O Formalismo Moderado e a Inclusão de Documento Novo na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos

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É do conhecimento de todos que no Brasil, tradicionalmente, sempre foi muito difícil (e durante muito tempo até impossível) sanar defeitos essenciais apresentados pelos licitantes. Qualquer falha na documentação de habilitação ou na proposta comercial, por mais simples que fosse, era motivo para inabilitação ou desclassificação de potenciais concorrentes.

Entretanto, os princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do procedimento formal não são absolutos e devem ser analisados conjuntamente com os princípios da razoabilidade e da competitividade, evitando, assim, a ocorrência do excesso de formalismo, prática esta que, recentemente, passou a ser abominada pela doutrina e pela jurisprudência pátria.

Para Marçal Justem Filho, in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 8ª ed., Dialética, São Paulo, p. 469:

...é imperioso avaliar a relevância do conteúdo da exigência. Não é incomum constar do edital que o descumprimento a qualquer exigência formal acarretará a nulidade da proposta. A aplicação dessa regra tem de ser temperada pelo princípio da razoabilidade. É necessário ponderar os interesses existentes e evitar resultados que, a pretexto de tutelar o interesse público de cumprir o edital, produza-se a eliminação de propostas vantajosas para os cofres públicos.

Isso quer dizer que o formalismo no procedimento licitatório não significa que se possa desclassificar propostas eivadas de simples omissões ou defeitos irrelevantes. E foi com este entendimento que o Poder Judiciário começou a assegurar a necessidade de interpretar as exigências da lei e do ato convocatório como instrumentais em relação à satisfação do interesse público, antes mesmo da publicação da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLC (Lei Federal nº 14.133/2021).

Para o Poder Judiciário, mesmo vícios formais, de existência irrefutável, podem ser superados quando não importar prejuízo ao interesse público ou ao dos demais licitantes. Não se configura lesão ao interesse de outro licitante questão restrita ao simples fato de ser derrotado.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Tribunal de Contas da União - TCU já decidiu que:

O formalismo exagerado da Comissão de Licitação configura uma violação aos princípios básicos das licitações, que se destinam a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. (...) O ex-Ministro Extraordinário da Desburocratização, Hélio Beltrão, costumava dizer que a burocracia nasce e se alimenta da desconfiança no cidadão, na crença de que suas declarações são sempre falsas e que válidas são as certidões, de preferência expedidas por cartórios, com os importantíssimos carimbos e os agora insubstituíveis ‘selos holográficos de autenticidade’, sem os quais nada é verdadeiro. (TCU, Plenário, Processo 004.809/1999-8, Decisão 695/1999).

Vale a pena conferir, também, as seguintes Decisões e Processos do TCU: Decisões: 704/1994, BLC n. 1, 1996, p. 20; 472/1995, BLC n. 7, 1996, p. 346; 017/2001, DOU de 2/2/01; 236/2002, BLC n. 6, 2003, p. 403. Processos: TC 009.546/92-8, DOU de 29/12/92; TC 006.687/94-6, DOU de 13/9/94; TC 014.397/94, DOU de 28/8/95; TC 015.131/93-9, DOU de 28/8/95; TC 008.416/97, DOU de 21/7/99.

Seguindo esta linha de pensamento e trabalhando no sentido de ampliar o caráter competitivo nas licitações públicas, sem deixar que o excesso de formalismo prejudique os procedimentos de compras e aquisições na Administração Pública, como era comum observar no passado, assim nos ensinou o Professor Marçal Justen Filho, in Pregão (Comentários à Legislação do Pregão Comum e Eletrônico), 4ª ed., Dialética, São Paulo, 2005, p. 143, ao tecer comentários acerca do inciso XIV, do art. 4º, da revogada Lei Federal nº 10.520/2002 e da inovação do regulamento federal acerca do suprimento de defeitos nas licitações:

Daí caracterizar-se uma grande inovação, consistente na possibilidade de eliminar, depois de instaurada a licitação e no curso do exame dos documentos, defeitos na habilitação. Isso se faria, inclusive, pela apresentação superveniente de novos documentos. Essa solução representa extraordinária inovação no âmbito da sistemática licitatória nacional. O princípio tradicionalmente aceito no Brasil sempre foi o da impossibilidade de suprimento de defeitos essenciais apresentados pelo licitante. As irregularidades podem ser ignoradas, mas apenas na medida em que os defeitos sejam irrelevantes, meramente formais. Em última análise, tem-se admitido a utilização da interpretação da vontade das partes e da finalidade das regras como critério de superação de defeitos da documentação ou da proposta. (Grifamos).

Neste sentido, inclusive, temos que o TCU, ainda no ano de 2003, ao analisar uma representação, assentiu com a conduta da Pregoeira que, no caso, permitiu que a empresa que havia ofertado a melhor proposta extraísse, na própria sessão, Certidão de Dívida Ativa da União, senão vejamos:

... as normas disciplinadoras da licitação serão sempre interpretadas em favor da ampliação da disputa entre os interessados, desde que não comprometam o interesse da Administração, a finalidade e a segurança da contratação... entendo que foi dado fiel cumprimento ao citado art. 4º, parágrafo único, do Decreto 3.555/2000... Não se configura, na espécie, qualquer afronta ao interesse público, à finalidade do procedimento licitatório nem à segurança da contratação, uma vez que venceu o certame empresa que, concorrendo em igualdade de condições, ofereceu proposta mais vantajosa e logrou comprovar, na sessão, a aptidão para ser contratada. (TCU, Plenário, Processo TC – 017.101/2003-3, Acórdão 1.758/2003, Voto do Ministro Walton Alencar Rodrigues). (Destacamos).

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Segundo o TCU, tal juntada não configuraria irregularidade, mas praticidade, celeridade e otimização do certame. Isso porque o apego excessivo à letra da lei pode acarretar equívocos jurídicos, não traduzindo seu sentido real.

Vejam que o referido Acórdão é do ano de 2003. Se naquela época (11 anos atrás) as certidões de regularidade fiscal já eram fornecidas através dos sítios eletrônicos oficiais, imaginem hoje. Com apenas alguns cliques é possível emitir e/ou verificar a validade de tais documentos. Ademais disso, mesmo que as empresas concorrentes de determinado certame apresentem todas as certidões exigidas no instrumento convocatório, o servidor público que está conduzindo o processo terá que verificar a autenticidade das mesmas nos sites competentes. Ou seja, na prática, é a mesma coisa!

Recentemente, a mesma Corte de Contas, através do Acórdão 1.211/2021, decidiu que documento de habilitação ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.

Tal Acórdão (Acórdão TCU 1.211/2021) trata de representação formulada por determinada empresa que reportou supostas irregularidades ocorridas em um pregão eletrônico aberto por determinado órgão, onde o pregoeiro concedeu aos licitantes nova oportunidade de envio da documentação de habilitação, após a abertura pública, tendo o Plenário entendido que:

... admitir a juntada de documentos que apenas venham a atestar condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame não fere os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes e o oposto, ou seja, a desclassificação do licitante, sem que lhe seja conferida oportunidade para sanear os seus documentos de habilitação, resulta em objetivo dissociado do interesse público, com a prevalência do processo (meio) sobre o resultado almejado (fim). (Grifamos).

Verifica-se dos julgados colacionados acima que a referida Corte de Contas tratou de assegurar a necessidade de interpretar as exigências da lei e do ato convocatório como instrumentais em relação à satisfação do interesse público, fortalecendo a afirmativa de que o Direito, na contemporaneidade, dá muito mais relevância e valor à substância que à forma.

Sintetizando a questão o Juiz José de Castro Meira brilhantemente afirmou que “Os magistrados não devem deixar que erros materiais criem estorvos ao vencedor do certame”. (José de Castro Meira, Licitação. BLC n. 1, 1997, p. 13).

Assim, mesmo vícios formais de existência irrefutável, podem ser superados quando não importar prejuízo ao interesse público ou ao dos demais licitantes, não se configurando lesão ao interesse de outro concorrente apenas o fato de ter sido derrotado.

Graças e esta evolução doutrinária e jurisprudencial o Legislador Infraconstitucional entendeu que aquela visão arcaica e prejudicial do excesso de formalismo deveria ficar no passado e inseriu no texto da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos dispositivos capazes de evitar o afastamento de licitantes por desatendimento de exigências formais ou meras omissões, ex vi do disposto em seu art. 64:

Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:

I - complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;

II - atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

Vejam que, diferentemente do que estava previsto na Lei Federal nº 8.666/93, agora está explícito na Lei Federal nº 14.133/2021 a possibilidade de substituição ou apresentação de novos documentos, especialmente para complementar informações sobre documentos já apresentados e/ou atestar condição pré-existente.

Outro não é o entendimento da Corte de Contas da União, para quem “a inclusão de novo documento, não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro” (TCU, Acórdão 468/2022, Pleno) e do Tribunal de Contas do Estado do Paraná – TCEPR, segundo o qual “tratando-se de mera falha ou equívoco não caberia a desclassificação do licitante, mas sim a abertura de diligência, tendo em vista que o documento ausente era documento pré-existente, que apenas atestava condição já cumprida” (TCEPR, Acórdão 286/2022, Pleno).

Na prática, já tivemos várias vitórias em recursos administrativos interpostos em face da inabilitação e desclassificação de licitantes por meras omissões e pequenas falhas formais que poderiam de ter sido sanadas através de simples pesquisa em sítios eletrônicos oficiais e/ou através de diligência.

Trata-se de grande avanço que deve ser observado, principalmente, pelos agentes envolvidos nas contratações públicas para a obtenção do resultado mais vantajoso para a Administração Pública.

Sobre o autor
Guilherme Flaminio da Maia Targueta

Pós-graduado em Direito Público pela FDV, Pós-graduado em Licitações e Contratos sob o Viés da Lei 14.133/2021 pela Faculdade Pólis Civitas, Consultor Técnico e Jurídico na área de Licitações e Contratos tanto para órgãos públicos quanto para empresas privadas

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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