Puxaram aos pais: A família enquanto instituição cultural

23/05/2024 às 17:47
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Quando assisti ao espetáculo “Gostava Mais dos Pais” [1], com Bruno Mazzeo e Lúcio Mauro Filho, adveio-me uma perspectiva para perceber a família não apenas como base da sociedade e ambiente (idealizado) de afetos, mas como instituição cultural.

Uma forte evidência jurídica disso consta no artigo 26, item 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos [2], de 1948, segundo o qual, “aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos”, do que se extrai a ideia de herança, não somente a patrimonial (que é incerta, considerando que nem sempre há bens a partilhar), mas sobremodo cultural, praticamente compulsória, pois todas as pessoas que convivem num seio familiar aprendem a mesma língua, os mesmos costumes, os mesmos valores ou, numa expressão-síntese, a mesma cultura.

É bem provável que esse poder cultural da família seja o último aspecto remanescente daquilo que Aristóteles [3] chamava de “poder doméstico”, tão amplo que permitia até mesmo o sacrifício da vida dos filhos, em nome de valores então considerados maiores, como fez o mítico Agamêmnon [4] em relação a Ifigênia, para se desculpar com a deusa Ártemis; ou como poderia ter feito o bíblico Abraão [5] com Isaque, não fosse a intervenção cinematográfica do anjo Gabriel que, na última hora, revelou ser o sacrifício demandado apenas um teste de fidelidade feito por Jeová.

Com o surgimento dos Clãs, das Tribos, das Cidades-Estados e, finalmente, do próprio Estado, os poderes da família foram se diluindo, uma vez que no seu âmbito reconheceram-se, paulatinamente, direitos individuais específicos aos seus componentes, como os relativos à mulher, às crianças e adolescentes e à pessoa idosa.

No âmbito da Constituição Brasileira [6] de 1988 a situação da família é bem ambígua, dado que a ela são atribuídos mais deveres que direitos, estando entre os primeiros o da educação dos filhos, o do amparo aos seus idosos, deficientes e presos. Dentre as prerrogativas, a proteção às suas pequenas propriedades, o amparo assistencial e a possibilidade de defesa contra as atividades comunicacionais que contrariem suas convicções e valores, desde que sejam considerados legítimos.

Como facilmente se vê, a família perdeu poder em todos os âmbitos, sendo que um deles, embora também abalado, persiste perceptível, que é o poder cultural, porém, com curiosas nuances quando sai dos seus aspectos antropológicos e genéricos e se vincula com a tentativa de entrega de um espólio cultural personalíssimo, como é o caso das técnicas e do talento artístico, possuidores de facetas distintas, a depender de uma perspectiva de indústria cultural ou de cultura popular, conforme será visto adiante.

Aqui se retoma a referência ao espetáculo apresentado pelos filhos de Chico Anysio e Lúcio Mauro, cujo título (mencionado no primeiro parágrafo) é revelador da dificuldade enfrentada por dois homens de talento, já maduros, e que, mesmo após a contagem de uma quantidade significativa dos anos, lutam para ver reconhecidas as próprias qualidades artísticas, obrigando-os a fazer piada sobre suas filiações, como forma de enfrentar a questão.

Na seara da indústria cultural (onde transitam os dois artistas), que se rege preponderantemente por critérios mecânicos e individualistas, pode-se perceber a regra de que o reconhecimento do talento dos filhos é inversamente proporcional ao dos pais, como se fossem herdeiros culturais de segunda categoria e ferrenhos concorrentes dos genitores.

No âmbito da cultura popular, contrariamente, por ser mais orgânica e, portanto, coletivista, os filhos que seguem a atividade dos pais não são vistos como pessoas que com eles disputam, mas como aqueles que merecem o reconhecimento de levar a herança cultural de seus ancestrais às novas gerações, ou seja, agregam ao próprio fazer cultural aquele recebido dos pais, na forma de ensinamentos.

O drama de Bruno e Lucinho, curiosamente externado na forma de comédia, resulta do estúpido e preconceituoso fato de que seus pais trabalharam para empresas que exploram economicamente a atividade artística; se tivessem permanecido em circos, bares e praças, privando milhões de pessoas de suas marcantes atuações, talvez o espetáculo que apresentaram fosse designado de “Puxaram aos Pais”.

Notas:

[1] Ver em: https://www.resenhando.com/2024/03/critica-gostava-mais-dos-pais-transita.html

[2] Disponível em: https://brasa.org.br/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/?gad_source=1&gclid=CjwKCAjw0YGyBhByEiwAQmBEWhjcxwsZtsR2tpM9lGW5VKoLCAq2WrYaOr7VMTJiWdvI-dHws2tDQRoChbkQAvD_BwE

[3] Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/A_Pol%25C3%25ADtica/37GuDwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=a+pol%25C3%25ADtica+de+arist%25C3%25B3teles&printsec=frontcover

[4] Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/Agamenon/BWTXCgAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=agamenon&printsec=frontcover

[5] Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/G%25C3%25AAnesis/xAB7EAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=b%25C3%25ADblia+sagrada+g%25C3%25AAnesis&printsec=frontcover

[6] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Sobre o autor
Humberto Cunha Filho

Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)

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