O Estado de Necessidade e a Lei Penal

25/04/2024 às 19:38
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O Estado de Necessidade e a Lei Penal

Sumário. Constrangido da necessidade, pode o homem praticar ações que o elevem e edifiquem, e também o aviltem e infamem, como as que caracterizam crimes; o furto, por exemplo. O autor de furto famélico, entretanto, esse alguma vez é poupado ao jugo férreo da lei (e por bom fundamento).

I. A necessidade faz do homem o que quer, já o reconheciam os antigos jurisconsultos romanos ao cunhar a parêmia: “Necessitas caret lege” (em vulgar: A necessidade não conhece lei). Mas, para que opere como justificativa legal, é mister se lhe prove cabalmente a ocorrência.

Àquele que alega a descriminante do estado de necessidade toca-lhe provar o seu requisito principalíssimo: situação de perigo.1

Em pontos de estado de necessidade, ocorre o mesmo que a respeito da legítima defesa: ainda que se não apresente com impecável nitidez, não sendo razoável negá-la, deve o juiz reconhecer-lhe a existência (cf. Rev. Tribs., vol. 171, p. 97).

Faz muito ao caso a lição do insigne Prof. Goffredo Telles Junior:

“Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução” (A Folha Dobrada, 1999, p. 163).

II. Nas esferas da Justiça Criminal é frequente a alegação de que o réu merecia absolvido porque praticara em estado de necessidade o crime a que respondia.

Por emprestar credibilidade às suas palavras, sói afirmar que não tinha como acudir à fome, por isso fizera mão baixa em alguns produtos do mercadinho da periferia da metrópole.

Tal defesa, após atenta e criteriosa análise da prova dos autos, o juiz da causa não raro acolhe de boa sombra. Tratar-se-ia de caso de furto famélico, em que o agente, à conta da indigência e escassez de tudo, subtrai coisa alheia para sua alimentação ou de outrem.

Nélson Hungria — que, na seara do Direito Penal, é sempre quem deita a melhor luz — deu esta lição: diz-se famélico “o furto praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome (coactus fame) pela inadiável necessidade (propter necessitatis vim) de se alimentar” Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 33).

Destarte, embora reprovável toda a violação da ordem jurídica, vai bem avisado o juiz que, no caso de furto cometido em tais circunstâncias (e armando ao fito de atenuar a aspereza da lei), não trepida em exarar decreto absolutório em prol do réu.2 Sua decisão terá por si não apenas o influxo da equidade e de acrisolado sentimento de justiça, mas também o abono de reputado magistério da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais.

Damásio de Jesus, em seu livro prestantíssimo — Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 560; Editora Saraiva —, escreveu: “No furto famélico (em estado de necessidade) não há crime pela exclusão da ilicitude”.

Isto mesmo consta do magistério de José Frederico Marques:

“Em determinadas situações, a inexigibilidade de outra conduta torna esta lícita, excluindo assim a antijuridicidade do fato típico; é o que ocorre com o estado de necessidade, o qual existe, consoante se vê do art. 24 do Código Penal, quando não era razoável exigir-se do agente o sacrifício do direito próprio ou alheio” (Curso de Direito Penal, 1956, vol. II, p. 228).

Àquele que, firme no aforismo “Necessitas non habet legem” — A necessidade não tem lei —, alega em sua defesa o estado de necessidade, cumpre demonstrá-lo exaustivamente, senão cairá na conta de réu confesso. Mas, uma vez comprove não havia outro meio de que se pudesse valer para arredar perigo atual ou iminente, será força reconhecer-lhe a existência da causa de exclusão da antijuridicidade do fato que praticou.3

A razão por que, em tais casos, não será muito afastar da cabeça do réu o gládio da Justiça, deu-lha Carlos Ayres de Britto, culto Ministro do Supremo Tribunal Federal e laureado poeta:

“Aquele que tem fome

fica tão prisioneiro de sua fome

que não lhe sobra liberdade

para mais nada” (A Pele do Ar, 2a. ed., p. 108).

III. Por esse mesmo estalão — que se pudera chamar de equidade — decidiu o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, conforme se verifica do acórdão abaixo reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Alçada Criminal

Décima Quinta Câmara

Apelação Criminal nº 1.302.861/3

Comarca: Cardoso

Apelante: JCS

Apelado: Ministério Público

Voto nº 3908

Relator

– A alegação do réu de que praticara o fato em estado de necessidade — art. 37, nº I, da Lei nº 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente) —, ao pescar mediante a utilização de petrecho não permitido (rede), é atendível, por ilação lógica imediata, se os autos revelam que se tratava de homem rústico, desempregado e com prole numerosa por sustentar. Àquele que nada tem de seu é lícito recorrer às dádivas da Natureza.

“A luta pela existência é a lei suprema de toda a criação animada; manifesta-se em toda a criatura sob a forma de instinto da conservação” (Ihering, A Luta pelo Direito, 20a. ed., p. 17; trad. João Vasconcelos).

– Quem haverá, de ânimo tão obdurado
e insensível, que faça rosto àquela sublime apóstrofe do Evangelho: “Qual de vós porventura é o homem que, se seu filho pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou porventura, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente?” (Mt 7, 9-10)

– As sutilezas do direito não constituem o direito (“Apices juris non sunt jura”).

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da Comarca de Cardoso, condenando-o à pena de 1 ano de detenção, substituída por restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade), por infração do art. 34, parág. único, nº II, da Lei nº 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente), combinado com o art. 65, nº III, alínea d, do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, JCS.

Nas razões de apelação, apresentadas por diligente causídico, afirma que o ilustre Magistrado, diferentemente do que sucedia nas mais das vezes, não preiteara, no caso, homenagem plena ao Direito e à Justiça.

Acrescenta que o conjunto probatório não se afigurava apto para autorizar a condenação do réu: à uma, porque praticara o fato sob o império de causa excludente de ilicitude jurídica; à outra, por falhar a tipicidade penal (o petrecho de pesca utilizado atendia à prescrição da lei).

À derradeira, argumenta a combativa Defesa que o réu, sujeito rústico e de pouquíssima ilustração, ainda não atinara com a vigência da recente Lei do Meio Ambiente.

Espera, destarte, que a colenda Câmara o absolva (fls. 106/108).

A douta Promotoria de Justiça respondeu-lhe ao recurso, que repeliu, e do mesmo passo propugnou a manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 110/111).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em incisivo e criterioso parecer da Dra. Ana Margarida M. Junqueira Beneduce, opina pelo improvimento do recurso (fls. 119/120).

É o relatório.

2. Caiu o réu nas malhas da Justiça Criminal porque, aos 27 de novembro de 1999, pelas 7h, no lago do reservatório da Usina Hidroelétrica de Água Vermelha, no município de Cardoso, policiais florestais surpreenderam‑no a pescar mediante a utilização de petrechos proibidos (redes).

Instaurada a persecução penal, transcorreu o processo conforme os preceitos legais; ao cabo, a. r. sentença de fls. 96/97 afastou os argumentos expendidos pela Defesa — ignorância da lei, atipicidade do fato e estado de necessidade, conforme o art. 37, nº I, da Lei nº 9.605/98 — e decretou a condenação do réu. Este, inconformado com o desfecho da lide penal, vem à Superior Instância, assistido de advogado, à espera de absolvição.

3. Consta dos autos que o réu, mediante utilização de rede, pescara cerca de 4 kg de peixes (pacus e corvinas).

Não era pescador profissional, senão simples amador; por isso, lavrou-lhe a Polícia Florestal auto de infração (fl. 6).

O órgão do Ministério Público, esse foi servido dá-lo incurso nas sanções do art. 43, parág. único, nº II, da Lei nº 9.605/98, que proíbe a pesca mediante rede, exceto se profissional o pescador.

A r. sentença de fls. 96/99 condenou o réu José. E os fundamentos a que se arrimou lhe conferem mesmo grande força e expressão: com rigor de lógica jurídica, seu distinto prolator deu de mão aos argumentos expostos pela Defesa, especialmente ao que entendia com a excludente criminal do estado de necessidade invocada pelo réu. É da r. decisão este passo: “A necessidade exige prova cabal, inocorrente in casu, restando apenas a isolada palavra do acusado, razão pela qual afasto a aplicação do inciso I do art. 37 de Lei nº 9.605/98” (fl. 97).

Nenhuma testemunha — que nenhuma indicara — compareceu a Juízo para abonar a vida social do réu. Ao próprio réu, nas oportunidades em que se manifestou (fls. 31 e 66), esqueceu-lhe — talvez porque não perguntado ao respeito — discorrer de eventuais dificuldades com que se abraçasse.

Declarou, no entanto, o que era suficiente para inculcar a aspereza de sua condição: pedreiro, com idade de 48 anos, estava sem serviço havia mais de 8 meses (fl. 66); por fim, vivendo sob o regime de união estável, era pai de seis filhos (fl. 34).

Em seu interrogatório, ao demais, afirmou, sem desmentido, nunca fora antes processado (fl. 66 v.).

4. Tenho por mui arrazoado o clamor do réu contra a sorte que lhe foi reservada nos autos do processo a que respondeu, por haver pescado com rede, petrecho cuja utilização lhe não era permitida, mas somente a profissionais (fl. 6).

Remeto à sombra a justificativa com que policiais o deram incurso em juízo de censura — estava a pescar com rede, o que lhe era defeso, uma vez simples amador — e entro a examinar as circunstâncias em que o fazia.

Avulta dos autos a convicção de que, ao tempo dos fatos, oprimia o réu extrema penúria.

Já o demonstra que farte a circunstância de lhe ter sido relevada multa administrativa por não poder satisfazê-la.

Isto mesmo se deixa conhecer de seu interrogatório judicial (fl. 66), onde afirmou que, pedreiro de profissão, fazia 8 meses não achava trabalho. Consta ainda dos autos que é pai de 6 filhos (fl. 34).

Além de que, passa por fato isolado em sua vida — que deita já por 48 anos — o delito com que foi levado à barra da Justiça Criminal (fl. 66 v.).

5. Dou que o réu, em verdade, não comprovou “usque ad nauseam” a alegação de que praticara o fato em estado de necessidade, o que “exige prova cabal”, como ressaltou a r. decisão condenatória (fl. 97).

Mas — e já o advertira o insigne Antonio Dellepiane — “um inocente estará às vezes impossibilitado de provar o fato que infirme ou destrua o indício que o prejudica” (Nova Teoria da Prova, 1958, p. 70; trad. Érico Maciel).

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No caso, entretanto, a versão exculpatória do réu prova-se por inferência lógica imediata: por força que houvera de viver sob o constrangimento de inauditas dificuldades o sujeito que, pai de 6 filhos, havia 8 meses não podia desempenhar seu obscuro mister de pedreiro, tendo sido já isento do pagamento de certa multa, por sua notória escassez de meios.

Àquele que nada tem de seu é sempre lícito recorrer às dádivas da Natureza.

Doutrina é esta em que todos concordam, como pontificou o profundo Ihering:

“A luta pela existência é a lei suprema de toda a criação animada; manifesta-se em toda a criatura sob a forma de instinto da conservação” (A Luta pelo Direito, 20a. ed., p. 17; trad. João Vasconcelos).

Ainda, quem haverá de ânimo tão obdurado e insensível, que faça rosto àquela sublime apóstrofe do Evangelho:

“Qual de vós porventura é o homem que, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou porventura, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente?” (Mt 7, 9-10)?

Quem haverá, por igual, tão refratário ao sentimento de justiça, que não professe a verdade do célebre aforismo: As sutilezas do direito não constituem o direito (“Apices juris non sunt jura”)?!

6. Dispõe a Lei nº 9.605 de 12.8.98 (Lei do Meio Ambiente), que a pesca não configura crime quando praticada “em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família” (art. 37, nº I).

Em escólio ao sobredito preceito legal, escrevem Édis Milaré e Paulo José da Costa Jr., em apreciada obra:

Necessitas non habet legem, vale dizer, diante da necessidade não há que falar em lei. Ela é por demais eloquente” (Direito Penal Ambiental, 2002, p. 101; Millennium Editora).

Por esta mesma craveira têm decidido nossos Tribunais:

“Embora tecnicamente insustentável a alegação de estado de necessidade, no caso em razão de pobreza e prole numerosa, merece ser considerada pelo Juiz Criminal, para outros fins, pois a pobreza — ressalvada a dos bem-aventurados, a quem pertence o reino dos céus — não é um estado de espírito, mas de carência existencial, que poderá ser de tal ordem que justifique, por si mesma, a conduta do réu” (EJTRF, vol. 68, p. 25; rel. Washington Bolivar).

Examinada à justa luz a espécie dos autos, não repugna à razão lógica sustentar que o réu praticou o fato em estado de necessidade; pelo que, não cometeu crime.

7. Pelo exposto, dou provimento à apelação para absolver JCS, com fulcro no art. 386, nº V, terceira figura, do Cód. Proc. Penal.

São Paulo, 24 de junho de 2002

Carlos Biasotti

Relator

IV. Ementário sobre necessidade

1. “Necessitas caret lege” (o que vem a dizer: A necessidade não conhece lei).

2. A inexorável necessidade, já o recitavam os antigos, não conhece lei: “Necessitas non habet legem”.

3. Não entra em dúvida que a necessidade não se sujeita às leis, como reza o aforismo jurídico: “Necessitas caret lege”.

4. Embora tenha curso desembaraçado o aforismo “Necessitas caret lege”A necessidade não conhece lei —, tal justificativa deve ser cumpridamente provada dos autos, aliás se reduzirá a mero “flatus vocis”, ou expressão vazia de sentido (art. 24 do Cód. Penal).

5. Conforme a lição da experiência vulgar, a necessidade faz do homem o que quer: “Necessitas non habet legem”. Mas só constitui causa excludente de criminalidade se o agente não podia conjurar o mal, exceto com o sacrifício do bem alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de estreiteza de recursos, desacompanhada de prova cabal e convincente, não basta para o reconhecimento da descriminante legal, senão se converteria em razão universal de impunidade.

6. Também os gregos resumiram num anexim a sorte dos desremediados: A quem precisa, a vergonha não serve de nada.

7. “A necessidade despreza regras” (D. Francisco Alexandre Lobo, Obras, 1853, t. III, p. 477).

8. “A alegação de estado de necessidade não é admissível em face da prática de roubo, principalmente quando o sujeito emprega arma” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 1998, p. 512).

9. Àquele que a invocar em sua defesa tocará fazer a prova da existência, no caso concreto, da excludente de estado de necessidade. Simples dificuldade em prover às primeiras necessidades da vida não autoriza o reconhecimento da descriminante do art. 24 do Cód. Penal, pois o sacrifício do direito alheio somente se admite quando determinado por situação de perigo que, de outro modo, não se poderia vencer.

10. Dificuldades de caráter socioeconômico, só por si, não justificam o sacrifício do direito alheio, exceto em circunstâncias mui particulares, em que perigo invencível o imponha (art. 24 do Cód. Penal).

11. Causa de exclusão de ilicitude jurídica, o estado de necessidade (art. 24 do Cód. Penal) requer prova plena e cabal, não bastando invocá-lo. A defesa com base no argumento do furto famélico é inatendível se o acusado não demonstra que praticara o fato para ocorrer às primeiras necessidades, próprias ou de terceiros.

12. Segundo velha máxima de Direito, a necessidade faz do homem o que quer: “Necessitas non habet legem”. Mas só constitui causa excludente de criminalidade se o agente não podia conjurar o mal, exceto com o sacrifício do bem jurídico alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de estreiteza de recursos, desacompanhada de prova cabal e convincente, não basta para o reconhecimento da descriminante legal, senão se converteria em razão universal de impunidade e salvo-conduto para a prática de crimes.

13. Tese do estado de necessidade: deve prová-la acima de toda a dúvida razoável aquele que a invocar, aliás cairá na conta de réu confesso (art. 156 do Cód. Proc. Penal).

14. Àquele que invoca em sua defesa a tese do estado de necessidade impende comprová-la acima de dúvida, não se converta em réu confesso (art. 156 do Cód. Proc. Penal).

15. Cumpre ao acusado, que a invoca, demonstrar acima de toda a dúvida a ocorrência da descriminante legal do estado de necessidade, pois aqui a falta de prova equivale a confissão do crime que lhe é imputado (art. 24 do Cód. Penal).

16. Que a necessidade faz do homem o que quer, é dos livros: “Necessitas non habet legem”. Todavia, só constitui causa excludente de criminalidade se o agente não podia conjurar o mal, salvo com o sacrifício do bem alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de míngua de recursos, desacompanhada de prova cabal e convincente, não basta para o reconhecimento da descriminante legal; do contrário, converter-se-ia em razão universal de impunidade e licença para delinquir.

17. Não entra em dúvida que a necessidade atua poderosamente na vontade humana, o que bem se entende do aforismo “Necessitas non habet legem”. Mas só constitui causa excludente de criminalidade se o agente não podia conjurar o mal, exceto com o sacrifício do bem jurídico alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de estreiteza de meios, sem prova robusta que o sustente, não basta para o reconhecimento da descriminante legal; do contrário, converter-se-ia em razão escusativa universal para a perpetração de toda a sorte de crimes.

18. Verdade consagrada por aforismo — “Necessitas non habet legem” —, a necessidade só é causa excludente de ilicitude se o agente provar não podia conjurar o mal senão com o sacrifício do bem jurídico alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de carência de recursos, desacompanhada de prova boa e convincente, não basta para o reconhecimento da descriminante legal, que isso fora transformá-la em claviculário de todas as portas que deitam para a impunidade de infratores, ainda os mais perigosos.

19. Do gênero das causas de exclusão de culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa requer prova cabal e inequívoca de sua existência, já que se devem interpretar “restritivamente as disposições derrogatórias do Direito comum”. “Cumpre opinar pela inexistência da exceção referida, quando esta se não impõe à evidência, ou dúvida razoável paira sobre a sua aplicabilidade a determinada hipótese” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16a. ed., p. 235).

20. A necessidade não se sujeita às leis, proclama vetusto brocardo jurídico: “Necessitas caret lege”. Mas só opera como causa excludente de criminalidade aquela que não permitia ao agente conjurar o mal, exceto com o sacrifício do bem jurídico alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de escassez de meios de subsistência, desacompanhada de prova que a autorize, não basta para o reconhecimento da descriminante legal; que isso não passava de licença para delinquir e carta credencial para a impunidade.

21. A necessidade, conforme aquilo de retrilhado aforismo, faz do homem o que quer: “Necessitas non habet legem”. No entanto, só constitui cláusula excludente de criminalidade a que não permite ao agente conjurar o mal senão com o sacrifício do bem jurídico alheio (art. 24 do Cód. Penal). A mera alegação de falta de recursos para prover à subsistência de pessoas de sua obrigação não serve ao reconhecimento da descriminante legal, que só em provas bem definidas e concludentes depara fundamento.

22. Não há negar o império da necessidade sobre as ações humanas; inculca-o, desde os tempos mais remotos, aquela sentença de voga desembaraçada: “Necessitas non habet legem” (em linguagem: A necessidade não tem lei). Não a pode invocar, entretanto, como excludente criminal quem satisfaz à própria cupidez e malícia, mais que a motivo urgente e invencível.

23. Ao invocar a descriminante legal do estado de necessidade, toma o acusado sobre si o ônus de demonstrar-lhe, acima de toda a dúvida razoável, a efetiva o ocorrência; a falta de prova, no particular em causa, faz as vezes de confissão de crime” (art. 24 do Cód. Penal).

24. A invocação de crises conjunturais socioeconômicas do País não basta a excluir a antijuridicidade do fato criminoso praticado pelo réu, pois não há confundir precisão com estado de necessidade (art. 24 do Cód. Penal); aliás, seria transformar a descriminante legal em verdadeiro claviculário que abrisse todas as portas que dão para a delinquência.

25. A alegação do réu de que praticara o fato em estado de necessidade, ao pescar mediante a utilização de petrecho não permitido (rede) — art. 37, nº I, da Lei nº 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente) — é atendível, por inferência lógica imediata, se os autos revelam que se tratava de sujeito rústico, desempregado e com prole numerosa por sustentar. Àquele que nada tem de seu é lícito recorrer às dádivas da Natureza!

Notas


  1. “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” (art. 24 do Cód. Penal).

  2. Ao magistrado de espírito reto certamente repugnaria a sentença condenatória fulminada contra Jean Valjean, convicto de furto de um pão para o filho de sua irmã: 5 anos de galés, acrescidos de 14 por tentativas de fuga (Vítor Hugo, Os Miseráveis; 1a. Parte, liv. I, cap. VI). As penas — assim a referente ao furto como as infligidas ao réu pelas tentativas de fuga — foram, não há negá-lo, o seu tanto exageradas, visto deliraram do padrão ditado pelo bom-senso e fizeram rosto a venerandos preceitos de sabedoria, “verbi gratia”: “Summum jus, summa injuria” (Cícero, De Officiis, I, 10,33 — Justiça excessiva torna-se injustiça; “Noli esse justus multum” (Ecl 7, 17) — Não sejas por demasiado justo, etc. Sobre injusta, fora também exacerbada a sanção pelas tentativas de evasão do presídio. Deveras, expressão incoercível do instinto humano, o amor da liberdade elide o caráter de ilicitude da fuga do preso, exceto se empreendida mediante violência contra pessoa, ou com efetivo dano ao patrimônio público (cf. arts. 352 e 163 do Cód. Penal).

  3. Faz ao intento o belo ditame de Eliézer Rosa (por antonomásia, “o bom Juiz”): “Grande só pode ser o juiz que disponha de liberdade para criar a solução que lhe pareça mais acertada e mais justa para o caso que tem de julgar” (Novo Dicionário de Processo Civil, 1986, p. 167).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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