. SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução Laureano Pelegrin. São Paulo: EDUSC, 1999. Pág. 44

  18. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de informação legislativa, v. 33, n. 131, p. 283-295, jul./set. 1996. Pág. 285

  19. NÓBREGA, Luciana Nogueira; JOCA, Priscylla. Direito das minorias à luz do direito fundamental à igualdade. XVIII COGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 2009, São Paulo. Anais eletrônicos. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2009. Disponível em: Anais do Conpedi - Fortaleza - PE. Pág. 681/709. Acesso em 17/10/2023.

  20. MORENO, Jamile Coelho. Conceito de minorias e discriminação. Revista USCS de Direito, São Caetano do Sul, ano X, n. 17, p. 141-156, jul./dez. 2009. Pág. 144. BOBBIO, Noberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Unesp, 2002. Pág. 108/109. BRITO FILHO, José Claudio Monteiro. Direitos humanos, cidadania, trabalho.José Claudio Monteiro de Brito Filho: Belém, 2004. Pág. 14/15.

  21. PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas global e regional. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.) Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Pág. 49. QUARESMA, Regina. Comentários à legislação constitucional aplicável às pessoas portadoras de deficiências. In: TEPERINO, Maria Paula (Coord.). Comentários à legislação federal aplicável às pessoas portadoras de deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2001, Pág. 03/04

  22. MOREIRA, Vital; GOMES, Carla Marcelino (Coord.). Compreender os Direitos Humanos: manual de educação para os direitos humanos. In: Universidade de Coimbra. Disponível em: < http://www.fd.uc.pt/igc/manual/pdfs/manual_completo.pdf. Acesso em 17/10/2023.

  23. PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas global e regional. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.) Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Pág. 49.

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