Em 1932 a ditadura Vargas enfrentou seu maior inimigo, o povo, que estava bem armado e em condições de enfrentar as tropas federais, muitas vezes até em pé de aparente igualdade.
Ao final as tropas federais se mostraram superiores, vencendo os insurgentes que bradavam por uma Constituição. No Brasil da época vigia a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, que estabeleceu a República após o golpe militar que derrubou o Imperador Dom Pedro II, e ao final da Revolução de 32, também chamada de Revolução Constitucionalista, veio a segunda Constituição com o mesmo nome, datada de 16 de Julho de 1934. Houve sim a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte, mas foi mantida a ditadura de Getúlio Vargas.
Como é típico dos exércitos vencedores, foi imposto o desarmamento dos vencidos, e isto se fez primeiramente pela força das próprias armas, mas a seguir pelo Decreto 24.602, de 06 de Julho de 1934, apenas 10 dias antes da aprovação da nova Constituição.
Este é o texto resumido dos primeiros artigos do decreto (que apesar do nome, na época tinha força de lei federal):
Art. 1º Fica proibida a instalação, no país, de fábricas civis destinadas ao fabrico de armas e munições de guerra.
(...)
Art. 2º É absolutamente proibido qualquer fábrica civil fabricar munição de guerra, a não ser no caso previsto no parágrafo único do art.1º .
Art. 3º Nenhuma fábrica de produção de cartuchos, munições e armas de caça ou de explosivos poderá se instalar ou funcionar, se existe, sem que haja:
1º, satisfeito às exigências técnicas ditadas pelo Ministério da Guerra;
(...)
Já de princípio se fez a clara distinção entre armas e munições de guerra, e munições e armas de caça.
Para que não haja dúvidas, este decreto foi regulamentado pelo primeiro R-105, Decreto 1.246, de 11 de Dezembro de 1936, onde a distinção ficou perfeitamente clara:
Art. 1º Com a presente regulamentação do decreto numero 24.602, de 6 de julho de 1984, o Governo Federal, tem por fim estabelecer sua conveniente execução em todo o territorio da Republica de forma a proporcionar:
a) a fiscalização da organização e funccionamento das fabricas civis de armas e munições de guerra, quando para isso autorizadas;
b) a fiscalização da organização e funccionamento das fabricas civis de armas, munições e explosivos, do que tratam os artigos 3º e 6º do decreto acima referido, regulando sua producção, commercio e transporte;
O objetivo inequívoco era manter sob restrito controle do governo a fabricação e o comércio de armas de fogo de uso de guerra e de uso civil, e a separação entre o material de emprego militar e o material de uso civil em alíneas diferentes é, dentro da redação de normas, indicativo suficiente da vontade do legislador.
O R-105 foi brevemente revogado pelo Presidente Fernando Collor de Mello, em 10 de Maio de 1991, mas foi repristinado em 02 de Outubro de 2.000.
Quando Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.437/97 existia um hiato, ausência do Regulamento de Fiscalização de Produtos Controlados. Primeiro se fez o decreto 2.222/97 para regulamentar esta lei. Em 02 de Outubro de 2.000 repristinou o R-105 de 1934, e em 20 de Novembro de 2.000 se fez o Dec. 3.665/2000, que deu nova redação ao R-105 de 1934.
O R-105 de 2000 foi um trabalho técnico, bem elaborado pelo Comando do Exército, e fez melhores definições. Entre estas definições está uma facilmente encontrada em dicionários:
Art. 3o Para os efeitos deste Regulamento e sua adequada aplicação, são adotadas as seguintes definições:
XXXI - bélico: diz respeito às coisas de emprego militar;
LX - material de emprego militar: material de emprego bélico, de uso privativo das Forças Armadas;
Houve também a classificação de armas, munições, acessórios e equipamentos, divididos entre restritos e permitidos, sendo os restritos:
Art. 16. São de uso restrito:
I - armas, munições, acessórios e equipamentos iguais ou que possuam alguma característica no que diz respeito aos empregos tático, estratégico e técnico do material bélico usado pelas Forças Armadas nacionais;
II - armas, munições, acessórios e equipamentos que, não sendo iguais ou similares ao material bélico usado pelas Forças Armadas nacionais, possuam características que só as tornem aptas para emprego militar ou policial;
Da leitura do R-105 de 2.000 abunda a distinção entre material bélico (de uso militar) e de uso civil. A própria essência do texto foi esta distinção.
Esta distinção não nasceu em 2.000, na verdade ela já estava nos R-105 anteriores, e na própria Constituição Federal de 1.988, que menciona material de guerra pelo menos duas vezes:
Art. 21. Compete à União:
VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares;
Ambos os textos se referem exclusivamente a material no uso em guerra, e se não fosse suficiente a ajuda de um dicionário para definir o termo “bélico”, é possível se fazer uso também da interpretação lógica e sistemática e se observar que o Art. 22, XXI menciona questões militares – efetivos, convocação, mobilização... Ainda que neste ponto se refira a polícias e corpos de bombeiros militares.
No R-105 atual, que é o Dec. 10.030/2019, norma jurídica também elaborada segundo estritos critérios técnicos do Ministério da Defesa, se repete esta clara distinção entre material bélico e material de uso civil, especialmente em seu Glossário:
Bélico: termo usado para referir-se a produto de emprego militar de guerra.
Para que não haja confusão possível com interpretações exógenas ao Direito Militar ou à legislação brasileiras de armas de fogo, na própria norma existe a definição específica do termo “Bélico”.
Adicionalmente, o R-105 atual define especificamente os produtos controlados em relação à sua classificação, da seguinte maneira:
PCE de uso permitido: produto controlado listado nominalmente na legislação como PCE cujo acesso e utilização podem ser autorizados para as pessoas em geral, observada a classificação elaborada pelo Comando do Exército, prevista nos decretos regulamentadores da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003.(Redação dada pelo Decreto nº 10.627, de 2021)Vigência
PCE de uso restrito: produto controlado listado nominalmente na legislação como PCE que, devido às suas particularidades técnicas ou táticas, deve ter seu acesso e sua utilização restringidos, observada a classificação elaborada pelo Comando do Exército, prevista nos decretos regulamentadores da Lei nº 10.826, de 2003.(Redação dada pelo Decreto nº 10.627, de 2021) Vigência
Produto de interesse militar: produto que, mesmo não tendo aplicação militar finalística, apresenta características técnicas ou táticas que o torna passível de emprego bélico ou é utilizado no processo de fabricação de produto com aplicação militar.
Isto posto, não se pode dentro da legislação pátria se tentar interpretar a palavra “bélico”, e mais especialmente produto bélico, senão aquele de uso específico para a guerra, sendo descabida e desarrazoada qualquer tipo de interpretação que coloque armas, munições, equipamentos e acessórios de uso civil dentro do estrito contexto da competência exclusiva da União prevista no Art. 21 de nossa Constituição Federal.