A Formação Jurídica e Literária do Criminalista

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22/05/2024 às 19:27
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A Formação Jurídica e Literária do Criminalista1

Sumário. A sólida formação intelectual do advogado não se satisfaz com o mero estudo das disciplinas do currículo acadêmico de Direito. Se quiser obter merecidos e legítimos triunfos, será de mister se aplique, sem falta, à ciência da boa linguagem, à Oratória e à Filosofia, que lhe ensinarão a arte capital de seu nobre ofício: argumentar, convencer e persuadir!

Meus amigos, boa noite!

1. É honra que tenho pela maior poder falar-vos nesta magnífica cerimônia promovida pela Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo.

Apenas entro em escrúpulo se, em vez de ser eu o que vos devia ocupar a atenção, não fora melhor devolver a palavra ao nobre colega que me precedeu, ou transferi-la desde já ao expositor seguinte, o laureado criminalista Paulo Ramalho.

É responsabilidade grande, com efeito, discorrer perante plateia tão seleta e corpo docente de tanto saber e erudição, que transformaram este modesto auditório de nossa querida Acrimesp numa verdadeira academia de ciência jurídica!

Não procureis neste obscuro e deslustrado conferencista (conferencista é aqui somente comodidade de expressão) razões de mérito para desempenhar-se da tribuna; buscai-as sobretudo no coração mesmo da juventude acadêmica, em cujas fibras não desaparece nunca a centelha divina da generosidade. À gentileza do convite que me formulou o talentoso e incansável presidente Ademar Gomes, dos maiores que teve a Acrimesp em todos os tempos, e o estimado Dr. Laércio Laurelli, insigne professor de Direito e diretor da Escola de Advocacia Criminal da Acrimesp, à nímia gentileza, dizia, desses dois fidalgos amigos é que devo minha presença aqui. A despeito da consciência de minha muita desvalia, aceitei o convite, que recusá-lo fora supina deselegância.

2. Falar numa assembleia de sujeitos de tão alta e desmedida esfera não será empresa de pouca monta; fora mais fácil talvez atravessar a pé o oceano! Mas o dever é um dogma, a que todos havemos de respeitosamente curvar a fronte.

A que tema houvera de ater-se o conferencista, para não despedir, frustrados e ressentidos, seus heroicos ouvintes (ou vítimas)?! Dúvida cruel, certamente!

Lembrou-me, afinal, discorrer de alguns pontos que, no geral consenso dos doutos, e conforme a lição da experiência vulgar, hão de constituir forçosamente o cabedal de ciências e valores dos candidatos à ínclita profissão da Advocacia.

Tratemos, pois, sem mais salvas nem rodeios, do assunto que me foi reservado pela digna Direção da Escola de Advocacia Criminal: A Formação Jurídica e Literária do Criminalista.

E isto em circunstâncias verdadeiramente excepcionais, porque sob a inspiração daqueles que, de presente, passam pelas três personalidades mais caras e estimadas aos advogados criminalistas:

a) o nunca assaz louvado Presidente da OAB de São Paulo, Sua Excelência o Dr. Guido Antônio Andrade; de todos os presidentes da OAB foi, sem contradição, o que mais fez pela Acrimesp;

b) o grande, e por isso mesmo muita vez incompreendido, Presidente Ademar Gomes;

c) por fim, temos a felicidade de ver entre nós alguém que já conheceis; aquele que, por sua bravura e proficiência, tornou-se um como emblema nacional do advogado criminalista, o Dr. Paulo Ramalho.

Mas, vamos ao ponto!

(Se alguém precisar sair, por motivo relevante, está autorizado a fazê-lo; pode evacuar o recinto sem constrangimento, com a condição de retornar dentro em meia hora, para ouvir o Dr. Paulo Ramalho, por causa de quem estamos todos aqui).

3. O Advogado, bem o sabemos, é todo aquele versado na ciência das Leis e que faz do Direito profissão.

A malícia, que entrou no mundo com o primeiro homem, cunhou, é certo, outras definições de advogado,“verbi gratia: “um perito em burlar as leis”2; “uma consciência que se aluga”3, etc. Porém, na acepção mais lídima do vocábulo, será sempre “o homem de bem, perito em Direito”.4 A perícia do Direito, que é o conhecimento jurídico, adquire-a o advogado pelo estudo regular das disciplinas que entendem com o curso de bacharelado, versando-as com mão diurna e noturna. São as matérias do programa oficial (em que não precisam figurar, como observou com argúcia nosso esclarecido Presidente Guido, nem a literatura nórdica nem a mecânica celeste).

Depois, deverá o advogado entrar na posse daqueles inestimáveis tesouros, avaramente guardados contra a voragem dos séculos, e que são, porque assim o diga, a súmula do pensamento jurídico universal:

a)  A Luta pelo Direito, de Rudolf von Jhering. Conhecida como a “bíblia da humanidade civilizada”5, esta obra não pode faltar à biblioteca de nenhum advogado;

b)  Outro tanto em relação ao celebérrimo Dos Delitos e das Penas (1764), do marquês de Beccaria, o grande apóstolo do Direito Penal humanizado;

c)  O Espírito das Leis, de Montesquieu (1689–1755), também merece arrolado entre as obras-primas da literatura jurídica.

4. Mas ao advogado, cujo campo de atuação é impossível encerrar nos limites mesmos do globo, não bastam evidentemente os conhecimentos hauridos só na escola do Direito. É mister que se exercite por igual naquelas ciências e artes, sem as quais não haverá advogado digno deste nome: a Oratória, a Filosofia (sobretudo a Lógica, que é a arte do raciocínio) e as Humanidades.

Profissional que é da palavra (“Vir bonus dicendi peritus”), deverá o advogado cultivar a Oratória, ou arte de persuadir.

“Maravilha que só não espanta por ser comum a todos os homens”, na expressão de um engenho feliz6, é a palavra o instrumento por excelência do advogado. Cumpre-lhe, pois, tê-la no mais alto apreço.

Desenganemo-nos para todo o sempre: ninguém será bom orador, ninguém haverá de participar da glória tribunícia de Demóstenes, de Cícero e de Rui, se não se consagrar, como eles, diuturnamente e sem desalento, à fascinante arte de falar em público.

Uma vontade intrépida e inabalável será, portanto, o primeiro requisito daquele que aspire à palma da oratória, pois que o orador se faz, não nasce como o poeta.

De sua irresistível vocação poética afirmou Ovídio que tudo que tentava dizer em prosa era verso.7 Tratava-se de um pupilo dileto e afortunado das musas. Não assim com os oradores; estes se fazem. O dom da poesia é inato no homem: o da eloquência pode ser adquirido pelo trabalho e pelo estudo.8

Enquanto Bilac despertava à noite para ouvir as estrelas, que cuidais fazia o nosso Rui? Ele mesmo no-lo responde na imortal Oração aos Moços: encetava sua banca solitária de estudo às primeiras horas da antemanhã.9 De madrugada! Não admira, pois, tenha sido o “primeiro talento verbal da nossa raça”.10 Como Rui, também Demóstenes, que era tartamudo ou gago de nascença, e mediante inauditos esforços, declamando com seixos ou pedrinhas na boca, pelas praias do Mar Egeu, e lendo avidamente os grandes mestres, conquistou o primado da Oratória e recebeu a coroa de ouro. Passa por símbolo e exemplo vivo do que é capaz a vontade humana. É o Pai da Eloquência e seu eterno e melhor paradigma.

Tudo vence o esforço, meus amigos! O sacrifício é o pedestal da vitória. Façamos como Demóstenes, isto é, apliquemo-nos aos estudos com pertinácia e tenacidade, se quisermos transformar a palavra em poderoso meio de conquista profissional.

5. Nenhuma profissão humana, mormente a Advocacia, pode prescindir da palavra como expressão do pensamento. Dom de Deus, é a palavra “o mais nobre dos atributos do homem”.11

Mas, com ser uma dádiva mimosa do Criador, e a arma por excelência do advogado, temos tratado com apuro a palavra? A observação material dos fatos revela que não.

Quais as causas dessa a que pudéramos chamar conspícua negligência?

A primeira é a natural dificuldade que sentimos todos para penetrar os segredos da língua portuguesa e possuir-lhe as galas e louçanias; a outra causa é a perda do hábito de leitura dos escritores de boa nota e a indiferença com que se tratam as coisas do espírito, num século materialista, que enseja a perversão do gosto literário e a aberração do senso vernáculo.12

À derradeira, põe-se como causa da incúria da linguagem a própria contingência humana, que nada quer perfeito e bem acabado, e não nos abroquela nem defende do erro, que é partilha comum dos mortais:

Em suma: todos conjugamos o verbo errar, porquanto, como sentenciou o profundo Vieira: “(…) os erros e as ignorâncias, é certo que são muitos mais que as ciências, porque para saber e acertar não há mais que um caminho e, para errar, infinitos”.13

Isto não sucede apenas no plano metafísico; nos domínios da linguagem ocorre o mesmo.

Rui, o excelso Rui, o supremo artífice da palavra entre nós, lançou um público pregão, digno de se entregar à memória: “Uma verdade há, que não me assusta, porque é universal e de universal consenso: não há escritor sem erros”.14

Por último, José de Sá Nunes, impávido guardião da pureza do idioma, costumava repetir: “Nisto de bem falar e escrever, ainda o bom peca sete vezes por dia”.15

Há, portanto, pontual concórdia entre os autores: Ninguém logra evitar os estigmas da falibilidade humana. Todos estamos sujeitos a erros; porém, só os indolentes e os fracos de vontade não diligenciam por emendá-los.

Todos pecamos contra a gramática; podemos bater no peito e entoar a antífona do “mea culpa”. Mas há pecados leves e pecados mortais (ou inescusáveis). As pequenas contravenções à gramática parecem inevitáveis… As que havemos de expungir de nossa linguagem são as faltas graves, também denominadas solecismo.

Os solecismos são erros graves e insofríveis de pronúncia (ou prosódia) e sintaxe, que nenhum advogado distinto pode perpetrar.

Instauremos desde logo a dilação probatória e exibamos o corpo de delito das infrações mais comuns contra a gramática:

a) Um dos pontos em que mais claudicam os que falam ou escrevem é o da sintaxe do verbo haver, na acepção de existir.

Ao reduzir a termo as respostas das testemunhas, que juiz-instrutor não ouviu já a frase malsinada: “Haviam” várias pessoas no local dos fatos?!

Havia várias pessoas é a construção correta, não “haviam”. O verbo haver, com a significação de existir, é unipessoal: só se emprega na terceira pessoa do singular.

Constituem solecismo injustificável orações deste teor: “Haverão” testemunhas em plenário (em vez de haverá testemunhas em plenário); “houveram” indícios veementes da autoria delituosa (por houve indícios veementes da autoria delituosa);

b) Outro exemplo, mui frequente nos pedidos de relaxamento de prisão: “fazem” 90 dias que o réu está preso, e ainda não terminou a instrução criminal. Erro gravíssimo. Quem proferiu semelhante despautério deveria fazer companhia ao réu na cadeia, por “atentar vilmente contra o pudor da gramática”.16 Deve-se dizer e escrever: faz noventa dias, faz dois anos, etc;

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c) Outra enormidade! Os policiais “deteram” o ladrão. Como?! “Deteram”?! Não, por Júpiter! Detiveram é a forma correta.

Outros casos merecedores de especial registro:

1-  Meritíssimo (que tem muito mérito). Não é “meretíssimo”; tampouco “meritríssimo”, o que, além de erro, será também desacato à autoridade (art. 331 do Cód. Penal);

2-  Tóxico (cs); intoxicação; toxicômano, toxicofilia;

3-  Rubrica (assinatura abreviada): rubrica (e não “rúbrica”).

4-  Gratuito, intuito, fortuito;

5-  Frustrar (não “frustar”). O arengueiro está frustrando a expectativa do auditório, que deseja ouvir o Dr. Paulo Ramalho

6-  Interveio (e não “interviu”) para apartar os contendores.

7-  Estupro (não “estrupo”). “Estrupo” é também crime hediondo contra a gramática.

O advogado haverá de ter, por conseguinte, bom-senso e bom texto. Bom-senso, porque nele consiste o Direito; bom texto, porque de muito pouco servirá a palavra ao advogado que não a souber empregar escorreitamente. Não raro, “a maneira pela qual dizemos as coisas vale mais do que as coisas que dizemos”.17

6. Ao advogado criminalista importa-lhe tratar intimamente os autores que cultivaram “ex professo” o Direito Penal, com especialidade Nélson Hungria, o Pontífice Máximo do Direito Penal entre nós; o maior de nossos penalistas, recenseados vivos e mortos, e o intérprete mais autorizado do Código Penal de 1940, de que foi o principal elaborador, tendo-lhe escrito ainda magnífica exposição de motivos, que Francisco Campos, Ministro da Justiça de Getúlio Vargas, apenas assinou (cf. Evandro Lins e Silva, Arca de Guardados, 1995, pp. 95-96).

Em Direito Processual Penal merecem particular menção alguns autores: Bento de Faria (Código de Processo Penal), José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal), Hélio Tornaghi (Curso de Processo Penal: só a boa doutrina exposta no prefácio do livro justificava-lhe a aquisição), Vicente de Azevedo (Curso de Direito Judiciário Penal), Damásio E. de Jesus (Código de Processo Penal Anotado, etc.

E também as obras sobre o Júri: Firmino Whitaker, Júri; Guilherme Souza Nucci, Tribunal do Júri; Edilson Mougenot Bonfim, No Tribunal do Júri, etc.

Por fim, a copiosa literatura dos “casos do Júri”: Evandro Lins e Silva (A Defesa tem a Palavra), Dante Delmanto (Defesas que fiz no Júri), Alfredo Tranjan (A Beca Surrada), Evaristo de Morais Reminiscências de um Rábula Criminalista), Henrique Ferri (Discursos de Defesa), Carlos de Araújo Lima (Grandes Processos do Júri), Pedro Paulo Filho (Grandes Advogados, Grandes Julgamentos), e aquele “ao qual entre todos os mortais foi reservada a palma da humana eloquência”18: Marco Túlio Cícero (Orações).

7. Para enriquecer o repertório fraseológico-jurídico e adquirir o estilo forense, o advogado criminalista haverá de ler com assiduidade e pontualmente as obras do oráculo do Direito Penal, Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal, Fraude Penal, Questões Jurídico-Penais e Novas Questões Jurídico-Penais); Lafaiete Rodrigues Pereira, “o mestre das definições perfeitas” (Direito de Família e Direito das Coisas); Clóvis Beviláqua, autor do Código Civil de 1916, considerado a lei brasileira mais bem escrita, (Comentários ao Código Civil, Em Defesa do Projeto do Código Civil Brasileiro, etc.; e, sobretudo, Rui Barbosa, o Mestre de todos nós.

Da autoridade de Rui em pontos de linguagem, por este feitio se pronunciou um dos que tinham voz no capítulo: “Não podemos negar que a linguagem de Rui é a mais correta dentre todos os escritores brasileiros, se tomarmos como padrão os seus últimos livros”.19

Para abono desta afirmação bastará a leitura de algumas de suas mais notáveis produções literárias (resolução benemérita e proveitosa, que nenhuma pessoa ilustrada e ávida de acrescentar seu pecúlio intelectual ousará desdenhar). Ei-las:

Oração aos Moços. Discurso que, na qualidade de paraninfo, escreveu Rui para a turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo. Por doente, não pôde proferi-lo; do que se incumbiu o Prof. Reinaldo Porchat. É “a peça mais trabalhada da língua portuguesa”.20

O Parecer sobre a Redação do Código Civil e a Réplica. Imenso repositório de cunho jurídico e filológico, em que Rui entreteve com seu velho mestre Ernesto Carneiro Ribeiro célebre polêmica.21

A leitura de alguns desses livros facilitará certamente ao estudioso o acesso às Obras Completas de Rui Barbosa, tesouro inestimável que orça por 50 volumes (ou 130 tomos). Correm debaixo da rubrica Trabalhos Jurídicos para mais de duas dezenas de livros que saíram da pena operosa do genial brasileiro. Alcançar as lições que esses preciosos compêndios encerram, sem olhar a despesas nem a sacrifícios, será aspiração de todo cultor do Direito, pois “Rui permanece como o expoente máximo da advocacia em nosso país”.22 Aproveite-lhe a exortação de Cujácio a propósito de certo livro do jurista português Paulo de Castro: “Quem o não tivesse, vendesse a camisa e comprasse: Qui non habet Paulo de Castro tunicam vendat, et emat.23

Tem-se por verdade inelutável que a palavra é imagem da alma, e que toda obra revela seu autor; por isso não permitais, meus amigos, que vossos arrazoados forenses reflitam um caráter ignóbil e um coração empedernido como o do faraó. Para tanto, olhai que vossas ideias sejam elevadas, o estilo circunspeto e a locução nobre e correta; não resvaleis jamais na licença e no desaforo; purificai vosso escrito de expressões contumeliosas, advertindo que “a injúria será sempre mau argumento”.24

Numa palavra, em tudo o que escreverdes, esforçai-vos por alcançar padrão profissional tão honroso e eminente, que vos quadre o soberbo e acaso inexcedível louvor de um espírito de escol, que foi o Min. Laudo de Camargo, do Supremo Tribunal Federal: “O nome de certos advogados debaixo de uma petição é meia prova feita daquilo que está pedindo”.25

Muito obrigado!

Notas:

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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