Lei do Sistema Nacional de Cultura e suas (in) adequações

06/05/2024 às 17:58
Leia nesta página:

A Lei nº 14.835, de abril de 2024, instituiu o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura, previsto no artigo 216-A da Constituição Federal como um sistema de gestão de políticas públicas de cultura e que há mais de 12 anos esperava regulamentação. Apesar de ser esperada há tanto tempo e ser um importante marco para o setor, a lei parece não ter tido tempo de maturação suficiente e traz disposições que ensejam preocupação.

De início, a norma traz conceitos que não condizem com a técnica jurídica (a definição de direitos culturais, por exemplo, peca ao confundir os conceitos jurídicos de direitos e garantias), além de se localizarem muito mais no campo da política do que do direito (como os conceitos de dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura). Não que não sejam definições importantes, mas a utilidade prática de estarem legalmente definidas é questionável.

Em seguida, ao determinar o papel do Estado na cultura, a norma diz que cabe a ele garantir as condições indispensáveis ao pleno exercício dos direitos culturais, o que parece condizente com as determinações do artigo 23, V e 215 da Constituição Federal – CF. No entanto, erra ao atribuir ao Estado a tarefa de identificar e coibir “atividade de cunho político-partidário ou personalista”, ação proibida ao Estado brasileiro por força de vedação à censura (art. 5º, IX da CF).

Não suficiente, a norma vai além e determina que o pleno exercício dos direitos culturais não deve possuir caráter político-partidário ou personalista, bem como não pode afrontar a dignidade e a moralidade pública ou incitar a prática de crimes. Ora, o que isso quer dizer? É claro que se alguém incita ato criminoso será punido pelo artigo 286 do Código Penal. Mas o que é, afinal, um “exercício de direitos culturais político-partidário”, “personalista” ou afrontoso à “dignidade e moralidade pública”? Caberá ao Estado essa definição? Novamente, o risco de censura é grande.

O exercício dos direitos culturais pelas pessoas é livre, intrinsecamente relacionado ao direito fundamental de liberdade de expressão artística, disposto no artigo 5º, IX da Constituição Federal e base da própria democracia. Não é possível, portanto, que a legislação infraconstitucional diga como esses direitos podem ou não ser exercidos sem recair, novamente, em atos de censura. As limitações aos direitos culturais estão na própria Constituição Federal e somente cabe a ela dizer como eles podem ou não ser exercidos.

Na justificativa da Emenda que originou essas disposições normativas, o senador Flávio Bolsonaro explica que o “exercício dos direitos culturais não devem ser desvirtuados para promoção de atos de cunho político-partidário ou personalista, afrontando o disposto no art. 37, §1º da Constituição Federal, tão pouco os recursos públicos devem ser empregados para o patrocínio de obras que incitem a prática de crimes, o ódio, o desrespeito a valores religiosos e à moralidade pública.”

Apesar da intenção expressa na justificativa da Emenda fosse evitar que o Estado apoiasse financeiramente manifestações artísticas e culturais que apresentassem tais caraterísticas, o que se criou foi um verdadeiro cerceamento inconstitucional à liberdade de expressão artística e cultural, bem como uma atribuição estatal, também inconstitucional, de coibir o exercício de direitos culturais que, a partir da análise subjetiva do próprio Estado, tenham caráter político-partidário ou personalista.

A longa espera pela lei do SNC, bem como a urgência de sua aprovação, não pode justificar disposições legais contrárias à Constituição e aos direitos fundamentais. Urgente, portanto, a análise crítica da norma e sua adequação às disposições constitucionais, em especial às relativas aos direitos culturais.

Cecilia Rabelo, Advogada, ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público. Especialista em Gestão de Políticas Culturais

Sobre a autora
Cecilia Rabelo

Advogada, ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público. Especialista em Gestão de Políticas Culturais

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos