Desde os primeiros instantes do ingresso na graduação, aprende-se que o direito é dinâmico, vivo, em constante mutação, pois reflete os valores sociais vigentes ao seu tempo, de modo que, conforme evoluem os valores sociais, evolui, também, o regramento jurídico acerca deles: esta é a síntese da Teoria Tridimensional do Direito, que tem como expoente Miguel Reale.
De todos os ramos do direito, é certo que um dos mais dinâmicos é o Direito das Famílias, o que fácil se constata quando da comparação da ideia de relações familiares dos dias atuais com aquela de décadas passadas.
Esta mudança de paradigma jurídico se atribui, especialmente, ao advento da Constituição de 1988, que impôs a releitura de todo ordenamento jurídico-privado à luz da dignidade da pessoa humana (TEPEDINO, 2004).
Desde então, tutela-se a família não como instituição jurídica com fim em si mesma, mas visando a satisfação e a realização pessoal de seus membros, que usam dela para viver o afeto e buscar a felicidade com os seus (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).
Enquanto meio de realização pessoal e de desenvolvimento da personalidade, a família passa a ter como essência o vínculo afetivo entre seus membros; ocorre aquilo que Villela, antes mesmo do advento da Constituição de 1988, chama de “desbiologização” dos vínculos familiares. Surge uma nova forma de parentesco civil, denominado de socioafetivo, que une sujeitos como família, não pela origem sanguínea comum, mas sim pelo afeto que sentem um pelo outro (1979).
A temática da parentalidade socioafetiva, reforçando a ideia de “desbiologização” dos vínculos familiares, a cada dia mais, consolida-se. Na doutrina, merece destaque as teses firmadas nas Jornadas de Direito Civil, a começar pelo enunciado n. 103, da I Jornada:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
Da mesma Jornada, sobre parentesco socioafetivo há, também, o enunciado n. 108: “no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”.
Trata-se de louvável enunciado, que reflete o princípio da igualdade entre filhos, textualizado no art. 227. §6º, da Constituição Federal, segundo o qual não deve haver discriminação de filhos, independentemente de serem oriundos de contexto de conjugalidade ou de extraconjugalidade; de serem fruto de relacionamento atual ou anterior dos genitores; independentemente do método de concepção, natural ou artificial; bem como da natureza do vínculo de filiação – biológico, afetivo, ou civil.
A garantia do tratamento isonômico impõe o dever dos genitores de tratar de modo igualitário os filhos, garantindo-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além da preservação de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; cuida-se do dever parental de cuidado dos genitores com os filhos, previsto no art. 227, caput, da Constituição Federal.
Na edição de 2022-2023, dos enunciados do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias (IBDFAM), estabeleceu-se o enunciado n. 6, segundo o qual “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental” (2023).
Em outros termos, o enunciado do IBDFAM, que também se funda no princípio constitucional da igualdade entre filhos, dispõe que o dever de cuidado parental abrange todas as filiações, inclusive, as socioafetivas, vinculando os pais socioafetivos à totalidade das obrigações impostas no dispositivo constitucional acima transcrito.
Na III Jornada de Direito Civil, em seu enunciado n. 256, aprovou-se a seguinte tese: “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
Sintetizando, quando determinado sujeito se considera pai de outrem, e, este se considera filho daquele, tendo em vista sentimento de afeto que os une, há vínculo de parentesco, no caso, filiação socioafetiva. Nisto consiste “a posse do estado de filho”, acima mencionada, que evidencia o vínculo de parentesco socioafetivo entre pai e filho (TARTUCE, 2019).
Ainda sobre a posse do estado de filho, ressalta-se o enunciado n. 7, da edição de 2022-2023 dos enunciados do IBDFAM, segundo o qual “a posse de estado de filho pode constituir paternidade e maternidade”.
A princípio, o conteúdo deste enunciado pode parecer óbvio, tendo em vista que com o declínio do pátrio poder, isto é, da sobreposição do homem no contexto familiar, como figura do “chefe de família”, a mulher passou a viver, na lógica jurídica, a realidade familiar em pé de igualdade com aquele (MADALENO, 2018).
Ocorre que para a temática da filiação socioafetiva a premissa da existência da mãe socioafetiva, da mãe não-biológica é, em muito, relevante, isto porque em razão de ser consolidado o costume de os filhos, no pós-relacionamento dos genitores, residirem com a mãe biológica, nas situações jurídicas de fato é mais comum se verificar a figura do pai socioafetivo.
Conforme dito, o direito das famílias é dinâmico, estando em constante transformação para acompanhar a evolução dos valores sociais. É por isso que atualmente se verifica diversas hipóteses de maternidade socioafetiva possíveis, como, por exemplo, o contexto em que o pai, no pós-relacionamento com a mãe dos filhos, ingressa em relacionamento outra mulher, considerada como mãe pelos seus filhos do relacionamento passado; outra hipótese de maternidade socioafetiva que cada dia mais se vê é aquela da mãe envolvida em relacionamento homoafetivo com outra mulher, também considerada como mãe pelo seu filho de relacionamento passado.
Na jurisprudência, o STF já reconheceu, em sede de repercussão geral (informativo de jurisprudência n. 840), que a parentalidade socioafetiva constitui, para todos os fins, parentesco civil.
Recentemente, o STJ proferiu decisão que trouxe novos paradigmas à temática ora refletida, ao reconhecer filiação socioafetiva, post mortem, de tio e sobrinha (IBDFAM, 2023).
Quando contava dois anos de idade, a sobrinha se mudou, com sua mãe biológica, para a casa do tio – irmão de sua mãe. Desde então, este a criou como se fosse pai dela, dedicando-lhe afeto, além de custear a educação, compra de roupas, encaminhá-la profissionalmente.
Maria Berenice Dias, advogada atuante no caso explica que como se trata de situação em que tio criou sobrinha, filha de sua irmã, não havia a possibilidade do reconhecimento da paternidade porque, se o nome dele fosse para a certidão de nascimento dela, seria uma relação incestuosa entre dois irmãos (Idem.).
Dias esclarece, também, que não se trata de adoção póstuma, pois para a ocorrência dela se faz necessário que, em vida, o adotante, expressamente, manifeste o vínculo, o que não foi feito pelo tio. Todavia, tal circunstância não obsta a declaração da filiação socioafetiva post mortem (Idem.).
Cuida-se de decisão inovadora, em que, claramente, se verifica o fenômeno da “desbiologização” dos vínculos familiares.
REFERÊNCIAS
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: Direito das Famílias. São Paulo: Saraiva, 2011.
IBDFAM. STJ reconhece filiação socioafetiva post mortem entre tio e sobrinha. Notícias. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/10816/STJ+reconhece+filia%C3%A7%C3%A3o+socioafetiva+post+mortem+entre+tio+e+sobrinha+. Acesso em: 31 mai. 2023.
IBDFAM. Enunciados doutrinários do IBDFAM: 2022-2023. Belo Horizonte: IBDFAM, 2023. 90 p. ISBN 978-85-69632-07-8. Disponível em: https://ibdfam.org.br/upload/ebook/ebook_enunciados.pdf. Acesso em: 7 nov. 2023.
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, mai. 1979.