Responsabilidade civil do poder público por bala perdida

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INTRODUÇÃO

“Estado é responsável na esfera cível por morte de vítima de bala perdida”[1] é a decisão mais recente do Supremo Tribunal Federal que circula nos grandes jornais em circulação.

No caso, o STF entendeu ser a União responsável por morte de uma vítima de bala perdida disparada durante operação militar realizada em 2015 no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

A dúvida que fica é: estaria a referida decisão em consonância com o nosso ordenamento jurídico?

É o que se pretende responder no presente artigo por meio de uma metodologia descritiva e exploratória.

 

1.Da responsabilidade extracontratual do Estado pelos atos praticados pelos seus agentes.

A responsabilidade extracontratual da Administração Pública é aquela que não decorre de um contrato público, tal como o caso mencionado na introdução, onde uma pessoa é morta por uma bala “perdida” advinda de um tiroteio com a presença de membros das Forças de Segurança Pública.

Quanto ao tema, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:

"Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a obrigação que lhe incube de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos"[2].

Pelo conceito do autor supracitado, podemos perceber que o estudo da Responsabilidade Extracontratual se baseia na análise da responsabilização civil do Poder Público pelos danos decorrentes dos atos praticados pela Administração, sejam atos lícitos ou ilícitos, sejam atos omissivos ou comissivos.

Nesse sentido, a nossa Constituição atual, no parágrafo 6º do artigo 37, afirma:

"§6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Assim, conforme o Texto Constitucional supra, as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos atos praticados pelos seus agentes no exercício da função, ao menos como regra, de forma objetiva, ou seja, independentemente da comprovação de dolo ou culpa,

Desta feita, os atos praticados pelo agente público no exercício da função devem ser imputados ao próprio Poder Público, seja em face da Teoria do Órgão[3], seja em face do princípio da impessoalidade[4], seja em face do princípio da imputação volitiva[5].

Desse modo, no caso agora julgado pelo STF, quando os militares fizeram uma operação que resultou na morte de uma pessoa, quem efetivamente disparou contra uma pessoa foi o Poder Público, no caso, a União, pessoa jurídica de direito público da qual o Exército é apenas um órgão.

Entretanto, no caso agora julgado pelo STF existiu uma peculiaridade: A perícia foi inconclusiva sobre de onde o disparo saiu. Isso seria um motivo para excluir a responsabilidade estatal? O STF, no nosso ver corretamente, entendeu que não. Vejamos o porquê no próximo tópico. 

2.Da responsabilidade civil por bala perdida

Após o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1385315 foi fixada a tese de repercussão geral (Tema 1237) com o seguinte teor:

“1. O Estado é responsável, na esfera cível, por morte ou ferimento decorrente de operações de segurança pública, nos termos da Teoria do Risco Administrativo.

2. É ônus probatório do ente federativo demonstrar eventuais excludentes de responsabilidade civil.

3. A perícia inconclusiva sobre a origem de disparo fatal durante operações policiais e militares não é suficiente, por si só, para afastar a responsabilidade civil do Estado, por constituir elemento indiciário[6]”.

Desse modo, conforme se percebe, o STF entendeu que, comprovado que o fato danoso decorreu de uma bala perdida advinda de uma operação policial e/ou militar, o simples fato de não se ter certeza de onde veio o disparo não é o suficiente a excluir a responsabilidade objetiva do Estado, pois essa última decorre da Teoria do Risco Administrativo.

Nesse diapasão, a Teoria da Responsabilidade Objetiva se divide em outras duas, quais sejam: a Teoria do Risco Integral e a Teoria do Risco administrativo.

Pela Teoria do Risco Integral, não existe a possibilidade da exclusão da responsabilidade do Estado, o Estado responderá pelo dano em qualquer hipótese, mesmo que exista qualquer das chamadas causas excludentes de responsabilidade, quais sejam: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima ou de terceiros. Essa Teoria pode gerar o absurdo, como, utilizando o exemplo clássico, a responsabilidade de o Estado indenizar a família de uma pessoa que voluntariamente pule em frente de um carro oficial e venha a falecer, mesmo que o motorista do referido automóvel esteja respeitando todas as diligências necessárias e obrigatórias.

A Teoria do Risco administrativo, por sua vez, aceita as excludentes de responsabilidade já mencionadas: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima e de terceiro. Grifamos o termo “exclusiva” porque persiste a responsabilidade do Estado quando a culpa é concorrente, só que nesse último caso a responsabilidade do Estado é atenuada, sendo a responsabilidade repartida entre o Estado e a vítima culposa.

Visto isso e tal como julgou o STF, a teoria adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro foi a do Risco Administrativo, que aceita as ditas excludentes de responsabilidade, salvo no caso de danos nucleares, dano ambiental, atentados terroristas em aeronaves, DPVAT e, no caso de emprego público, acidentes de trabalho[7], situações nas quais a responsabilidade do Estado se dará com base na Teoria do Risco Integral.

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De qualquer forma, frise-se: pela Teoria do Risco Administrativo só haverá exclusão da responsabilidade estatal se o Poder Público efetivamente comprovar uma causa excludente de responsabilidade.

Desse modo, no caso de uma bala perdida, comprovada a operação realizada por forças de Segurança Pública e que teve como consequência a morte de uma pessoa decorrente de um disparo de arma de fogo, não há o que se falar em exclusão de responsabilidade do Estado pelo simples fato de não se saber de que arma a bala partiu, só haveria exclusão da responsabilidade do Poder Público se efetivamente ficasse comprovado que a bala partiu de uma arma de um agente não estatal, o que não aconteceu no caso julgado pelo STF no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1385315.

CONCLUSÃO

As forças de segurança pública prestam um serviço essencial para o país, porém suas atividades devem ser realizadas em conformidade com a Constituição, com as leis e com os princípios que regem a Administração Pública, como, por exemplo, o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana.

O presente trabalho, no entanto, focou no estudo da responsabilidade civil extracontratual pela morte causada em decorrência de balas perdidas em operações realizadas pelas polícias e Forças Armadas.

Diante de como julgou o STF e de tudo explanado até aqui, podemos concluir: as balas perdidas decorrentes de operações estatais e que encontram uma vítima devem gerar a responsabilidade estatal ainda que não se saiba exatamente de qual arma a bala saiu e salvo se ficar comprovada alguma excludente da responsabilidade estatal.

Sendo assim, agiu com o acerto o STF, pois, como disse o Ministro Flávio Dino: “as balas pedidas não são perdidas, pois elas sempre acham os mesmos”[8].

 

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 5ªed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.



[1]Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-abr-11/estado-e-responsavel-na-esfera-civel-por-morte-de-vitima-de-bala-perdida-diz-stf/

[2]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2004. p.917.

[3]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.684.

[4]ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.71.

[5]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.13.

[6]Fonte:https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE1385315.BalaperdidaFSP.pdf

[7]MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 5ªed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.376.

[8]Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/405327/balas-perdidas-acham-sempre-os-mesmos--critica-ministro-flavio-dino

Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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