A Lei nº 14.835, de abril de 2024, instituiu o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura, previsto no artigo 216-A da Constituição Federal como um sistema de gestão de políticas públicas de cultura e que há mais de 12 anos esperava regulamentação. Apesar de ser esperada há tanto tempo e ser um importante marco para o setor, a lei parece não ter tido tempo de maturação suficiente e traz disposições que ensejam preocupação.
De início, a norma traz conceitos que não condizem com a técnica jurídica (a definição de direitos culturais, por exemplo, peca ao confundir os conceitos jurídicos de direitos e garantias), além de se localizarem muito mais no campo da política do que do direito (como os conceitos de dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura). Não que não sejam definições importantes, mas a utilidade prática de estarem legalmente definidas é questionável.
Em seguida, ao determinar o papel do Estado na cultura, a norma diz que cabe a ele garantir as condições indispensáveis ao pleno exercício dos direitos culturais, o que parece condizente com as determinações do artigo 23, V e 215 da Constituição Federal – CF. No entanto, erra ao atribuir ao Estado a tarefa de identificar e coibir “atividade de cunho político-partidário ou personalista”, ação proibida ao Estado brasileiro por força de vedação à censura (art. 5º, IX da CF).
Não suficiente, a norma vai além e determina que o pleno exercício dos direitos culturais não deve possuir caráter político-partidário ou personalista, bem como não pode afrontar a dignidade e a moralidade pública ou incitar a prática de crimes. Ora, o que isso quer dizer? É claro que se alguém incita ato criminoso será punido pelo artigo 286 do Código Penal. Mas o que é, afinal, um “exercício de direitos culturais político-partidário”, “personalista” ou afrontoso à “dignidade e moralidade pública”? Caberá ao Estado essa definição? Novamente, o risco de censura é grande.
O exercício dos direitos culturais pelas pessoas é livre, intrinsecamente relacionado ao direito fundamental de liberdade de expressão artística, disposto no artigo 5º, IX da Constituição Federal e base da própria democracia. Não é possível, portanto, que a legislação infraconstitucional diga como esses direitos podem ou não ser exercidos sem recair, novamente, em atos de censura. As limitações aos direitos culturais estão na própria Constituição Federal e somente cabe a ela dizer como eles podem ou não ser exercidos.
Na justificativa da Emenda que originou essas disposições normativas, o senador Flávio Bolsonaro explica que o “exercício dos direitos culturais não devem ser desvirtuados para promoção de atos de cunho político-partidário ou personalista, afrontando o disposto no art. 37, §1º da Constituição Federal, tão pouco os recursos públicos devem ser empregados para o patrocínio de obras que incitem a prática de crimes, o ódio, o desrespeito a valores religiosos e à moralidade pública.”
Apesar da intenção expressa na justificativa da Emenda fosse evitar que o Estado apoiasse financeiramente manifestações artísticas e culturais que apresentassem tais caraterísticas, o que se criou foi um verdadeiro cerceamento inconstitucional à liberdade de expressão artística e cultural, bem como uma atribuição estatal, também inconstitucional, de coibir o exercício de direitos culturais que, a partir da análise subjetiva do próprio Estado, tenham caráter político-partidário ou personalista.
A longa espera pela lei do SNC, bem como a urgência de sua aprovação, não pode justificar disposições legais contrárias à Constituição e aos direitos fundamentais. Urgente, portanto, a análise crítica da norma e sua adequação às disposições constitucionais, em especial às relativas aos direitos culturais.
Cecilia Rabelo, Advogada, ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público. Especialista em Gestão de Políticas Culturais