Introdução
Desde os primórdios e em diversas civilizações, a questão da aplicabilidade da lei no contexto sociopsicológico de púberes e impúberes infratores tem provocado infindáveis discussões acerca do que fazer e de como fazer. Para que possamos realizar uma análise desse assunto — que é demasiada e exaustivamente divulgado em todos os meios de comunicação existentes no país, e tem também repercussão global —, devemos nos atentar aos meios científicos de quantificação dos dados, e à correlação deles às parcelas crescentes dos índices de criminalidade e delinquência juvenil — a respeito dos quais, como se diz no jargão jurídico, “contra fatos, não há argumentos”. E esses fatos, inclusive, estão "transbordando a bacia” do desregramento social.
Sendo assim, iremos sopesar questões de cunho jurídico, político e psicossocial, a respeito das quais não se encontra interesse algum em abarcá-las e integrá-las. Vivemos num contexto político em que o esforço e o direcionamento estratégico na questão social e na aplicação do dinheiro público não qualificam nossos legisladores, administradores e governantes a "gastarem o cartucho” naquilo que não lhes trará subsídios nem os permitirá angariarem os seus sonhados sufrágios (votinhos).
Ao adentrarmos neste assunto tão meticuloso, referir-me-ei aos ensinamentos do magnânimo Júlio Fabbrini Mirabete, que sempre buscou proferir dentro da doutrina penal a sua sapiência:
“De acordo com a teoria da imputabilidade moral (livre-arbítrio), o homem é um ser inteligente e livre, podendo escolher entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, e por isso a ele se pode atribuir a responsabilidade pelos atos ilícitos que praticou. Essa atribuição é chamada imputação, de onde provém o termo imputabilidade, elemento (ou pressuposto) da culpabilidade. Imputabilidade é, assim, a aptidão para ser culpado. [...] Ninguém pode negar que o jovem de 16 a 17 anos, de qualquer meio social, tem hoje amplo conhecimento do mundo e condições de discernimento sobre a ilicitude de seus atos." (1997, p. 27)
Vemos que o jurista sustenta a discussão sobre a maioridade penal afirmando que, de acordo com a teoria da imputabilidade moral, indivíduos de 16 a 17 anos possuem pleno discernimento sobre a ilicitude de seus atos. Essa perspectiva enfatiza a capacidade cognitiva e moral dos jovens nessa faixa etária, argumentando que eles são sim capazes de fazer escolhas conscientes entre o certo e o errado, o que justificaria a atribuição de responsabilidade por seus atos ilícitos.
Por outro lado, a criminalidade juvenil e a redução da maioridade penal no Brasil refletem um dilema multifacetado. Enquanto alguns, como o professor citado, advogam por uma abordagem punitiva, argumentando que os jovens têm discernimento total sobre seus atos, outros enfatizam a necessidade de políticas sociais e educacionais preventivas. Percebemos nesse debate que a redução da maioridade penal não é uma solução única e enfrenta críticas por aumentar a superlotação carcerária e a criminalização dos jovens. Ao mesmo tempo, as leis atuais frequentemente falham na ressocialização dos jovens infratores e na abordagem das raízes da delinquência juvenil. Em suma, as leis brasileiras ainda não oferecem uma resposta completa para esse desafio complexo.
Mesmo com todo o nosso aparato jurídico — o Código Civil, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e as alterações do Código Penal —, o problema persiste. Desse modo, a questão cerne não é reduzir a maioridade, que na prática já foi reduzida, mas discutir o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, corrigir e pôr em funcionamento, ater-se em como realizar um aperfeiçoamento da recuperação dos menores delinquentes.
Podemos afirmar que toda essa problemática nunca terá fim, caso não se busque a nada estática razão para essa equalização. No Brasil, como em todos os países do antigo terceiro mundo (principalmente os quais não têm sua origem na "ética protestante" e no "espírito do capitalismo" de Max Weber), sempre se ataca os efeitos ao invés de buscar a verdadeira causa. Não possuímos, por exemplo, políticas que atendam às necessidades básicas de higiene (os fatores sociais e motivacionais da pirâmide de Maslow). Aqui, o Estado deveria copiar um modelo igual aos processos de qualidade total e os patamares de Maslow existentes nas empresas com ISO-9000; no entanto, há décadas que essas necessidades básicas ficam a terceiro e quarto planos, ou seja, esquecidas nas gavetas da burocracia.
As raízes do problema
Observamos que os índices de violência entre menores acentuam-se na curva criminal, e se verificados em regiões de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) sofrível, a sua hediondez ultrapassa a das ações delitivas dos adultos médios. Entre os fatores que motivam e agravam todos os episódios de mazela social e que fatalmente levam à delinquência, visto que são jovens e crianças que vivem em e acostumam-se a uma realidade hedionda, os descritos abaixo são os que mais contribuem para a queda de um no abismo da miserabilidade:
1) Êxodo rural: não existe nenhuma política básica que promova a proteção das pequenas famílias que em algum momento viveram, ou ainda vivem, da agricultura de subsistência; chefes de família migram para as grandes regiões urbanas sem nenhuma condição de sobrevivência e incapazes de atenderem aos pré-requisitos para sua inserção no contexto moderno; atualmente, até a construção civil, que era o único recurso que existia para o migrante desqualificado, está rigorosamente filtrando a sua seleção com o advento dos processos da Qualidade Total.
2) Todas as engrenagens da modernização: tecnologia da informação, globalização, reengenharia, a busca desenfreada pela estética perfeita e ideal etc., facilitaram o despejo, nas periferias das cidades, de milhares de humanos socialmente indesejados e rejeitados.
A questão do êxodo rural
Associada às questões apresentadas anteriormente está a situação do migrante rural no Brasil. Atraído pelas estruturas razoáveis de vida existentes nos grandes centros urbanos, a forte migração do meio rural para o urbano sem os aparatos de acolhimento necessário — como políticas públicas de moradia, saúde e educação — foi bastante intensa nas últimas décadas e criou uma verdadeira catástrofe nas cidades do país. O êxodo rural contribuiu para o crescimento rápido e desordenado das médias e grandes cidades, que hoje sofrem com graves problemas de infraestrutura, saneamento, habitação, transporte etc.
Atualmente, os nossos problemas sociais talvez se equiparem aos vividos à época da Revolução Industrial na Europa, porém em uma escala maior e mais complexa. As principais questões daquela época envolviam a alta densidade populacional e o crescimento urbano desordenado, a comoditização do sistema produtivo e do trabalho humano, com as condições precárias do chão das fábricas e a poluição ambiental, além do desemprego em massa e das suas consequências sociais. Hoje, somam-se a elas o surgimento de áreas urbanas degradadas como as cracolândias e as favelas, em constante expansão, o consumo de drogas e a influência das gangues, milícias e demais organizações criminosas que controlam o tráfico de entorpecentes e outros ramos de atividades ilícitas.
Ressalta-se que o êxodo rural, por si, não é um fenômeno social só do Brasil, tendo ocorrido em diversos lugares do mundo e estando ligado, basicamente, à transformação econômica e à modernização tecnológica dos meios de produção. Portanto, não é necessariamente algo ruim. O problema aparece onde o Estado não conseguiu acompanhar essa evolução tecnológica, não realizando os investimentos necessários em educação e profissionalização das massas desempregadas que passaram a povoar os espaços urbanos.
No Brasil, no contexto analisado a única solução que pôde dar eficaz assistência às empresas foi o Sistema S, integrado pelo SENAI, pelo SENAC, pelo SESI, pelo SESC e por outros. Além da qualificação profissional, o Sistema S também tem o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, através da oferta de serviços à população, como escolas, cursos técnicos e profissionalizantes, especialização e capacitação, atividades culturais, programação de eventos, centros esportivos e de pesquisas. As nove entidades do Sistema S são mantidas com recursos de empresas de setores correspondentes, que incidem na folha de pagamento recolhida pelo governo e repassada às entidades.
Eu sou resultado do Sistema S, fiz o meu primeiro curso no SENAI e no SENAC. Foi uma experiência que transformou a minha vida, pois foi o curso profissionalizante que me tirou da área rural e periférica. O mesmo acontece com milhares de jovens no Brasil que participam desse programa. Os setores do Sistema S têm uma importância social muito grande e ainda atuam em diversas outras pautas. Quem conhece o sistema sabe que ele funciona muito bem, que tem resultados excepcionais no nosso país, e que precisa ser copiado e reproduzido. Já em relação aos brasileiros que ainda vivem em meio rural, penso que visando evitar a intensificação do colapso nas regiões metropolitanas, o Estado deveria proporcionar melhorias contínuas para essa população no campo. No entanto, carecemos de uma gerência pública que motive e proporcione benefícios eficazes aos pequenos grupos familiares da agricultura de subsistência, de modo a melhorar sua qualidade de vida nas regiões em que habitam.
Diante desses itens, nota-se que a realidade social se impõe desde muito cedo às mentes desprovidas de proteção psicológica de menores em situação de vulnerabilidade, fazendo com que se sintam desiguais e realizem uma migração desesperada: a para as ruas. A infância, sem ter um espelho, um norte, torna-se um subproduto do meio escuro e triste em que vivem. Ficam expostos às mais diferentes e perniciosas sensações, adquirem uma precoce e forçada independência e adentram sorrateiramente aos pequenos delitos. Em sua maioria, são minorias e/ou estão em situação irremediavelmente pobre, o que potencializa sua revolta e indignação.
Na minha ótica, todo esse problema está na falta da estrutura familiar. Não existindo esteio que as suportem — mães e pais que não possuem a mínima condição psicológica de ter e criar filhos —, tornam-se também pais, precocemente, sem instrução ou informações sobre como é a formação do subconsciente de uma criança. É um efeito dominó: despeja-se crianças ao deus-dará e a única frase que se escuta é “Isto é um problema do governo”.
A herança maldita
Herdamos a estrutura jurídica das antigas ordenações portuguesas. Também delas, muito embora vivamos num país laico, recebemos o legado horroroso das codificações eclesiásticas, que em sua raiz hermenêutica e vocação hierárquica está um perfil de terrorismo psicológico: resquícios da influência do Grão Inquisidor, de seus métodos, de sua temeridade e de seus atos. Essa herança é o que ajuda, em nossos tempos, na efetivação do assédio moral nas relações de trabalho.
No Brasil essa influência evidentemente negativa desse Grão Inquisidor reduz a cientificidade do Estado e corrói a sua coesão. É ela que nos impede de erradicarmos problemas sociais cada vez mais frequentes, como a miséria, o aumento de pessoas em situação de rua (incluindo menores), o despejo de humano descartados pelo mercado de trabalho e a falta de fomento à reinserção laboral de trabalhadores desqualificados para os novos empregos. O mundo político, por sua vez, apenas procura (e sempre acha) um culpado (a depender da sua ideologia) e o joga aos leões (a execração pública feita pela mídia), criando narrativas que induzem ao esquecimento do real problema... Por isso, cabe a pergunta: o quão necessário é refletir sobre os artifícios que podem resolver essa conjuntura de problemas em sua origem?
Por fim, de nada adiantam as mudanças na Legislação, as teses, os doutorados. Tudo fica apenas na teoria, nada é prático. Parafraseando o professor Stephen Kanitz: “Chega de iniciativas, precisamos de acabativas”.
SMJ