O desalento do pós-moderno.

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21/05/2024 às 22:59

Resumo:


  • A pós-modernidade reflete individualismo exagerado, pluralismo e diversidade em diversas áreas como arquitetura, literatura, arte, moda, economia e política.

  • A crise na modernidade líquida, destacada por Zygmunt Bauman, revela a perda do poder de agência do Estado e a emergência de novos sistemas sociais.

  • A globalização e a crise migratória contribuem para a sensação de insegurança e desconfiança mútua, alimentando discursos xenofóbicos e políticas belicosas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O desalento do pós-moderno.

 

 

Resumo: Foi a segunda fase do pós-modernismo que começou em 1960 juntamente com a Erra Digital que passou a refletir em tudo, na arquitetura, na literatura, arte, moda, economia e política. E, tão caracterizado pelo individualismo exagerado, além do pluralismo e diversidade. Foi marcado também pela espetacularização que serve tanto para entreter quanto para escandalizar. Deve-se avisar que a linha entre o modernismo e o pós-modernismo é tênue e, muitas de suas características só propiciam o desalento. As características da pós-modernidade podem ser resumidas em alguns pontos: propensão a se deixar dominar pela imaginação das mídias eletrônicas; colonização do seu universo pelos mercados (econômico, político, cultural e social); celebração do consumo como expressão pessoal; pluralidade cultural; polarização social devido aos distanciamentos acrescidos pelos rendimentos; falências das metanarrativas emancipadoras como aquelas propostas pela Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

 

Palavras-chave: Sociologia. Filosofia. Modernismo. Pós-modernismo. Efeitos.

 

Infelizmente, a realidade social contemporânea é muito associada às circunstâncias que nos faz perceber o permanente estado de crise. Foi Zygmunt Bauman se destacou pela percepção apurada do status de crise na modernidade líquida.

E, suas duas derradeiras obras, a saber, “Estado de Crise” “Estranhos à nossa porta”. Os argumentos destacados representam as possíveis abordagens interdisciplinares que investigam a condição humana e as práticas sociais presentes.

É perceptível a perda do poder de agência do Estado, a difusão de riscos e vulnerabilidades vindas de condutas de estranhamento e desconfiança à alteridade, são questão que acendem o debate e comunicam-se com outras contribuições recentes sobre a teoria social.

Enfim, é inexorável a crise da pós-modernidade tida como fonte de tensão onde se articulam as incertezas, inseguranças e vulnerabilidades, enfatizando o individualismo, o egoísmo e a hostilidade em certos contextos, sendo a autocrítica social um bom caminho a ser trilhado para evitar tais problemas.

A sociedade contemporânea é caracterizada por sua condição de instabilidade sendo algo difícil de ser ignorado. Sendo razoável o diagnóstico que tal condição dificilmente seja elaborado com base em único vetor causal.

 

O fenômeno da globalização[1] é articulado pela volatilidade na história social presente, sendo inviável ser a única explicação isolada. Não é por acaso que os aspectos e sentimentos sociais, direta e indiretamente relacionados à dificuldade de se estabelecer as ordens da sociedade contemporânea e que tanto desafiou os analistas desde 1970.

São notáveis as interpelações sobre as transformações dos comportamentos sociais e as consequências decorrentes para a sociabilidade e o modus vivendi contemporâneo.

Essa particular condição instável que é vivenciada pela sociedade atual, afeta sujeitos, instituições e relações humanas. E, Bauman deixou um expressivo legado teórico de grande relevância não apenas para a sociologia, mas ao vasto campo das ciências humanos. Em suas obras, o recurso à construção de diálogos com variados pensadores e estudiosos e mostrou-se como instrumento de elucidação de realidade complexa e dotada de peculiar mal-estar e única dentro da série de incertezas que a abriga.

A condição de crise pós-moderna[2] é ampla e engloba estruturas, indivíduos e valores promove não apenas alterações severas nas instituições e práticas sociais, mas termina por reconfigurar ideais e utopias de sociedade, ou seja, nossas próprias projeções de futuro da humanidade.

O horizonte de crise infinito e que tem vínculos diretos com agitações deixadas pela passagem da modernidade, embora não se resuma uma simples decorrência dos não conclusos programas do momento anterior.

Lembremos que os projetos modernos de perfeição global tiraram seu ímpeto do horror à diferença e da impaciência crescente com a alteridade, sendo eles mesmos responsáveis pelo efeito paradoxal de difusão de diferenças e decorrente da franca fragmentação social.

 

Toda a ambivalência gerada e dirigida na era moderna não se esvai na pós-modernidade, ao revés, se estabelece reconhecida por suas características, peculiaridades e nas problemáticas que lhes circundam, muitas das quais promotoras de enormes vazios dos sujeitos e de suas indeterminadas identidades.

No vasto horizonte da liquidez, as identidades talvez sejam as encarnações mais agudas e mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência.

A preocupação moderna pela classificação e pela ordem deixaram as marcas entranhadas, especialmente, pelas violências e submissões que foram designadas em seu nome.

Simultaneamente, herdamos as lacunas e cisões pertinentes aos processos de integração social que, repletos de sensações de insegurança, medo e abandono compõem parte considerável de nossas percepções sobre a alteridade e o modo como lidar com estas, principalmente diante de incertezas que só sabem se acumular.

E, consciente ou inconscientemente, as ações diárias revelam sentimentos predominantes sobre a alteridade, bem como expressão a visão aturdida diante de questões para as quais não temos resoluções, mas que recaíram como nossa atribuição na versão contemporânea do contrato social.

Na pós-modernidade, as relações sociais tanto podem refletir uma busca pela comunidade e os laços integradores por esta propiciados (Bauman, 2003) quanto podem expressar a repulsa e intolerância à alteridade, revelando, a seu turno, a fragilidade dos sonhos gregários universalistas.

Nas derradeiras obras de Bauman que foram publicadas no Brasil apontaram para os elementos para reflexão e análise da permanente turbulenta dinâmica pós-moderna. E, nos colocam diante de conceitos e ideias trabalhadas pelo pensador em outros momentos, mas que também possibilitam novos olhares sobre a conformação de conjunturas sociais dos dias de hoje.

E, merece atenção que os citados textos elaboram uma articulação didática de ideias e que se apropriaram de fatos históricos recentes e instigantes ao leitor, e tais textos obtiveram uma célere popularização, de modo que as nossas ponderações podem contribuir para melhor apreensão dos argumentos ora desenvolvidos, partindo de uma base compreensiva que suscita tanto usos analíticos quanto os vínculos teórico-conceituais possíveis com obras do próprio doutrinador e de outros intelectuais.

Sendo assim, procura-se abordar as principais noções teóricas e o raciocínio analítico que as envolvem, com o fito de destacar a melhor compreensão da condição humana dentro dos contextos contemporâneos.

E, assim, o conjunto da obra de Bauman, dando a centralidade às questões em torno da condição pós-moderna em à crise não se formou como mero episódio fortuito, bem como suas implicações para as relações sociais e padrões de sociabilidade.

E, ao incorporarmos à reflexão outros pensadores importantes da teoria social, os quais também despenderam atenção à investigação da incerteza particularmente presente em nossos dias, favorecendo os insights sobre a conformação notoriamente atordoante da condição de crise na atualidade.

Há principais enfoques contidos na obra “Estado de Crise” refletidos à luz do esquema teórico geral da modernidade líquida e seus atributos mais pungentes. Os elementos dessa incursão serviram de prólogo para o debate subsequente sobre a instabilidade da democracia atual e da emergência de dilemas de largo impacto na estrutura social.

E, as percepções decorrentes serviram como suporte para análise dos impasses especificamente atrelados aos surtos migratórios recentes. E, então, a reflexão abarca os argumentos trazidos pela obra “Estranhos à nossa porta”, cuja problemática aponta bem a natureza de certas questões de ordem política, econômica, cultural e, também, moral tão expressivas de nossa realidade.

Para a reflexão dos elementos de cada obra a estruturação do ensaio compreende um segmento específico, no qual ganham espaço

algumas das conexões possíveis com a teoria geral e outras chaves de pensamento  do autor, sobretudo os fundamentos mais emblemáticos para uma possível utilização  com vistas à reflexão da conjunção atual quanto ao seu caráter inalienável de  instabilidade permanente.

As referidas obras permitem desdobramentos de natureza interdisciplinar, vez que abordam os aspectos fundamentais da condição humana e social da modernidade líquida. Por sua vez, apresenta-se inevitavelmente equacionada à circunstância da partilha global de problemas, constituindo uma sensação etérea de medo e incerteza, revertida e materializada em condições e reações efusivas, pelas quais passam as dúvidas de identidade e da composição gregária.

À revelia da promessa moderna na constituição de instituições de regulamento e ordenamento social e jurídico. Nossa vida está longe de ser livre do medo, e o ambiente líquido moderno em que tende a ser conduzida dista em muito de ser livre de riscos, perigos e ameaças interculturais, a globalização, pontualmente, em seu viés negativo, o que reforça o espectro de vulnerabilidade[3], passando o perigo a ser condição comum a todos os indivíduos, simultaneamente, em que sobre todos eles recai o véu da suspeição.

Não à toa, o medo, a instabilidade, a fragmentação e a crise fazem parte do grande repertório que Bauman retoma em “Estado de Crise” e “Estranhos à nossa porta”, ratificando sua relevância no entendimento dos fenômenos correntes do século XXI e, por essa razão, merecem especial atenção e análise.

Bauman propôs o exame de interações sociais, a saber, o destaque para percursos reflexivos voltados ao entendimento de fenômenos específicos ou a atenção às chaves conceituais que se apresentem para a apreensão da realidade atual no que se refere ao desalento pós-moderno.

Os recortes sobressaltados são apenas alguns dos tantos possíveis e, se fizeram conforme predisposições interpretativas conjuminadas com outros aportes analíticos que seguem acionados alinhavando os argumentos.

A crise do poder do Estado[4] faz com que a sociedade conviva com estranho sentimento de constante turbulência. O que está presente no labor de diversos pensadores, assumindo tons e espectros variados. A difusão global dessa realidade convulsiva reflete, uma conjuntura histórica que se depara com o enfraquecimento de instituições sociais e políticas, trava-se o conflito entre novos e velhos espaços de poder, sinalizando a emergência de novo sistema social.

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A instabilidade das transformações econômicas, políticas, ideológicas e culturais não seriam meras ocorrências episódicas e destituídas de sentido comum, mas sim, um movimento encadeado a certa matriz sistêmica típica de cada grande momento histórico, representado, nesse momento, pela civilização pós-industrial.

Pensadores como Beck(2010) e Giddens (1991) reforçaram a ênfase dada à grandiosidade dos riscos que circundam nossa situação existencial hoje, assim como à previsão futura de uma estrutura social no qual a distribuição de riscos se tornará condição decisiva na conformação de conflitos sociais, muito mais que a própria redistribuição de riquezas.

O aumento quantitativo e a elevação exponencial do poder de destruição desses riscos, sejam regionais e locais, em origem, mas globais em impacto e amplitude acabam por promover alterações decisivas nas formas de sociabilidade, e em tal medida que a imaginação humana fica desconcertada diante delas.

Diante da torrente de riscos, medos e insegurança, há uma inquietude que potencialização da vulnerabilidade finca raízes na modernidade líquida, afetando notoriamente as instituições e os sujeitos, impelindo-os as condutas que, em muitos casos, contrariam os supostos alicerces morais que fundamentaram a civilização ocidental, especialmente aquela desenhada na Europa.

Em resumo, poderíamos afirmar que nos seus escritos derradeiros, o autor leva em consideração os efeitos mais práticos repercutivos por instituições e indivíduos quanto aos sentimentos e sensações derivados da condição permanente de crise e da vulnerabilidade a esta atrelada.

É exatamente sobre este tipo de enredo que a análise fogem ao objetivo exclusivo da sociologia, constituindo-se como recurso igualmente proveitoso às abordagens interdisciplinares direcionadas a esse tipo de problemática emergente. Assim, sem dispensar as evidências históricas para o entendimento das instáveis conjunturas políticas e econômicas atuais, Bauman e Bordoni (2016) intencionam esclarecer alguns dos porquês relativos ao estado de crise e à crise do Estado.

 

Tais crises são indissolúveis e difusas, existindo, por assim dizer, como uma espécie de componente inexpugnável da realidade presente; conforme lançam olhares sobre o colapso do Estado-Nação, cujo poder que lhe concedia capacidade resolutiva foi englobado por outras instâncias econômicas e supraestatais.

Ademais a conexão entre as incontáveis crises político-econômicas e a falência do Estado-Nação se apresenta indiscutível no cenário atual. E, as reincidentes turbulências que afetam os países prosperam justamente por faltar ao Estado faculdades e insumos resolutivos, sendo tal insuficiência resolutiva marca decisiva do divórcio entre o poder e a política, promovido pela separação da esfera econômica em relação aos marcos regulatórios e limitares.

O domínio do capital móvel e o fortalecimento de instâncias decisórias supraestatais como os espaços privilegiados de definição e de poder são movimentos que mitigam a soberania territorial do Estado. Assim, o declínio da potência de ação que atinge o Estado não é uma constatação propriamente nova, ou inovadora, mas, para ambos, parece assumir doravante feições dramáticas, particularmente, pela ampliação da experiência de abandono de indivíduos jogados à própria sorte.

Afora isso, o mercado, o capital e todas as demais forças supraestatais que operam o denominado “espaços de fluxos” desataram quase que completamente as amarras territoriais e normativas à figura do Estado. E, pelo expediente das novas formas administrativas e operacionais globalizadas as instâncias de operação livre se multiplicaram e se valorizaram, criando dinâmica por meio da qual regem suas próprias]regulações.

Nessa dimensão, despojado de seu efetivo poder de resolução, o Estado carece da capacidade de agenciar o que era respeitável e mantinha os cidadãos crédulos à solução de determinadas demandas, pelos menos, em tempos de apuros e percalços.

Percebe-se então, um estatismo sem Estado, ao qual se associa a crise de agência. E, por sua vez, sinaliza emblemática dificuldade do Estado em lidar com problemas de natureza global que se fazem concretos no território de exercício de sua soberania. Noutros termos, os poderes resolutivos (se é que existem) para os problemas econômicos de ordem global estão concentrados sob a posse de agentes supraestatais.

A exiguidade de meios do Estado no enfrentamento de questões dessa ordem, foi enfatizada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial como as instituições supraestatais com poder suficiente (até certo ponto) para a dissolução de certos imbróglios nessa esfera. Porém, a atuação de tais instituições, apesar de questionável, tem favorecido muito a criação de novos abismos do que propriamente de solução para os problemas existentes.

Uma observação retrospectiva de ações desses poderosos agentes internacionais demonstra que, não raramente, à revelia do que pretendido (supostamente), o resultado para muitas pessoas têm sido a pobreza e, para muitos países vige mesmo o caos político e social. (Stiglitz, 2002).

O Estado não dispõe dos meios e recursos para realizar as tarefas que exigem a supervisão e os controles efetivos de mercados, para não cogitar de sua regulação e administração. E, tal situação acarreta grave perda de credibilidade da parte dos cidadãos, especialmente, quando reconhecem que o mínimo interesse coletivo, ainda que faça parte da agenda do Estado, não consegue confrontar os desejos do mercado.

Inviável financeiramente e reprovável modelo neoliberal merece atenção do Estado, para com indivíduos sob sua tutela é mitigada e reduzida a mero esquema mínimo. E, tal esquema se radicaliza em meio às conturbações duradouras e, paradoxalmente, justamente quando os indivíduos requisitam algum grau de amparo por parte do Estado acabam desassistidos, relegados à própria sorte.

O interessante é que o  quadro do esquema mínimo se radicaliza em meio às conturbações duradouras e,  paradoxalmente, justamente quando os indivíduos requisitam algum grau  de amparo por parte do Estado acabam desassistidos, relegados à própria sorte.

Sobre o pressuposto da racionalidade neoliberal operam hegemônicos os princípios estimuladores do individualismo, coadunados com o modelo de gestão administrativa assumido pelo Estado.

O Estado “lava as mãos” quanto à vulnerabilidade e a incerteza provenientes da lógica (da falta de lógica) do livre mercado. A deletéria fragilidade da condição social é redefinida como assunto privado – uma questão com que os indivíduos devem lidar e se confrontar usando seus próprios recursos  (BAUMAN; DONSKIS, 2014).

A referida conformação parece, cada vez mais, distar dos interesses das grandes camadas da população e assume delineamentos preocupantes nos países do Terceiro Mundo, sobretudo, porque a fatia populacional em condição de vulnerabilidade dilata-se facilmente e, é bem mais significativa do que nos países mais ricos.

 

O panorama contemporâneo se consolida também através do modus operandi de agentes supraestatais que estão impondo à natureza, às mulheres e ao Terceiro Mundo[5] o custo do ajuste entre a produção econômica e os impactos socioambientais[6]. E, na prática, o modelo econômico global de hoje significa não somente a multiplicação de riscos, mas, especialmente, sua concentração e privatização.

No mar tempestuoso da competição econômica global, onde só os investidores da primeira classe recebem coletes salva-vidas, o número de desesperados a se debater na água em busca da sobrevivência é cada vez mais numeroso.

É de se imaginar que em uma circunstância tão cruel e assustadora alguns  pilares ideológicos do Estado (e da própria modernidade) sejam duramente  interrogados, se já não constarem completamente desacreditados. Neste sentido, a questão se torna mais profunda e a condição de crise ultrapassa, e muito, a simples falência estatal.

A instabilidade atual deriva de processos de ruptura que estão atrelados ao não cumprimento das principais promessas e estratégias da modernidade. A democracia certamente é um desses pilares modernos estratégicos que não conseguiu escapar da tormenta e, toda sorte de interpelações aplicáveis à sua forma atual e referendam a dúvida sobre a efetividade de suas realizações.

O individualismo e o consumismo são ideais do paradigma econômico dominante e refletem a racionalidade de uma esfera da sociabilidade humana bem peculiar. E, quando são transmitidos como propósitos a serem perseguidos pela sociedade, acabam por se configurar como malogros que trazem em seu revés maiores incertezas aos indivíduos.

Essas incertezas, adidas do declínio da confiança no poder resolutivo do  Estado, destacam fendas na forma como a democracia vem se constituindo, e podemos senti-las especialmente na tensão entre suprema liberdade e mínima segurança.

O fracasso no provimento adequado de interesses partilhados coletivamente assevera a descrença na política e deixa margem para comportamentos que personificam essas fendas como a ascendente apatia política captada pela ideia de “pós-democracia” (CROUCH, 2004).

Porém, pelo caminhar das coisas na fase líquida da modernidade não era difícil vislumbrar o esgotamento do Estado em sua versão compromissada e protetora, nem tampouco o desestímulo com a política, uma vez que o acalento da integração social há muito se deslocou para a esfera do mercado, e este é espaço de realização privativa.

Todo esse processo, retratado por Bauman e Bordoni (2016) em que o cidadão se afasta da política reflete, na verdade, um tipo particular de prática adotada pelo sucessor do “Estado moderno[7]”, a qual se baseia “no expediente de privatizar a dissensão e torná-la difusa, em vez de coletivizá-la e instigá-la a se acumular” (BAUMAN, 1999).

O desalento que se abate cruel sobre os indivíduos é mesmo inevitável e, assim tão atomizados em suas incumbências de resolução de problemas que não criou, chances de êxito que estão cada vez menores. Em geral, há muito pouco de permanência nos laços e vínculos que se estabelecem e a dinâmica pós-moderna ao fixar o frívolo e o instantâneo como lógicas predominantes, afastam a possibilidade de êxito das construções coletivas de médio e longo prazo, como é o caso da política.

Tal debate ocupa boa parcela da produção teórica da sociológica nas últimas décadas, estando presente em vários textos.

In litteris:

Os teóricos franceses falam de précarité, os alemães de Unsicher/zeit e

Risikogesellschaf, os italianos de incerteza e os ingleses, de insecurity – mas  todos têm em mente o mesmo aspecto da condição humana, experimentada  de várias formas e sob nomes diferentes por todo o globo [...]

O fenômeno  que todos esses conceitos tentam captar e articular é a experiência  combinada da falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da  incerteza (em relação à sua continuação e estabilidade futura) e de  insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhança,  comunidade) (BAUMAN, 2001).

O caráter que sentimentos como “vazio existencial”, “vulnerabilidade”,

“insegurança” e “instabilidade” adquirem no tecido social é decisivo na conformação das relações entre os sujeitos e entre estes e as instituições, ou seja, constituem parte da configuração geral das sociedades modernas.

Para Giddens (2010), tal arranjo ratifica a significância dos riscos na determinação de transformações cruciais no modo como nós (re)avaliamos ações e relações e instituímos padrões de confiança e segurança. Em verdade, “esses riscos, e os dilemas que os envolvem, penetram  profundamente em nossas vidas cotidianas” (GIDDENS, 2010). Da questão ambiental ao terrorismo, aprendemos a conviver com os riscos e a partir deles instituímos novas versões de organização do poder e responsabilidade (BECK, 2010).

Porém, os riscos e as vulnerabilidades que se articulam atualmente apresentam dilemas pertinentes à própria condição de integração social, não somente porque questionam o ordenamento das motivações legitimadoras do Estado como agente supostamente incumbido pela proteção social, mas especialmente pelo fato de despertarem espécie estágio mental de desconfiança permanente em relação aos outros.

Os riscos e as vulnerabilidades que se articulam nos dias de hoje  apresentam dilemas pertinentes à própria condição de integração social, não apenas porque questionam o ordenamento das motivações legitimadoras do Estado como agente supostamente incumbido pela proteção social, mas especialmente pelo fato de despertarem uma espécie “estágio mental de desconfiança permanente” em relação aos “outros”.

Esses “estranhos” acabam materializando os perigos à nossa existência, na grande maioria das vezes por meio de discursos e situações que muito  pouco de verdade possuem, mas que atingem diretamente a opinião popular e difundem as impressões necessárias à justificação da suspensão da moral na resolução, por exemplo, do “problema da migração”.

Nessa nova conjuntura as relações com os migrantes (reconhecidamente estranhos e potencialmente hostis) tendem a ser conduzidas predominantemente por formas que se afinam com governos e chefes políticos de tonalidades belicosas.

A questão migratória oscila entre a vulnerabilidade até a hostilidade e soa diferente de outras circunstâncias em que o deslocamento humano em massa foi registrado ao longo da história.

A situação atual parece ensejar articulações que atribuem às temáticas pertinentes aos contingentes populacionais migrantes um cuidado, não por acaso, muitos países têm constituído agendas políticas específicas para tais fins.

Certamente uma condição não generalizável a todas as ocasiões, mas que tem se destacado que no que se refere aos fluxos com destino à Europa que nos últimos se intensificaram.

De acordo com Giddens (2014), a Europa como um todo vivencia uma conjuntura econômica não muito favorável. Das medidas de austeridade às tentativas de reestabelecer normalidade para taxas de desemprego, pouco avanço parece ter sido feito pelos países, especialmente porque as estratégias voltadas ao crescimento dos grandes setores que movimentam o mercado de trabalho surtem cada vez menos efeito, uma vez que a hipermobilidade do capital e a flexibilização da mão de obra suscitam oportunidades mais vantajosos em outras partes do planeta.

 

A sensação de perigo e o alarme à intensidade dos riscos contribuem para o sentimento geral de insegurança e funcionam como ferramentas para a radicalização da desconfiança mútua. Esta, por sua vez, favorece e justifica o conjunto de ações estatais conduzidas com dureza e austeridade para a mitigação dos perigos e (perigos) vindos de fora.

A sensação generalizada de desconfiança mútua, “talvez o efeito mais pernicioso, seminal e prolongado da obsessão com segurança” impele-nos diretamente a um “estranhamento” radical dos estrangeiros e, por conseguinte a cisões que dificultam convívio social minimamente harmonioso com a alteridade (BAUMAN; DONSKIS, 2014).

Distanciando-se dos discursos hegemônicos que induzem à naturalidade desse tipo de comportamento por parte de Estados e populações “invadidas”, Bauman (2017) debate as raízes sociais de comportamentos e práticas hostis à alteridade.

Corriqueiramente a camuflagem político-midiática ora atribui o véu do terrorismo, subsequentemente justificando a “suspeição” desses migrantes, ora reproduz o argumento dos prejuízos econômicos (maior competição no mercado de trabalho e elevação dos gastos públicos com políticas assistenciais) que esses “indesejados” podem trazer aos países.

Em uma ou outra dessas versões o que se alimenta indiretamente é a hostilidade, a recusa, o acirramento e outros sentimentos sociais que negam o diálogo e estimulam a escalada de posturas políticas radicais.

É preciso frisar que esse tipo de política, o qual se fortalece com a  “securitização” da crise migratória, não se torna expressivo e dominante (em muitas situações) ao acaso. A emergência de líderes e discursos cada vez mais enfáticos quanto à necessidade de endurecer as políticas de Estado pertinentes aos migrantes e refugiados encontra respaldo na aceitação popular. Embora varie de país para país quanto a essa aceitação, o fato é que tem sido evidente o crescimento do contingente favorável a esse tipo de posicionamento.

Para Bauman (2017), o cenário que se desenha é, particularmente, propício a autorreflexão já é, por assim dizer, uma estratégia da política de perpassar inclusive por aspectos de natureza moral. Neste caso, não há como dissociar o tipo de tratamento que estamos permitindo, e até mesmo exigindo, que o Estado assuma para com a questão dos migrantes, de um julgamento moral que concebe a esses “estranhos” um tratamento humano diferenciado.

Tanto os próprios cidadãos europeus excluídos e alijados da distribuição de  riquezas, contingente populacional crescente em países como Grécia, Portugal, Itália, Espanha e França, como o emergente precariado alargam a camada social que se conforta psicologicamente ao identificar nos migrantes refugiados uma condição de existência inferior àquela em que se encontram.

“Os migrantes representam aquele fundo desejado que se situa mais abaixo ainda – abaixo do fundo a que os misérables nativos foram delegados e relegados” (BAUMAN, 2017). Esses suspeitos e indesejáveis estranhos, de origens e projetos desconhecidos, além de proporcionar o conforto à autoestima daqueles que os repudiam, materializam-se como alvo de sentimentos raivosos (ressentimentos) que acumulam toda indignação quanto às consequências maléficas da globalização.

As “vítimas colaterais”[8] dessas forças tendem a ser percebidas, por uma lógica viciada, como suas tropas de vanguarda, que estabelecem guarnições em nosso meio. Esses nômades – não por escolha, mas por veredicto de um destino cruel – nos lembram, de modo irritante, exasperante e aterrador, a incurável vulnerabilidade de nossa própria posição e a endêmica fragilidade de nosso bem-estar arduamente conquistado (BAUMAN, 2017).

Para o autor, fica claro, portanto, que a chamada “crise migratória” tem se  constituído como um capítulo marcante da história recente, o qual tem fortes elementos dramáticos não apenas pelas imagens chocantes que produz, mas, acima de tudo, pela inevitável associação que lhe cabe quanto à dubiedade de nossa moral no tratamento com esses seres humanos que buscam alento em nossos territórios.

Do mesmo, repercute negativamente nessa realidade a ascensão (no mínimo preocupante) de discursos e ações belicosas que, apoiados pela opinião popular, encontra justificada a necessidade de tratamento diferenciado para essa categoria de pessoas (BAUMAN; DONSKIS, 2014).

Esse tipo de postura, o qual nutre fartos discursos xenofóbicos que  vêm à tona polidos retoricamente com o verniz brilhante do nacionalismo austero, é particularmente preocupante, pois tende a ameaçar princípios que estruturam regimes políticos alinhados com a justiça e com o reconhecimento de direitos humanos invioláveis.

Ao mesmo tempo, pode potencialmente revelar a extensão de mais uma  das crises endêmicas à pós-modernidade, uma de natureza eminentemente “moral” que se alimenta da distorção dos sentidos, da fuga da realidade, da opção por soluções instantâneas e da já indicada descrença na democracia.

A condição de crise indissolúvel que caracteriza a  pós-modernidade é uma questão propícia à investidas interdisciplinares no campo das ciências humanas. Fator significativo de tal condição, a incapacidade resolutiva do  Estado para com os problemas derivados da ordem econômica global afetam diretamente a condição de vida da maior parte dos indivíduos, ensejando um descrédito generalizado da instituição e da política.

Destituído do “poder de agência” e exercendo apenas parcialmente a soberania territorial, o Estado débil contribuiu para a própria crise do regime democrático participativo, a qual pôs em xeque a realização  de seus propósitos, bem como a incongruência dos meios utilizados em sua  persecução.

Tanto a crise do Estado quanto a da democracia estão inextricavelmente  atreladas às ambivalências da modernidade (BAUMAN, 2001). Ao tomamos em perspectiva Estado de Crise e Estranhos à nossa porta, é  expressivo o reforço a ideias já trabalhadas em outras obras que lastreiam a percepção de Bauman sobre a modernidade líquida e seu estado de crise permanente.

Com efeito, tanto a retomada de certos argumentos, conduzidas com  compactação e didatismo, como a referência histórica de eventos recentes, podem ensejar uma utilização mais prática na compreensão da realidade atual e no estudo do pensamento baumaniano.

É oportuno sublinhar que em ambos os títulos discutidos neste ensaio, as reflexões relevantes à conjuntura dos dias atuais não só agregam elementos  teóricos à compreensão da liquidez e de toda sua volatilidade, evidenciada pelas crises incontáveis que abarcam indivíduos, estruturas e suas relações, mas corroboram a importância do exercício da autocrítica que só a pós-modernidade é capaz de permitir.

Dentro deste contexto, o expediente da autoanálise nos é permitido porque “[…] a pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a  modernidade olhando-se a distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalisando-se […]” (BAUMAN, 1999). Talvez agora esse exercício seja nosso melhor instrumento contra as alternativas reconfortantes do consumismo, do individualismo e da xenofobia.

 

Referências

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Tradução de Marcus Penchel Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BAUMAN, Z. Europa: uma aventura inacabada. Tradução de Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

BAUMAN, Z. Medo Líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

BAUMAN, Z.; DONSKIS, L. Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2014.

BAUMAN, Z.; BORDONI, C. Estado de Crise. Tradução de Renato Aguiar Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2016.

BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2017.

BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento São Paulo: Editora 34, 2010.

CASTELLS, M. A sociedade em Rede. Tradução de Roneide Venancio Majer. Atualização para 6ª edição de Jussara Simões São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CROUCH, C. Post-Democracy. Cambridge: Polity, 2004

FAUX, J.; MISHEL, L. Desigualdade e economia global. In: HUTTON, W.; GIDDENS, A. No limite da racionalidade: convivendo com o capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.137-162.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991.

GIDDENS, A. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Tradução de Maria Luíza Borges. Rio de Janeiro: Record, 2010.

GIDDENS, A. Continente turbulento e poderoso: qual o futuro da Europa? Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

HELD, D.; MCGREW, A. Prós e contras da globalização. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

SHIVA, V. O mundo no limite. In: HUTTON, W.; GIDDENS, A. No limite da racionalidade: convivendo com o capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 2004.

STIGLITZ, J. A globalização e seus malefícios: a promessa não cumprida de seus benefícios globais. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo, Editora Futura, 2002.

TOFFLER, A. A terceira onda: a morte do industrialismo e o nascimento de uma civilização.  Tradução de João Távora. Rio de Janeiro: Record, 2001

 


Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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