O poder disciplinar militar e sua divisão e duplicidade em hierarquia e disciplina no âmbito do direito disciplinar militar

06/05/2024 às 14:46

Resumo:


  • O termo "poder" tem origem no latim "possum", denotando capacidade e aptidão para solucionar conflitos, possuir autoridade, energia, superioridade e habilidade de gerenciamento.

  • O conceito material de poder envolve o direito de mandar, agir e deliberar sobre algo, influenciando o cotidiano e se formando nas relações sociais, como em âmbitos econômicos, militares, empresariais e governamentais.

  • O conflito histórico entre Davi e Golias exemplifica a evolução do poder, passando de força física para capacidades como inteligência, planejamento e administração, influenciando a forma como o poder é compreendido até os dias atuais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

I. A origem da palavra poder

 Antes de descrever sobre as semelhanças e as diferenças entre o poder disciplinar militar e o poder hierárquico militar; importante, para a própria apreciação formadora deste artigo, determinar as premissas de origem do próprio termo poder.

Pode-se pensar e interpretar o poder sob vários pontos de vista, aborda-lo de maneira simplista ou em conjunto com outros conceitos; de maneira concreta ou em situação filosófica completamente abstrata. Neste espaço, pela proposta do tema poder no âmbito de conceitos militares, a abordagem a ser construída estará na construção de vários desses julgamentos sobre o tema e sobre o próprio conhecimento.

A palavra poder tem sua origem no termo latino “possum”, palavra que denota capacidade. Nesse prisma, na definição formal, sintética do dogma linguístico, a definição que os dicionários apresentam para a palavra poder se constitui desde uma capacidade e aptidão de solucionar conflitos, passando pela a posse de uma autoridade por um indivíduo, se estendendo pela força, energia e superioridade; finalizando como capacidade e habilidade de gerenciamento na realização de ações de administrar e/ou chefiar.  

 II. Conceito material

 Em relação ao conceito material da palavra poder, com tranquilidade se pode afirmar que se trata do direito constituído, seja pela força ou pelo direito, de mandar, agir, ou deliberar sobre algo. É o exercício de uma autoridade que influencia o cotidiano de alguém ou algo.

Poder, no conceito material, desde os primórdios da humanidade – ainda na constituição da passagem entre vingança privada e a vingança divina – se formou na relação entre os indivíduos de uma sociedade; indivíduos estes que pautaram um monopólio do domínio de certas situações a uma pessoa. Podendo ser esse monopólio distribuído em vários âmbitos da sociedade, como econômico, militar, empresarial, governamental, administrativo privado ou estatal, entre outros.

Como pecha abstrata de direcionamento entre conceitos formal e material, perceba que o poder se estabelece como a formação de um relacionamento entre pessoas onde uma das partes depende da vontade do outro. Assim, o poder determina que em uma estrutura social as partes não são independentes uma das outras.

 III. Conceituação de poder na relação do conflito Davi x Golias

 O conceito de poder nos primórdios, como mencionado acima, ainda na passagem entre a vingança privada e a vingança divina, muito se constituiu como sinônimo quase que exclusivamente de força. É na história do conflito entre filisteus contra as tribos que deram origem ao povo judeu, sob a ótica militar, assim como atualmente empresarial, que esse conceito ganha roupagem ontológica. Deixa de ser apenas uma interpretação de mera força física e se expande com novas formas e se centra como conjunto de capacidades. 

É nesse evento conflitante que a relação do poder materialmente, até então estruturado como capacidade física, vai se tornar visível como capacidade de inteligência, planejar, administrar e ter aptidão hábil na solução de conflitos.   

Para entender essa relação histórica entre poder físico e poder como capacidade visualizado no conflito histórico entre Davi x Golias, é importante visualizar que os exércitos antigos contavam com três espécies de armadas.

A primeira armada era a cavalaria – guerreiros armados, montados a cavalo ou em carros de guerra. A segunda se instituía como a infantaria – resumindo-se em guerreiros a pé utilizando armadura e impregnando como armas uma espada (ou algo similar) e um escudo. A terceira eram os conhecidos ‘guerreiros de projéteis’, o que hoje é chamado de artilharia; constituídos em arqueiros e, na época do conflito aqui analisado, mais importantes, os fundibulários.

Os fundibulários eram homens que usavam uma bolsa de couro ligada a uma corda comprida em dois lados – a Funda. Nela colocavam uma pedra ou bola de chumbo, giravam-na em círculos cada vez mais amplos e rápidos e depois soltavam uma extremidade da corda, arremessando o projétil.

O historiador Baruch Halpern [2002][1] sustenta que a funda era tão importante na guerra antiga que os três tipos de guerreiros se equilibravam mutuamente.

 Com suas espadas ou lanças compridas e armaduras, a infantaria conseguia vencer à cavalaria. Esta conseguia, por sua vez, derrotar os guerreiros de projéteis, porque os cavalos se moviam de maneira rápida, impedindo que a artilharia conseguisse mirá-los e acerta-los. Por fim, os guerreiros de projéteis eram mortais contra a infantaria, porque um grande soldado carregando muito peso, prostrado pela armadura, constituía alvo fácil para um fundibulário lançando facilmente seus projéteis a mais de 90 metros de distância.

Perceba, Golias representava a infantaria pesada. Estava preparado para uma luta corpo a corpo, em que poderia ficar imóvel, defendendo-se dos golpes com sua armadura e desferindo um ataque poderoso de sua espada. Ele pensa que travará um duelo com outro soldado da infantaria pesada. Justamente por isso, na Bíblia está descrito que o gigante diz “Venha aqui e darei sua carne às aves do céu e aos animais do campo!”, a expressão-chave é “Venha aqui”. Ele quer dizer: “Aproxime-se para que possamos lutar de perto.” Quando Saul tenta vestir Davi com uma armadura e lhe dar uma espada, está operando sob o mesmo pressuposto. Supõe que Davi irá combater Golias, como um soldado de infantaria, corpo a corpo.

Davi, porém, não acata a ritualística do combate esperado. Quando conta a Saul que matou ursos e leões como pastor, não está pretendendo apenas ostentar sua coragem, mas quer dizer outra coisa também: que deseja lutar contra Golias da maneira como aprendeu a enfrentar animais selvagens – como “guerreiro de projéteis”.

Ele corre em direção a Golias, porque sem armadura possui velocidade e agilidade. Põe uma pedra em sua funda e a gira cada vez mais rápido; mirando seu projétil na testa de Golias – o único ponto vulnerável do gigante.

Ali, naquele momento, Golias, Saul e toda uma sociedade, começam a se dar conta que tanto a batalha, quanto o próprio sistema de poder, estavam subitamente mudados de forma.

Como já mencionado, Davi era um fundibulário, e os fundibulários derrotam a infantaria facilmente. Sendo as chances que Golias tinham naquele embate, eram, as mesmas que “qualquer guerreiro da Idade do Bronze com uma espada teria contra um [oponente] armado com uma pistola automática calibre .45”, essa foi a conclusão do historiador Robert Dohrenwend[2].

Por que tem se sustentado tamanho mal-entendido em torno daquele dia no vale de Elá? Em um nível, o duelo revela a estupidez de todos pressupostos sobre poder existentes. O motivo do ceticismo do rei Saul quanto às chances de Davi é que este é pequeno demais, enquanto Golias, grande. O rei pensa no poder em termos de força física, então não reconhece que ele pode vir de outras formas também – como o rompimento das regras de combate, e a substituição da força física por velocidade, surpresa e principalmente, inteligência.

É a partir desse momento histórico que conceito de poder começa a ganhar novos contornos, se aproximando com a apreciação que se tem nos dias atuais. Deixa de ser apenas um entendimento de força física para englobar outras questões e premissas, sejam concretas ou abstratas, como capacidade de gestão e até mesmo sobre o gerenciamento do indivíduo pelo estado; criando a prerrogativa do ente estatal como instrumento para perseguir o interesse público.

Observe que, exatamente nesse momento de transição histórica são dados os primeiros passos para a formação do “contrato social”, que mais tarde foi instruído no Iluminismo. O poder deixa definitivamente de ser força bruta – seja física e individual ou por mandamento divino – e passa a ser uma capacidade repassada pelos indivíduos ao estado – e este investe seus delegados. 

 IV. Os poderes da administração pública

 A administração pública – fincada como legítima representante do “pacto social” materializado nos primeiros cem anos do iluminismo – sendo o conjunto de órgãos, serviços e agentes do Estado que procuram satisfazer as necessidades da sociedade. E por isso, em outras palavras, estando a administração pública, intrinsecamente, como o próprio Estado, gestor dos interesses públicos por meio da prestação de serviços públicos.

Os poderes da administração pública – ou poderes administrativos – basicamente, sob uma ótica mais moderna, são divididos em: poder hierárquico; poder disciplinar; poder regulamentar e poder de polícia.

No poder hierárquico, como não poderia deixar de ser, a palavra chave é a hierarquia. Essa modalidade de poder da administração é a que permite ao administrador público estruturar de maneira hierarquizada os quadros funcionais da administração. Poder disciplinar decorre da existência do poder hierárquico. Essa modalidade de poder da administração é a que permite ao administrador público aplicar uma sanção pela prática de uma infração funcional. Poder regulamentar, essa modalidade de poder da administração é a que permite ao administrador normatizar, disciplinar e regulamentar questões complementares à previsão legal, buscando a sua fiel execução. Por fim, poder de polícia significa restringir ou limitar a atuação do particular em nome do interesse público. O poder de polícia é, em tese, a busca de um bem-estar social.

No momento, o nosso interesse – até pela análise levantada no presente artigo – no seio militar, a leitura do poder disciplinar toma um aspecto mais complexo, tendo em vista que permite ao administrador público (comandante) aplicar uma sanção pela prática de uma infração funcional, englobando bases que são próprias do meio militar; seus pilares bases: hierarquia e disciplina.

 V. O poder disciplinar militar

 Para os servidores públicos militares em geral, o poder disciplinar, está como uma manifestação do poder da administração pública, que tem como objeto a disciplina, e busca salvaguardar o cumprimento da prestação laboral do agente. Podendo sancionar àqueles que, por ventura, descumpram com os seus deveres e obrigações, e/ou abusem das suas atribuições inerentes a sua função.

Paralelo à definição acima mencionada, o poder disciplinar, enquanto capacidade de gerenciamento, constitui-se também numa proteção ao próprio agente militar, visto que, como detentor de postos e graduações – no seu exercício funcional –  além da mera questão de obediência às normas funcionais; há ainda as questões que envolvem a hierarquia, como questão a ser observada nos vários graus funcionais existentes em cada instituição.

Nesse sentido, a infração funcional militar, que diverge na sua conceituação da infração penal, pela sua abrangência aos princípios que são basilares aos militares, pode ser anti-hierárquica ou antidisciplinar. Nesse contexto, ainda que apenas anti-hierárquica, quando comprovada, forma-se como infração disciplinar militar; ou seja, a transgressão funcional disciplinar.

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Perceba que, a disciplina militar abrange as bases principiológicas da classe: hierarquia e disciplina. Isso, porém não quer afirmar que, toda infração disciplinar tem relação com fato característico com a disciplina militar, esta enquanto princípio. Podendo ter, evidentemente, uma relação com fato exclusivamente relacionado à hierarquia. Neste caso, estando relacionada à disciplina militar, agora, enquanto fim.

Recentemente, no nosso escritório de advocacia recebemos um cliente que fora punido, e não teve a concessão da possibilidade do aconselhamento [art. 10 – do CEDM/MG[3]], segundo a autoridade em sua fundamentação, porque teria, no cometimento da suposta transgressão, infringido a hierarquia e a disciplina militar.

Para expressar o poder disciplinar, importante voltar às conceituações iniciais e destacar a ótica da filosofia.

A filosofia, define a palavra poder, na esfera social, seja pelo indivíduo ou instituição, como a capacidade de conseguir algo, quer seja por direito, por controle ou por influência. O poder é a capacidade de se mobilizar forças militares, econômicas, sociais ou políticas para obter um resultado [BLACKBURN, 1997:301]. Muito embora, verdadeiramente esse poder pode ser exercido de forma consciente ou não.

Nesse prisma, poder disciplinar é a capacidade que tem a Administração de apurar infrações administrativas e impor as respectivas penalidades aos seus agentes públicos e demais pessoas submetidas à disciplina administrativa, gerando o controle necessário à existência do próprio Estado.

No seio militar, o poder disciplinar tem como base de sustentação, como já mencionado, a hierarquia e a disciplina.

Logicamente nesse argumento se mantém, na verdade – o fato imputado a um indivíduo militar, se comprovado, deve estar infringindo o poder disciplinar, e como consequência, formando um ato contrário à disciplina ou contrário à hierarquia; para só então, existir a responsabilização.

Assim, resta demonstrado a possibilidade de existência de fato conceituados como antidisciplinar; e também a possibilidade de existir o fato anti-hierárquico. Neste caso, observe, o fato em si, não se traduz como ato antidisciplinar (neste caso o “disciplinar” como princípio e não como conclusão), mas somente como sendo contrário à hierarquia.

Nessa ótica, tendo em vista que, apesar da natureza dos fatos que envolvem uma suposta infração, não necessariamente o ato será contrário a disciplina e a hierarquia. Podendo ser, tão somente contra a hierarquia (ou contra a disciplina) – e mesmo assim, se constituirá como transgressão disciplinar.

A única certeza presente em todos os fatos considerados com infrações castrense, é que, este se constituirá uma contrariedade a um dos princípios da institucionais (hierarquia ou disciplina), e apenas na sua conclusão, se pode vir a se tornar como transgressão disciplinar.

VI. O poder disciplinar militar e sua divisão e duplicidade em hierarquia e disciplina no âmbito do Direito Disciplinar Militar

 Na análise de uma infração disciplinar militar, por lógica jurídico-matemática evidente, deve haver uma mensuração entre todas as condições que envolveram os fatos, para se chegar a uma conclusão. Nesse contexto, não basta “simbolicamente motivar” uma decisão, pela não utilização do art. 10 – do CEDM/MG, e possibilitando a advertência ou o aconselhamento diversamente à sanção disciplinar, relatando apenas “contrariedade à disciplina e à hierarquia”; isso, sem a devida equidade.

Nesse sentido, a decisão deve ser amplamente motivada. Devendo a autoridade com competência para aplicação do art. 10 – do CEDM/MG, motivar sua decisão contrária à utilização do benefício, de forma a destacar no âmbito da suposta falta e da sua origem, podendo ser está antidisciplinar, anti-hierárquica, ou ainda englobando as duas situações infracionais; bem como o seu ato conclusivo como transgressão disciplinar; determinando a mensuração dos requisitos que possam levar a concluir pela não aplicação da prerrogativa.

São exemplos da diversidade de origem das transgressões disciplinares, dentre outras:

 (i) deixar de observar a cadeia de comando; note que o presente fato tem relação direta apenas com as circunstâncias hierárquicas, não havendo ponto inicial de confronto com a disciplina, neste caso, disciplina como preceito base da Instituição Militar e não como fim. (ii) deixar de observar princípios de boa educação e correção de atitudes; observe que o transgressor deixa de lado conceitos pertinentes à ética (que pode ser traduzida como disciplina íntima) e infringe diretamente a disciplina militar, porém sem qualquer relação com a hierarquia. Por fim, (iii) permutar serviço sem permissão da autoridade competente, neste caso, observe que existem dois atos: no primeiro, o acusado atua como permutante sem a devida autorização (infringência à disciplina); a consequência lógica do primeiro ato é a formação de um segundo, passar por cima da autoridade que tinha a competência para autorizar a permuta (infringência à hierarquia). 

 Como observado, o poder disciplinar – no âmbito militar – engloba de maneira direta pilares próprios ao seio dessa espécie de classe profissional: a hierarquia e a disciplina. Todavia, não necessariamente, uma infração disciplinar deve se constituir como violação dessas duas bases do direito militar. Podendo abarcar apenas um, ou mesmo os dois pilares institucionais.

Assim, há clara divisão e duplicidade nas bases funcionais do militarismo, constituindo a hierarquia e a disciplina apenas o início da percepção punitiva – duas fontes do poder disciplinar militar. Fontes estas que podem se confirmar, ou não, por meio no âmbito de um processo legal. Ao final, se constituindo a necessidade do sancionamento, este se dará como consequência no âmbito da própria disciplina militar.

Ah... Apenas como informação, a decisão mencionada acima – após apresentação de recurso disciplinar – foi devidamente anulada pelo escalão superior da própria Instituição Militar Estadual.


[1] HALPERN, B. Os demônios secretos de David. Messias, assassino, traidor, rei. Cambridge: B. Publicação Eerdmans, 2001.

[2] DOHRENWEND, Robert in GLADWELL, Malcolm. Davi e Golias. Editora Sextante, Rio de Janeiro/RJ, 2013. Página 19.

[3] Art. 10. Sempre que possível, a autoridade competente para aplicar a sanção disciplinar verificará a conveniência e a oportunidade de substituí-la por aconselhamento ou advertência verbal pessoal, ouvido o CEDMU.

Sobre o autor
Eder Machado Silva

Advogado. Militar da reserva da PMMG. Bacharel em Filosofia. Especialista em Direito Militar, Direito Constitucional e em Direito Processual Civil. Mestre em Direito. Doutorando em Direito Constitucional Comparado, pelo Centro Alemão de Gerenciamento de Projetos Jurídicos (ZRP) – em Leipzig na Alemanha. Membro Efetivo-Curricular da Academia de Letras João Guimarães Rosa – da PMMG. Professor universitário. Autor de livros jurídicos (E-mail: [email protected]).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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