Anulabilidade do Casamento: inconstitucionalidades

13/05/2024 às 17:33
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. 2 CASAMENTO. 2.1 DA ANULABILIDADE DO CASAMENTO. 2.2 DO ERRO ESSENCIAL. 2.2.1 Da identidade, honra e boa fama. 2.2.2 Da ignorância de crime. 2.2.3 Do defeito físico ou moléstia grave e transmissível. 2.3 DA COAÇÃO. 3 DOS EFEITOS DA ANULABILIDADE DO CASAMENTO. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

RESUMO

O presente artigo aborda a constitucionalidade das questões apontadas pela lei como motivadoras à anulabilidade do casamento, em especial quando contraído com vício de vontade por um dos nubentes. Tem por finalidade verificar se os exemplos tratados como justificativas para a anulação possuem base constitucional ou se prestam a multiplicar situações discriminatórias que resultem na violação de direitos que, apesar de já protegidos pelo texto constitucional, precisam ser ratificados através de ações movidas aos tribunais superiores. Da abordagem do direito à intimidade daquele que contrai matrimônio e mantém no passado acontecimentos que ainda geram abalo psíquico ao desrespeito aos direitos dos supervulneráveis, o presente artigo não tem a intenção de esgotar as possibilidades, mas, provocar a análise da constitucionalidade da legislação pátria arraigada de preconceitos e em rota de colisão com a Constituição.

Palavras chave: matrimônio, anulação, vício, preconceito, discriminação.

ABSTRACT

This article addresses the constitutionality of the issues pointed out by the law as motivating the annulment of the marriage, especially when contracted with a willful defect by one of the spouses. Its purpose is to verify whether the examples treated as justifications for the annulment have a constitutional basis or lend themselves to multiplying discriminatory situations that result in the violation of rights that, although already protected by the constitutional text, need to be ratified through actions filed in the higher courts. From the approach of the right to privacy of the one who contracts marriage and maintains in the past events that still generate psychic shock to the disrespect for the rights of the super vulnerable, this article does not intend to exhaust the possibilities, but to provoke the analysis of the constitutionality of the legislation of the country. prejudices and on a collision course with the Constitution.

Keywords: marriage, annulment, addiction, prejudice, discrimination.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda questão referente ao casamento e à proteção concedida pelo Estado à instituição, examinando casos extremos em que o artigo 1.550 do Código Civil de 2002 permite sua anulabilidade, incluindo-se o debate quanto aos direitos adquiridos por terceiros de boa-fé e aqueles concedidos por sentença judicial transitada em julgado.

No desenvolvimento será proposto um exame dialético quanto à maneira como é compreendido pela doutrina o preenchimento de requisitos que condicionam e permitem salvaguardar-se do processo de anulação, em contrapartida com as modificações sociais ocorridas que resultaram em decisões judiciais concessivas de “novos” direitos.

Abordada a questão do erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge relacionada ao direito de intimidade do nubente que omite questões pretéritas que lhe causem abalo psíquico e que resta em conflito com o direito de informação do cônjuge mantido em erro por situação que, se revelada, provocaria a recusa em convolar núpcias.

Utilizamo-nos do método hipotético-dedutivo, dialético e comparativo com o intuito de identificar inconstitucionalidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias.

2 CASAMENTO

Enquanto para alguns o casamento é reconhecido como um contrato bilateral e para outros é tido como uma instituição, consonante é o pensamento que reconhece a união entre os nubentes como resultado de laços afetivos com o intuito de constituir família e prestarem apoio no campo material, psicológico e espiritual; sendo irrelevante a constituição de prole.

A doutrina destaca que “o casamento pode ser conceituado como a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de uma família e baseado em um vínculo de afeto” (TARTUCE, 2023, p. 43).

Ainda destacado pela doutrina na lição abaixo, temos que:

Ou como escreve Wetter: o “casamento é a união do homem e da mulher com o fim de criar uma comunidade de existência”. Reforça essas ideias a clássica definição de Clóvis Beviláqua: “o casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legitimando por ele suas relações sexuais; estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses e comprometendo-se a criar e educar a prole que de ambos nascer” (apud DINIZ, 2023, p. 20).

Questão interessante a ser observada é a que diz respeito aos autores citados pela doutrina quando se referem ao casamento como a união entre um homem e uma mulher, o que demonstra a existência de uma visão já superada atualmente, no entanto, deve ser ressaltado por justiça à obra pesquisada o destaque dado à Resolução n.º 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça que vedou a recusa, pelas autoridades de habilitação, da celebração do casamento civil e da conversão da união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo (DINIZ, 2023, p. 20).

Oportuno comentar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime e vinculante, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, reconheceu a união homoafetiva como núcleo familiar ao equiparar as relações de pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres.

Do sentido fundamental e comunitário da palavra, destaque deve ser feito a citação que aponta ser a família “a mais antiga de todas as sociedades, e a única que é natural”, o que corrobora com a definição de casamento que entendemos como sendo a união entre duas pessoas com laços de afinidade, independente da orientação sexual ou do gênero, com o intuito de formar uma família, emancipado de constituição de prole, salientando-se, contudo, ser o núcleo familiar formado por laços de consanguinidade e/ou afinidade a quem foi conferido pelo artigo 226 da Constituição Federal Brasileira especial proteção do Estado (ROUSSEAU, 2015, p. 11).

Em virtude de todas as disposições legais previstas desde a habilitação até a celebração do ato, compartilhamos do pensamento de que o casamento talvez seja o negócio que apresenta o maior número de requisitos especiais e solenes, em virtude de sua natureza de negócio jurídico complexo, especial e formal (TARTUCE, 2023, p. 62).

Face ao exposto, verifica-se que o casamento é precedido de requisitos legais desde a habilitação, como a apresentação de documentos para demonstrar capacidade dos nubentes e inexistência de fatores impeditivos e suspensivos que possam invalidar o ato, tendo a celebração do casamento natureza de “negócio” jurídico bilateral que pode ser precedido por pacto antenupcial.

Cumpridas as formalidades do processo de habilitação com a apresentação dos documentos elencados no artigo 1.525 e as solenidades previstas nos artigos 1.526 e 1.527, todos do Código Civil Brasileiro, será extraída certidão de habilitação com prazo de eficácia de noventa dias em que deverá ser realizada a celebração do matrimônio, observando-se, também, outras disposições legais de validação tais como: publicidade do ato; portas abertas durante a celebração; presença de testemunhas; afirmação inequívoca, livre e espontânea dos nubentes da vontade de casar; anotação do ato no livro de registro a fim de evitar qualquer invocação de nulidades ou anulabilidades.

2.1 DA ANULABILIDADE DO CASAMENTO

Trata o artigo 1.550 do Código Civil Brasileiro das situações relacionadas à incapacidade, carência de autorização, vício de consentimento, insuficiência para consentir ou para se manifestar, invalidade e incompetência, a prestar como razões suficientes a fundamentar pedido de anulação do matrimônio.

Em consonância com a proibição destacada pelo artigo 1.520 do Código Civil Brasileiro, destaca o inciso I do artigo 1.550 a invalidade do matrimônio àqueles que contraíram núpcias sem que um dos cônjuges tenha alcançado à idade núbil de 16 anos estipulada pelo artigo 1.517, salientando-se ser a referida idade fronteira a ser superada para igualar a puberdade, que é requisito etário de capacidade apontado como necessário para convolar núpcias (TARTUCE, 2023, p. 93).

Além da transposição do limite etático a inaugurar a puberdade, a doutrina destaca a necessidade de “certo grau de desenvolvimento intelectual” que vem acompanhado pela adolescência, ao passo que, convolando matrimônio antes de atingida a idade núbil, poderá o menor, ao completá-la, confirmar o casamento com a autorização de seu representante legal ou, na falta deste, com o suprimento judicial (DINIZ, 2023, p. 98).

Embora o presente artigo tenha relação com o ramo civilista, certo é que o direito é uno e indivisível, logo, entendemos importante a reflexão quanto à recente decisão da 6.ª Turma do STJ que, por maioria dos votos, utilizando-se da prática do distinguishing2 no REsp 1.977.165, rejeitou denúncia de crime de estupro de vulnerável praticado contra menina de 12 anos por homem com 19 anos ao considerar como relevantes: a proximidade etária; o nascimento de filho reconhecido pelo acusado; vontade da vítima de convívio, dentre outros.

Apesar de concordamos como sendo incoerente que a Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – considere o menor entre 12 e 14 anos maduro para pratica de ato infracional e cumprimento de medida socioeducativa quando em contraposição o Código Penal Brasileiro os considera carentes de discernimento para consentir com o ato sexual, entendemos não ser a relativização deste ordenamento o caminho a seguir, pois, resultaria no encorajamento de predadores sexuais que passariam a convolar núpcias com menores carentes que, em virtude da idade precoce e da imaturidade, não analisariam todos os efeitos do próprio consentimento e casariam iludidos por todo tipo de ânimo como: futura emancipação, amor platônico, “brincadeira de casinha”, dentre outros.

Ademais, além de entendermos que a referida decisão em epígrafe não observou os princípios da segurança jurídica, proteção à confiança, e isonomia quando contrariou – apesar de técnica baseada em sistema de distinguishing – o Recurso Especial Repetitivo n.º 1.480.881/PI de que originou a Súmula 593 do STJ, entendemos não ter sido observado o princípio da separação dos poderes, dando-se interpretação diversa da redação incontroversa do texto legal contido no § 5.º do artigo 217-A do Código Penal Brasileiro.

A par disso tem-se que, além da contrariedade da Lei, encontra-se em total dissonância com os interesses do incapaz a concordância de quaisquer de seus representantes legais quanto à possibilidade de relação sexual àquele que não completou 14 anos de idade, sendo ainda mais grave quanto ao ato libidinoso praticado com adulto, não servindo a gravidez resultante do ato como motivo a justificar a ratificação em face da relevância do bem jurídico tutelado (proteção da dignidade de crianças e adolescentes), motivo que nos faz considerar o ato nulo, em respeitosa discordância ao legislador e àqueles que consideram o ato anulável.

O artigo 1.552 do Código Civilista Brasileiro traz o rol dos legitimados a requerer a anulação do casamento dos menores de 16 anos, ressaltando-se no artigo 1.555 do mesmo ordenamento legal ser de cento e oitenta dias o prazo para requerer a anulação nos casos em que menor em idade núbil não teve a autorização de seu representante legal para convolar núpcias, sendo certo que o referido prazo tem início para o nubente incapaz na data em que atinge a maioridade, da sua morte para os herdeiros necessários e a partir do casamento para o representante legal; ressalvando-se que o artigo 1.551 do Código Civil Brasileiro destaca possibilidade de convalidação (in)voluntária do ato naqueles casos em que resultou gravidez tomando-se impossibilitada a anulação por motivos de idade (TARTUCE, 2023, p. 94).

Aponte-se ainda que o parágrafo 2.º do artigo 1.555 do Código Civil de 2002 ressalta a impossibilidade aos representantes legais do incapaz requerer a anulação do casamento que teve sua presença na celebração, uma vez que ao optarem por permanecer inertes e silentes, autorizam de forma tacita convalidando o ato; restando comportamento contraditório ao dever de boa-fé objetiva o requerimento posterior de anulação (TARTUCE, 2023, p. 94).

Mencionado pela doutrina como outra forma a convalidar o vício que tornava o matrimônio irregular, tem-se o silêncio ou a inércia dos legitimados que deixaram de frustrar a finalização dos prazos decadenciais estabelecidos pelo artigo 1.560 do Código Civil de 2002 (RODRIGUES apud DINIZ, 2023, p. 30).

Outro destaque a ser observado é que, para a doutrina, a teoria das nulidades na Parte Geral do Código Civil não poderá ser invocada quando ao se falar em capacidade matrimonial de menores, em virtude do tratamento diferenciado dado aos absoluta e relativamente incapazes prevalecendo à anulabilidade do ato para ambos, situação que destoa ao tratamento dado aos demais negócios jurídicos que declaram nulo os atos praticados por menores absolutamente incapazes e anuláveis aqueles praticados pelos menores relativamente incapazes (TARTUCE, 2023, p. 95).

Pedimos vênia para abordar posteriormente, em outro subtítulo, o inciso III do artigo 1.550 do Código Civilista Brasileiro que trata da anulação do matrimônio por vício de vontade nos termos dos artigos 1.556 a 1.558 do Código Civil, em virtude da necessidade de aprofundamento do tema.

Em continuidade, temos no inciso IV a possibilidade de requerimento de anulação das núpcias contraídas por incapaz de consentir ou manifestar inequivocamente o consentimento, sendo necessário lembrar que, apesar de existir entre os artigos 3.º e 4.º do Código Civil distinção entre absoluta e relativamente incapaz, o casamento será anulável para ambos os casos, em consonância com o destaque feito no parágrafo acima atinente à impossibilidade de invocação das nulidades da Parte Geral do Código Civil, segundo entendimento doutrinário.

Outrossim, estão incluídos na possibilidade de anulação prevista no inciso IV do Código em vigor os ébrios habituais, os toxicômanos e os que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; excepcionando-se o caso do pródigo que não poderá ter o matrimônio anulado sob o argumento de ser relativamente incapaz e/ou de não ter sido assistido na celebração do ato, tendo em vista que sua limitação está relacionada à dilapidação patrimonial (DINIZ, 2023, p. 103).

Questão interessante é que na ausência de pacto antenupcial celebrado pelo pródigo será adotada a comunhão parcial como regime de bens não existindo imposição do regime de separação obrigatória por falta de prescrição no artigo 1.641 da codificação civilista, podendo a realização de pacto antenupcial com eleição de outro regime de bens, com ou sem assistência, observadas as controvérsias, ocasionar unicamente na anulação do pacto, subsistindo a este o casamento contraído (TARTUCE, 2023, p. 101).

Quanto à pessoa que, apesar de não ser ébrio habitual ou toxicômano, mas encontrando-se sob o efeito de álcool ou de entorpecente no momento da celebração do ato será de rigor o reconhecimento de sua incapacidade para consentimento ou manifestação inequívoca, devendo tal circunstância ser verificada no momento da celebração (GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 93).

A livre expressão da vontade pelas partes foi prestigiada pela Lei 13.146 de 6 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência – ao acrescentar o parágrafo 2.º no artigo 1.550 da legislação civilista brasileira, observando-se a necessária cautela a fim de se evitar situações de desvirtuamento doloso na captação da vontade do nubente com deficiência (GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 87).

Com permissão dada pelo artigo 1.542 do Código Civil, a celebração do matrimônio pode ser efetivada com a representação de procurador com mandato outorgado através de instrumento público e com poderes especiais por um dos nubentes, ressaltando-se que o prazo de validade da procuração não deve ser confundido com o termo de eficácia da habilitação para realização do ato que também é de noventa dias; tornando-se passível de anulação o casamento realizado após a revogação do mandato sem o conhecimento do outro contraente e do procurador, salientando-se ainda que a decretação da invalidade pelo juiz se equipara à revogação, sendo salvaguardada a possibilidade de convalidação pela coabitação posterior. (DINIZ, 2023, p. 44).

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Compartilhamos da opinião da doutrina que entende “haver incorrido em impropriedade técnica o legislador, uma vez que, se o mandato é revogado, quedar-se-ia ausente a manifestação de vontade do cônjuge outorgante, de maneira que o casamento celebrado deveria ser considerado inexistente e não simplesmente inválido”, salientando-se ainda que entendemos que a referida situação pode ser comparada a uma negativa da afirmação necessária prevista no artigo 1.535 do CC/2002 resultando em condição impeditiva a convalidar o ato, mesmo com a coabitação posterior (GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 93).

Cumpre assinalar como passível de anulação o matrimônio por incompetência relativa da autoridade celebrante em razão do local quando realizada a habilitação para o casamento no distrito X e, por conseguinte, o matrimônio é celebrado por juiz de paz no distrito Y, salientando-se ainda como causa de incompetência relativa à celebração do casamento a cerimônia presidida por autoridade sem competência no local de domicílio dos nubentes (DINIZ, 2023, p. 103).

Ante o exposto, importante destacar que, na análise da questão de anulabilidade do casamento por incompetência relativa da autoridade celebrante em razão do local e da pessoa (ratione loci e ratione personae3), considerável ponderação deve ser feita para identificar a quem assiste o interesse para a anulação ou a convalidação do ato celebrado por autoridade incompetente, assinalando-se não poder ser reconhecida a qualquer pessoa a legitimidade para arguir a nulidade por motivo de incompetência em razão do local e em razão da pessoa, visto que o interesse para arguir tal anulabilidade é dos contraentes do matrimônio ou, sendo o caso, de seus representantes legais dentro do prazo de dois anos nos moldes do inciso II do artigo 1.560 do Código Civil Brasileiro.

Destarte, entendemos que, em virtude do interesse dos legitimados e em consonância com o princípio da boa-fé associado ao da celeridade e economia processuais, deveria o legislador ter considerado a possibilidade de permitir aos nubentes o registro em cartório do ato celebrado por autoridade incompetente ratione loci e ratione personae com a finalidade de alcançar os efeitos do artigo 1.554 do Código Civil Brasileiro, salientando-se que não faz sentido permitir aos legitimados convalidar o vício com a própria inércia ao não intentar a ação de anulabilidade dentro do prazo decadencial e impedi-los de sanar o defeito com a ação de efetivar o registro do ato em cartório.

Importante destaque faz a doutrina ao ressaltar como sendo nulo ou inexistente, para alguns autores, o matrimônio realizado por outra autoridade que não seja o juiz do casamento, citando como exemplo o ato celebrado por juiz da infância e juventude, delegado de polícia ou promotor de justiça (DINIZ, 2023, p. 103).

Neste sentido, temos que a incompetência relativa que torna o ato anulável quando a celebração do casamento se der por juiz de paz incompetente ratione loci ou ratione personae é passível de convalidação, diferentemente da celebração do matrimônio quando celebrado por quaisquer outras autoridades tornando o ato nulo em virtude da incompetência ratione materiae4.

2.2 DO ERRO ESSENCIAL

O erro é o julgamento equivocado entre o objeto ou o objetivo que se pretenda alcançar e aquele que possui semelhança com o desejado, podendo ser a falsa percepção da realidade influenciada por fatores de ordem externa, interna, natural, psíquica, social, moral ou mesmo por provocação de terceiro com má-fé.

Aponta a doutrina que, “quando o agente, por desconhecimento ou falso conhecimento das circunstâncias, age de um modo que não seria a sua vontade, se conhecesse a verdadeira situação, diz-se que procede com erro” (PEREIRA apud GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 88).

Discordamos da doutrina ao considerar que só é possível anular o matrimônio quando a pessoa se engana sozinha, por entendermos que, mesmo assumindo a figura do dolo – quando praticado por terceiros – o erro continua como essência do ato que conduz ao objeto ou objetivo equivocado; salientando-se que o impedimento da anulabilidade nos casos de erro praticado por terceiros prejudicaria o retorno das partes ao estado anterior, beneficiando-se o agente que age com má-fé, pois, usufruiria dos benefícios e garantias atinentes a certos regimes de bens, resultando na recorrência de atitudes de dolo com o intuito de alcançar resultados ilegítimos e antijurídicos (VENOSA apud TARTUCE, 2023, p. 96).

Nesse contexto, destaca o artigo 1.556 do Código Civil de 2002 a possibilidade de anulação das núpcias quando houver por parte de um dos contraentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge, sendo apontados pela doutrina três pressupostos cumulativos a justificar a anulação: anterioridade do defeito ao ato nupcial, desconhecimento do defeito pelo cônjuge enganado e insuportabilidade da vida em comum (DINIZ, 2023, p. 99).

Importante que se destaque a modificação efetivada pela Lei 13.146 de 6 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência – no artigo 1.557 do Código Civil no inciso III com a inclusão da expressão “que não caracterize deficiência”, assim como, a revogação do inciso IV para corrigir e impedir qualquer tipo de discriminação relacionada à pessoa com deficiência, em prestígio ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana contido no artigo 1.º, III da CRFB/88.

Ato contínuo, com o intuito de fazer cumprir o artigo 1.º do referido Estatuto que destacou a importância de “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência” fora incluído o parágrafo 2.º ao art. 1.550 do CC/2002 em reconhecimento ao direito da pessoa com deficiência mental ou intelectual contrair matrimônio.

2.2.1 Da identidade, honra e boa fama

Com o avanço da tecnologia e com o surgimento de outros meios de comunicação que contribuem cada vez mais para a formação de novos relacionamentos interpessoais, em especial nos ambientes virtuais, as pessoas passaram a criar e a se apresentar como uma espécie de “avatares no metaverso” com fotos, roteiros e cenários virtuais postados em redes sociais demonstrando vidas e condições que não existem no mundo real, mas servem, em algumas situações, como verdadeiras armadilhas para induzir terceiros ao erro.

A doutrina apresenta dois aspectos para discernir o erro relacionado à identidade do cônjuge, sendo o primeiro relacionado à identidade física que individualiza a pessoa dentro da espécie e o segundo a identidade civil que a identifica na sociedade, sendo certo que sobre o erro quanto à identidade física da pessoa a doutrina aponta que não há muito que se falar, pois, existe o entendimento de ser quase impossível que o nubente se engane quanto à pessoa do outro cônjuge, salvo nos casos de casamento por procuração (DINIZ, 2023, p. 99).

Em virtude do exposto, é notória a existência de diversos casos de pessoas que conversaram por aplicativos de namoro e descobriram, depois de meses de um relacionamento virtual “estável”, que a pessoa com quem mantinham afinidade era completamente diferente daquela da foto postada ou que suas qualidades estavam muito distantes das que foram compartilhadas nas redes sociais, devendo ser destacado o caso emblemático do jogador de vôlei italiano Roberto Cazzaniga que acreditou estar por quinze anos em um relacionamento virtual com a modelo brasileira Alessandra Ambrósio, vindo a perder com o golpe a quantia de setecentos mil euros, fato a demonstrar que não é rara a possibilidade de utilização de subterfúgios digitais para enganar (GLOBO, 2021).

A par disso, tem-se ainda o lançamento de aplicativos como o REFACE5 da Apple que modifica o rosto facilitando o processo de ilusão e permitindo ao golpista se utilizar de um mandatário para fazer-se representar no ato de celebração do matrimônio, situação que justificaria a anulabilidade do ato com fundamento no inciso I do artigo 1.557 do Código Civil Brasileiro.

O conhecimento posterior ao casamento contraído com irmão gêmeo daquele com quem se pretendia convolar núpcias é, também, citado pela doutrina como sendo uma situação resultante de erro essencial relacionado à pessoa do outro cônjuge quanto à identidade física (DINIZ apud TARTUCE, 2023, p. 96).

A doutrina destaca ainda como qualidades essenciais atinentes à identidade civil aquelas que se referem ao estado de família e religioso citando o casamento com divorciado ou viúvo supondo-o solteiro, ou quando católico praticante considera intolerável ter contraído núpcias com um padre, ou àquele educado severamente que se casa com filha resultante de relação concubinária, no entanto, entendemos impossível a existência de erro atinente à identidade civil relacionado ao estado de solteiro, divorciado ou viúvo, tendo em vista que tal informação fica acessível no momento da apresentação em cartório dos documentos necessários à habilitação ao casamento podendo ser consultado pelo nubente, além de se tratar de situação discriminatória (DINIZ, 2023, p. 100).

Compartilhamos do entendimento da doutrina quanto à impossibilidade de reconhecimento da invalidade do casamento no caso do indivíduo que foi educado severamente e celebrou matrimônio com filha advinda de relação concubinária, por consequência da extinção da discriminação na filiação operada pela norma constitucional e pela legislação (DINIZ, 2023, p. 100).

Apontados ainda pela doutrina e pela jurisprudência como exemplos motivadores à anulabilidade do matrimônio por erro essencial sobre a honra e a boa fama do outro cônjuge temos: “o casamento celebrado com homossexual, com bissexual, com transexual operado que não revelou tal condição, com viciado em tóxicos, com pessoa violenta, com viciado em jogos de azar, com pessoa adepta de práticas sexuais não convencionais, entre outras hipóteses” (DINIZ apud TARTUCE, 2023, p. 97).

Ressalta ainda a doutrina como condições para a caracterização do erro essencial sobre a honra e a boa fama do outro nubente: o comportamento do outro cônjuge anterior ao casamento que o desqualifique, inexistindo motivo a ser invocado quando o comportamento inadequado é da família do cônjuge; desconhecimento anterior ao casamento de conduta que seja desonrosa; persistência em manter conduta desonrosa após o matrimônio; repulsa pelo convívio comum diante de atitude indecorosa; emotividade psíquica daquele que se sentiu enganado (DINIZ, 2023, p. 100).

Em virtude de tais considerações, entendemos que a persistência em manter conduta desonrosa após o matrimônio tem relação única e exclusiva com o descumprimento do dever de fidelidade e que o verbo “manter” pressupõe conhecimento anterior da referida conduta, fato a desvirtuar o pressuposto cumulativo de desconhecimento do defeito pelo cônjuge enganado, restando impossibilitada a anulação das núpcias contraídas com erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge.

Noutro giro, importante ressaltar a sensibilidade quanto ao tema relacionado ao erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge quando se tratar de travesti, de homossexual, de bissexual e de transexual, destacando-se, em alguns casos, a impossibilidade do cônjuge enganado diferenciar o sexo biológico frente ao gênero com que se percebe e se apresenta o transexual operado, o que poderia fundamentar erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge quanto à identidade física, ou, quanto aos conceitos subjetivos de honra e boa fama.

Importante destaque foi feito na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.275 ao citar distinção feita, com muita propriedade, pela doutrina quanto às particularidades na maneira de percepção dos travestis, dos homossexuais e dos transexuais diante de si e dos outros:

A transexualidade é uma divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e morfológicas perfeitas que associam o indivíduo ao gênero oposto. Caracteriza-se por um forte conflito entre o corpo e a identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar –hormonal e cirurgicamente – o corpo ao gênero almejado. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente, o transexual sente-se como se tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita. O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar. Enquanto o homossexual aceita seu sexo biológico, o transexual rejeita seu próprio sexo anatômico. O transexual masculino tem ego corporal e psíquico femininos. Com o transexual feminino, ocorre o contrário.

[...]

Já travestis são pessoas que, independente da orientação sexual, aceitam o seu sexo biológico, mas se vestem, assumem e se identificam como do gênero oposto. Não sentem repulsa por sua genitália, como ocorre com os transexuais. Por isso não perseguem a redesignação cirúrgica dos órgãos sexuais, até porque encontram gratificação sexual com o seu sexo (DIAS apud MELLO, 2018, p. 11).

Aproveitando o ensejo, importante mencionar a decisão do Supremo Tribunal Federal na referida ADI n.º 4.275 que reconheceu a possibilidade de alteração, pela via administrativa ou judicial, do prenome e do sexo na identidade civil sem a necessidade, anterior ao ato, de cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais e patologizantes, destacando-se ainda o direito ao transexual de sigilo da averbação da modificação do prenome e do sexo no registro de identidade; salvaguardado acesso a tal informação àqueles que comprovem judicialmente o justo motivo.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 reconheceu o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação de meios concretos para incriminar qualquer ato de preconceito relacionado à homofobia e transfobia em relação à comunidade LGBTI+, demonstrando que não há mais espaço para tolerar qualquer tipo de comportamento discriminatório.

Neste sentido, de extrema importância é a ponderação entre o direito constitucional à privacidade, à intimidade e à vida privada, corolários ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, exercido pelo transexual ao silenciar quanto à sua condição pretérita; em contrapartida com o direito de informação do futuro cônjuge de ter esclarecida, antecedente à celebração das núpcias, a situação anterior do futuro companheiro.

Pedimos vênia para discordar da doutrina e da jurisprudência quando se utilizam do casamento com homossexual, bissexual ou transexual como exemplos de erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge, tendo em vista que a opção sexual e o gênero com que cada um se percebe diante do mundo estão associados à própria intimidade.

Não menos delicada é a menção feita pela doutrina do exemplo atinente à prova relacionada à má vida ou prostituição da mulher, anterior ao casamento, tendo em vista o subjetivismo do que poderia ser considerada a expressão “má vida” ou “prostituição” quando relacionado à mulher que, historicamente, sofre com inúmeras discriminações durante sua luta pela libertação sexual e pela busca da igualdade de direitos e deveres entre os gêneros (DINIZ, 2023, p. 100).

Ratificamos a laicidade deste artigo para citar trecho da Bíblia que já destacava em Jo8:1-11 a forma preconceituosa, violenta e patrimonial com que os homens tratavam as mulheres e seus atos, associando o adultério a uma espécie de prostituição que deveria ser punido com uma morte violenta por apedrejamento (JOÃO, 2004, p. 1.395).

Aduz de oportuno ressaltar que a violência de gênero, atentatória à dignidade da pessoa humana, prevalece de forma absurda como prática do Talibã no Afeganistão, demonstrando a necessidade de vigília dos pequenos atos de preconceito para que não se tornem futuras “novas” práticas discriminatórias contra o sexo feminino (GLOBO, 2015).

Faz-se de extrema necessidade a reflexão etimológica dos conceitos subjetivos de honra e boa fama, para que se pondere a adequação dos conceitos de má vida e prostituição aos princípios constitucionais de não discriminação e dignidade da pessoa humana, a fim de que sejam extirpadas interpretações que resultem em contínuos atos de apedrejamento do gênero feminino.

Compartilhamos do entendimento citado pela doutrina e jurisprudência que reconhece como causa suficiente à anulação do casamento o conhecimento, após a celebração do matrimônio, de alcoolismo habitual ou vício em entorpecente do cônjuge, pois, entendemos que a utilização frequente de substâncias psicoativas ou do álcool possa resultar em distúrbios mentais, aumento de comportamento agressivo, sensação de perseguição, ilusões e outras perturbações, assim como as dívidas contraídas com traficantes de entorpecentes colocariam em risco a vida do outro cônjuge e da futura prole.

Deverá ser analisado com muito cuidado a anulação motivada por percepção de espírito violento do outro nubente, pois, entendemos como resultado do ato anulatório o retorno dos nubentes ao status quo ante6, o que poderia prejudicar direitos patrimoniais do cônjuge já vitimado pela violência consumada pelo outro consorte, sendo mais benéfico à vítima de violência de gênero utilizar-se do divórcio para garantir direitos patrimoniais, salvaguardando-se das garantias previstas no artigo 9.º da Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006.

Em relação à possibilidade citada pela doutrina atinente à anulação motivada por desconhecimento anterior às núpcias de vício do cônjuge em jogos de azar, julgamos necessária a análise de dois aspectos: estando o primeiro relacionado à possibilidade de dilapidação patrimonial e o segundo relacionado à possibilidade de exposição do outro cônjuge e de futura prole a riscos resultantes das dívidas contraídas com as apostas.

Descartada está à utilização da dilapidação patrimonial como motivo a justificar a anulação em virtude dos mesmos fundamentos que impedem a anulação em relação ao pródigo, entretanto, a exposição do outro cônjuge e de futura prole aos riscos das dívidas contraídas com as apostas teria relação com os mesmos riscos daquele que conhece de vício do outro nubente em entorpecentes em virtude da possibilidade de contrair dívida relacionada a atividade criminosa que colocaria em risco a vida do outro consorte e de futura prole.

Outra hipótese citada pela doutrina diz respeito àquele adepto às relações não convencionais citando como exemplo a prática de relações incestuosas mantidas entre pais e filhos, nos parecendo que a doutrina opta por destacar a necessidade de manutenção de um salutar ambiente familiar em que não se extrapole os limites de moralidade e dos bons costumes, fato tratado também pelo legislador ao destacar o impedimento do casamento entre ascendentes com descendentes de parentesco natural ou civil e entre afins em linha reta.

Importante destacar que a doutrina não esgota as possibilidades que possam justificar a anulação do matrimônio por erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge naquilo que diga respeito à identidade, sua honra e boa fama, tornando insuportável a vida em comum.

2.2.2 Da ignorância de crime

O descobrimento, posterior ao casamento, de cometimento de crime pelo outro nubente e que torne insuportável a vida em comum àquele a quem tal condição foi omitida é a segunda hipótese citada no artigo 1.557 do Código Civilista referente ao erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge.

A doutrina faz importante análise ao verificar que, diferentemente do Código Civil de 1916 o atual de 2002 não fez alusão à necessidade de o crime ser inafiançável, nem de ter ocorrido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 90).

Preambularmente, importante salientar que no inciso XLVII, alínea b e no inciso LVII ambos do artigo 5.º contido no rol do Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a Constituição da República Federativa do Brasil defende como princípios basilares a presunção da inocência e a vedação de penas de caráter perpétuo.

Neste sentido, apesar de parte da doutrina, jurisprudência e, em especial, o Supremo Tribunal Federal ter considerado (até pouco tempo) que o trânsito em julgado se consolidava com decisão prolatada por órgão colegiado de segundo grau; recente e assertiva é a decisão da Corte que modificou a visão do momento em que se passa a considerar o agente como o autor de um crime, estipulando como necessário o esgotamento de todos os meios de defesa para que, só então, alcançado o trânsito em julgado, se possa apontar alguém como sendo o responsável pelo cometimento do fato delituoso.

Desta feita, em virtude da interpretação do inciso II do artigo 1.557 do Código Civil de 2002 e da insegurança quanto à verdadeira autoria de um crime, que deverá ser precedido de um procedimento em que se observe o devido processo legal e a ampla defesa, entendemos ser necessário que se consolide o trânsito em julgado da sentença penal condenatória com o esgotamento de todos os recursos para que se inicie qualquer discussão quanto à ignorância de crime anterior como motivação para a anulação das núpcias por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge.

Ademais, entendemos que a anulação do casamento motivada por ignorância de crime anterior às núpcias constitui imposição de dupla penalidade e/ou espécie de pena de caráter perpétuo vedado pelo inciso XLVII, alínea a do artigo 5.º da CRFB/88, restando inconstitucional o inciso II do artigo 1.557 do Código Civilista Brasileiro.

2.2.3 Do defeito físico ou moléstia grave e transmissível

Defende o inciso III do artigo 1.557 do Código Civil de 2002 como sendo causa para a anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência, ou de moléstia grave ou transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência.

A doutrina destaca que os “defeitos dessa natureza são: hermafroditismo, ou sexo dúbio, deformações genitais (JTJ, Lex, 251:39), ulcerações penianas, hérnias inguinais volumosas, infantilismo, vaginismo ou atresia dos órgãos genitais femininos, ausência vaginal congênita” (DINIZ, 2023, p. 101).

Destaque feito também pela doutrina se refere à impotência sexual (coeundi7) física, psíquica ou relativa como uma das possibilidades de defeito a justificar a anulação das núpcias, visto que impede o objetivo do matrimônio que é a realização da união afetiva entre duas pessoas com a satisfação sexual; em contrapartida, a infecundidade (fecultatem generandi8) e a incapacidade para a concepção não é causa suficiente para fundamentar a anulação, por não ser a procriação o único objetivo do matrimônio, devendo ser ratificado que é justamente a impossibilidade de satisfação sexual resultante de defeito que torne intolerável a vida em comum a causa a justificar anulação do matrimônio em virtude de erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge por defeito físico. (DINIZ, 2023, p. 101).

A tuberculose, a AIDS, a hepatite e a sífilis são exemplos de moléstias graves e transmissíveis citadas pela doutrina, no entanto, entendemos como necessária a ponderação do julgador quanto ao real motivo do pedido de anulação em virtude da inércia na realização de exames preliminares à celebração das núpcias. (TARTUCE, 2023, p. 97).

Corroborando como acima exposto, entendemos que a análise das situações que possam permitir a anulabilidade do matrimônio por erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge que estejam relacionadas a defeito físico ou moléstia grave e transmissível deva ser analisada com muito cuidado pelo julgador, a fim de humanizar o julgamento com o afastamento de qualquer possibilidade de discriminação e revitimização daquele que já se encontra em estado de vulnerabilidade física e psíquica provocada pelo enfrentamento da patologia.

2.3 DA COAÇÃO

O consentimento viciado de um dos cônjuges, resultante de forte influência, de ordem negativa, parida de fundado temor de mal considerável e iminente para a sua vida, sua saúde, sua honra e também para a vida, a honra e a saúde de seus familiares constitui-se como coação passível a requerer anulação do casamento, por ato viciado, praticado sob o manto da coação, como se depreende da leitura do artigo 1.558 do Código Civil Brasileiro.

Evidenciado pela doutrina, a apreciação da coação deve seguir a inteligência do artigo 152 do Código de 2002 que proclama a necessidade de análise considerando-se o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento e todas as demais circunstâncias que possam ter influenciado na gravidade do ato coator (TARTUCE, 2023, p. 95).

Apontados pela doutrina como sendo três os requisitos, a saber, para a caracterização da coação no casamento: violência psicológica sofrida pelo cônjuge; declaração de vontade viciada; receio sério e fundado de grave dano à pessoa, à família ou aos bens do cônjuge (GAGLIANO; FILHO, 2023, p. 92).

O próprio Código Civilista de 2002, por meio de seu artigo 153, se encarregou de diferenciar a coação da simples ameaça de exercício normal de um direito ou do simples temor reverencial, destacando a doutrina que o casamento contraído com o medo de causar desgosto aos pais ou a pessoa a quem se deva respeito ou obediência não se constitui como condição suficiente à arguição de anulabilidade por coação, tendo em vista que, o referido comportamento temeroso não ultrapassa os limites do simples temor reverencial.

No entanto, faz-se de extrema importância a análise do caso concreto, pois, caso se trate de filha inexperiente e incapaz de se sustentar ameaçada de perder o amparo do pai que a impõe convolar matrimônio sem observar sua íntima e livre vontade, presentes se encontram os requisitos necessários à anulação do casamento por coação, ficando ao coagido reconhecida a legitimidade para requerer a anulação (DINIZ, 2023, p. 102).

Não está incluído como causa de anulabilidade do matrimônio sob o fundamento de ter sido contraído por imposição de ato de coação, por exemplo, o caso daquele que convolou núpcias para cumprir termo atinente à garantia de promessa de ser incluído em testamento para recebimento de legado ou herança, mesmo que tal negócio não se conclua por alguma invalidade do instrumento testado ou por descumprimento da promessa pelo testador, constituindo-se tais condições como mera inadequação ou inadimplemento de negócio jurídico.

3 DOS EFEITOS DA ANULABILIDADE DO CASAMENTO

Importante perquirição deve ser realizada quanto aos efeitos da anulação do matrimônio por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge no regime de bens obrigatório, convencional ou estipulado pelos nubentes por meio do pacto antenupcial, ressaltando-se que, entendemos que a anulabilidade das núpcias produz efeitos retroativos em relação aos direitos e deveres entre os cônjuges, sendo ressalvada a preservação dos direitos adquiridos por terceiros de boa-fé e aqueles obtidos por sentença judicial transitada em julgado, conforme estabelecido pelo artigo 1.563 do CC/2002.

Em contraposição à linha de raciocínio do parágrafo anterior, parte da doutrina expõe que na nulidade opera-se efeitos ex tunc9 salientando que a referida decisão não é totalmente ineficaz por preservar direitos adquiridos onerosamente por terceiros de boa-fé, ou, aqueles obtidos por decisão judicial transitada em julgado; enquanto que na anulabilidade os efeitos operados são ex nunc10. (DINIZ, 2023, p. 97).

Já outra parte da doutrina adota posicionamento diferente ao exposto no parágrafo anterior salientando que a questão referente à produção de efeitos acabou por resolvida com a realização da VI Jornada de Direito Civil em 2013, momento em que fora decido que a anulação opera efeitos tanto para o futuro quanto para o passado (TARTUCE, 2023, p. 104).

Ante todo o exposto, destacamos que o divorcio não torna nulas as regras atinentes ao regime de bens na partilha, motivo que nos remete a concluir que não faria sentido ter o legislador criado a possibilidade da anulação da vida em comum tendo como benefício único, ao cônjuge mantido em erro, o retorno ao estado civil de solteiro; remetendo-nos ainda ao entendimento de ser paradoxal e prejudicial aos interesses daquele que argui a referida anulabilidade que esta opere efeitos somente para o futuro, permitindo-se a reclamação de direitos de partilha sobre os bens do nubente mantido em erro.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com efeito, no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil já se mostra o caminho assumido para a construção dos princípios constitucionais que servirão de guia ao alcance de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e na observância das garantias fundamentais.

O presente artigo constatou, através da análise de constitucionalidade da lei civilista, que se mantém uma visão retrógrada e inaceitável da utilização de motivos e exemplos justificadores à anulação do matrimônio por erro essencial, principalmente quando se trata da percepção de si diante dos outros em uma sociedade que ignora a diversidade e prefere manter padrões discriminatórios preconcebidos.

Certo é que, não podemos dispensar, na construção das leis e das normas, a observância dos princípios constitucionais que estruturam a base do Estado Democrático de Direito, ressaltando-se a importância da constante vigilância e revisitação à legislação pátria, a fim de educar e extirpar de nossa sociedade qualquer tipo de atitude discriminatória que possa vir a afetar os direitos e garantias fundamentais do individuo.

REFERÊNCIAS

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TARTUCE, Flávio. Direito civil: Direito de Família. v.5. Disponível em: Minha Biblioteca, (18th edição). Grupo GEN, 2023.


  1. ................................

  2. Ato de avaliação, análise de uma singularidade identificada que possa ser suficiente a reconhecer a superação total (overruling) ou parcial (overturning) de um precedente paradigma.

  3. Em razão do local e em razão da pessoa.

  4. Em razão da matéria.

  5. Reface é um aplicativo que, a partir de uma selfie, permite a troca do rosto e a criação de fotografias e vídeos com a nova aparência.

  6. Retorno ao estado anterior, efeito retroativo.

  7. Que impede a relação sexual.

  8. Que impede a concepção.

  9. Efeitos retroativos.

  10. Efeitos não retroativos.

Sobre o autor
Luiz Gustavo de Mello Pereira

Advogado; Bacharel em direito pela Universidade Estácio de Sá; Projeto de pesquisa apresentado ao curso de Pós-Graduação lato sensu em Advocacia Cível, realizado na Faculdade de Direito da Fundação do Ministério Público, com a Orientação do Prof. Ms. Claiton Rossa da Rocha.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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