Desafios teóricos e práticos dos planos de cultura

18/04/2024 às 15:56
Leia nesta página:

Em “Política e Cultura”, Norberto Bobbio propõe importante diferença entre “a política da cultura, como política dos homens [e das mulheres] de cultura em defesa das condições de existência e de desenvolvimento da cultura” e “política cultural, ou seja, à planificação da cultura por parte dos políticos” [1]. A primeira, portanto, é preponderantemente social, e a outra, consideravelmente estatal.

Entre nós, em termos de planejamento cultural, a Constituição Brasileira, que se rege pela determinação de que o Estado é o ‘garantidor’ dos direitos culturais (Art. 215), foi alterada (2005) para incluir que “a lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual”, visando dois objetivos principais: “o desenvolvimento cultural do País” e a “integração das ações do poder público” [2] na seara, para atingir “metas”, cujos conteúdos matriciais serão vistos mais adiante.

Entender o que os constituintes reformadores almejam com o PNC não é algo simples, por causa de barreiras (provavelmente involuntárias) propostas para o Plano, a começar pelo significado da expressão “desenvolvimento cultural do país”, conceito considerado por Teixeira Coelho como “altamente polêmico”, pois se for percebido no sentido de “ampliar quantitativamente a área de influência da cultura erudita, as demais culturas correm o risco de verem-se cerceadas. Se, por outro lado, por desenvolvimento designa-se um desdobramento da produção cultural graças a financiamentos, equipamentos e edificações, o perigo está no privilegiamento do que se considera a casca da questão cultural em detrimento de seu fulcro, a prática cultural propriamente dita” [3].

O mesmo autor vislumbra que o sentido remanescente “na expressão ‘desenvolvimento cultural’ é o fato de relacionar-se com um aumento quantitativo da produção e do consumo cultural que pode ser medido em números sem que seja possível avaliar com tranquilidade em que isso contribui para a dinâmica cultural total” [4].

De fato, a segunda e última aparição da perturbadora expressão na Constituição de 1988, a associa à faceta capitalista das atividades culturais, precisamente quando, no Art. 219, estabelece que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o ‘desenvolvimento cultural’ e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal” [5].

Também não deixa de provocar reflexões o objetivo da “integração das ações do poder público”, porque, segundo o Dicionário Oxford [6], integrar significa “incluir um elemento num conjunto, formando um todo coerente” ou “adaptar algo a um grupo”. Aqui, o cuidado é para que a ideia de integração não aniquile ou prejudique a diversidade, alimentada em uma federação, como é o caso do Brasil, precisamente pelas diferentes formas com que a expressão cultural se apresenta, tanto em suas manifestações quanto nos métodos de organização e financiamento.

Sob tais dificuldades e cautelas, em termos constitucionais, as metas a serem inseridas nos planos culturais devem ter conexão com a “defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais; formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; democratização do acesso aos bens de cultura; e valorização da diversidade étnica e regional” [7].

Se bem observada, a dimensão constitucional do PNC praticamente repete, ainda que de forma mais imprecisa, elementos que constam na Constituição Federal desde seu texto originário, acentuadamente nos incisos III a V do Art. 23, de acordo com os quais, “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; proporcionar os meios de acesso à cultura [...]” [8].

A única novidade da Emenda do PNC, relativamente ao que já havia na Constituição, portanto, refere-se a uma atividade-meio, que é a “formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões”, o que mais uma vez indica um caminho secundário a ser percorrido pelo Plano Nacional de Cultura e seus congêneres estaduais e municipais, considerando a determinação de que “constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação”, dentre tantos outros elementos, os “planos de cultura” [9].

É nítido que as ideias de “desenvolvimento cultural do país” e “integração das ações do poder público”, conforme acima localizadas, são desejavelmente aplicáveis à faceta daquilo que se conhece por indústria cultural, cuja lógica de funcionamento é reconhecidamente amigável às regras da economia, porém, potencialmente inadequadas, em distintos graus, a outros segmentos culturais, sobremodo aqueles cuja função social está exatamente em estimular o comedimento de mudanças e em lembrar nossas responsabilidades relativamente às tradições. Evidenciar esses problemas não pode levar à conclusão de que o setor cultural seja infenso aos planejamentos, de modo algum, porém, que demanda, para tanto, percepções e métricas próprias, que necessariamente são variáveis de um segmento a outro.

Como então interpretar os objetivos constitucionais atribuídos ao PNC, considerando o dogma jurídico de que a Constituição não possui palavras inúteis? A resposta pode vir do próprio bloco de constitucionalidade, ou seja, de normas que mesmo não estando na Lei Maior, dela fazem parte, como é o caso dos documentos internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu todo direcionada à “paz”, e especificamente, no que concerne aos direitos culturais, programada para que cada ser humano construa a sua “dignidade”, bem como o “livre desenvolvimento da sua personalidade”, para o que deve contar com o “esforço nacional” e a “cooperação internacional” (Art. 22) [10].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Conclusivamente, diversidade, paz, dignidade humana, desenvolvimento da personalidade, esforço coletivo e cooperação transfronteiriça são expressões que indicam fundamentos, valores e fins para a construção dos planos de cultura, cujas metas desenvolvimentistas podem ter variações extremas de uma localidade a outra, só podendo ser legitimamente traçadas no ambiente em que se possa “participar livremente da vida cultural da comunidade” [11].

Notas:

[1] BOBBIO, N. Política e Cultura. São Paulo: Ed. UNESP, 2015, p. 91.

[2] BRASIL. Online: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[3] TEIXEIRA COELHO. Dicionário Crítico de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2012.

[4] Idem.

[5] Ver nota de rodapé nº 2.

[6] Online: https://acesse.one/DyT6k

[7] Ver nota de rodapé nº 2: Art. 215, § 3º.

[8] Ver nota de rodapé nº 2.

[9] Ver nota de rodapé nº 2: Art. 216-A, § 2º, v.

[10] Online: https://encr.pw/3h3P4

[11] Ver nota de rodapé nº 10.

Sobre o autor
Humberto Cunha Filho

Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos