De acordo com o disposto no art. 5º, I e II, do Código de Processo Penal, o inquérito policial será instaurado ex officio pelo Delegado de Polícia, ou “mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”.
Diversas diligências deverão ser cumpridas pela autoridade policial durante a investigação, a exemplo daquelas descritas no art. 6º do Código de Processo Penal[1].
Contudo, é comum o Delegado de Polícia tomar conhecimento da prática de infrações penais por meio de denúncias anônimas realizadas por telefone, pela internet, ou mesmo pessoalmente, sem que o denunciante se identifique. Em muitas vezes essa denúncia não vem acompanhada de prova material (depoimento, documento, vídeo, fotografia, etc).
Embora o inquérito policial deva ser instaurado nos termos do art. 5º do Código de Processo Penal, “perante mera ‘noticia criminis’, o primeiro dever da autoridade policial é informalmente investigar a respeito, somente submetendo o indiciado a inquérito ou procedimento penal, quando razoável e inverossímil a acusação. Atitude diversa acarretaria o risco de sujeitar o cidadão à coação possivelmente desnecessária e injustificável e, por outro lado, movimentar em vão a máquina policial (TACrim-SP – Rel. Azevedo Franceschini – RT 460/337)” (Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto. Código de processo penal e lei de execução penal comentados por artigos. – Salvador: Juspodivm, 2017, p. 28).
Com efeito, "a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa 'denúncia' são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações" (STF. HC n. 95.244. Relator: Min. Dias Toffoli).
Em outra decisão proferida pela Suprema Corte, constou que “é pacífica a jurisprudência Corte, no sentido de que é permitida a “deflagração da persecução penal pela chamada 'denúncia anônima', desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados” (HC 99.490, Rel. Min. Joaquim Barbosa). Nessa mesma linha de orientação, vejam-se os seguintes precedentes: HC 74.195, Rel. Min. Sidney Sanches; RHC 86.082, Rel. Min. Ellen Gracie; HC 90.178, Rel. Min. Cezar Peluso; HC 95.244, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 105.484, Rel. Min. Cármen Lúcia; HC 113.597, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; HC 120.234- AgR, Rel. Min. Luiz Fux; HC 110.436-AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso” (STF. ARE n. 654.335 e ARE n. 676.280, julgados em 12/2/2015. Relator: Min. Luís Roberto Barroso).
O Superior Tribunal de Justiça, por várias vezes, decidiu sobre o assunto:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. NULIDADE. NOTITIA CRIMINIS INQUALIFICADA. "DENÚNCIA ANÔNIMA". POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE INVESTIGAÇÕES PRÉVIAS À INSTAURAÇÃO FORMAL DE INQUÉRITO POLICIAL. PRECEDENTES. AUSÊNCIA NOS AUTOS DE NOTÍCIA DE DILIGÊNCIAS PRÉVIAS. REQUISIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. RECURSO PROVIDO. 1. "A notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal” (AgRg no AREsp 729.277/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 26/8/2016). 2. A notitia criminis apócrifa, por si só, não supre a necessidade de verificação pelos órgão públicos da mínima da plausibilidade da imputação para a deflagração ou determinação de instauração de inquérito policial. Recurso em habeas corpus provido para reconhecer a nulidade na Ação penal n. 0098586-10.2009.8.26.0050 (050.09.098586-9), desde a decisão que determinou a instauração do inquérito policial com base exclusivamente em denúncia anônima e sem a realização de nenhuma investigação prévia (STJ. RHC n. 64.504/STJ, julgado em 21/8/2018. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik).
A notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, devendo ser embasada por procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações (STJ. RHC n. 107.194, julgado em 12/3/2019. Relator: Min. Feliz Fischer).
Investigações iniciadas por delação anônima são admissíveis desde que a narrativa apócrifa se revista de credibilidade e, em diligências prévias, sejam coletados elementos de informação que atestem sua verossimilhança (STJ. HC n. 480.386. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz).
[...] diante de uma comunicação apócrifa, não é possível instaurar-se inquérito policial para se averiguar sua veracidade. O que a denúncia anônima possibilita é a condução da autoridade para um cenário em que, se for caso, diante do encontrado, possa se iniciar formalmente o procedimento investigatório. Feita a prévia e simples averiguação do que noticiado anonimamente e havendo elementos informativos idôneos o suficiente, aí, sim, é viável a instauração de inquérito e, conforme o caso, a tomada de medidas extremas, como, por exemplo, a quebra de sigilo telefônico, para melhor elucidação dos fatos (STJ. HC n. 496.100, julgado em 23/2/2021. Relator: Min. Rogério Schietti Cruz).
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. DENÚNCIA ANÔNIMA NÃO CONFIRMADA POR INVESTIGAÇÕES PRELIMINARES À INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. NULIDADE. NECESSÁRIO TRANCAMENTO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. – [...]. - Na hipótese, a representação ministerial instruída com delação apócrifa autorizaria a abertura de investigação preliminar para corroborar os fatos nela narrados. Porém, o que a autoridade policial fez foi proceder, desde logo, à instauração do inquérito policial, assim que recebeu a comunicação do Ministério Público. - Não há que se falar, ao contrário do que entenderam os julgadores da origem, que se tratou de procedimento que não acarretou qualquer constrangimento a pessoa concreta, pois, da própria portaria de instauração do inquérito se verifica que a ora agravada foi suficientemente identificada como suspeita e investigada. - É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que há ilegalidade flagrante na instauração de inquérito policial, que não foi precedida de qualquer investigação preliminar para subsidiar a narrativa fática da delação apócrifa. Assim, impunha-se a concessão da ordem para trancar o Inquérito Policial (n. 2067076-27.2020.1200501) que tramitava na origem, por falta de justa causa. - Agravo regimental desprovido (STJ. AgRg no RHC n. 139.242, julgado em 5/10/2021. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca).
Nota-se que a instauração de inquérito policial baseado em denúncia anônima, sem diligências prévias para validar minimamente a narrativa do denunciante (sem materialidade e indícios mínimos de autoria), é uma atitude temerária, pois fere o princípio previsto no art. 1º, III, da CF/1988, além de causar ofensa às garantias descritas no art. 5º, X, da CF/1988[2].
Além do mais, é um evidente constrangimento, já que eventual ação penal poderá ocasionar a condenação e/ou prisão do investigado no futuro, de modo que tal prática deve ser proibida, sem contar que o advogado não poderá questionar a fonte da informação e a sua veracidade, prejudicando o exercício do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988).
Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório do Processo Penal.
[1] Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]; III - a dignidade da pessoa humana; [...]. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;