Manifestações do “8 de janeiro de 2023” em Brasília/DF: Repercussões penais em discussão no Supremo Tribunal Federal

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RESUMO

O “8 de janeiro” representou uma intentada de atos de manifestantes insurgentes contra o governo eleito nas eleições presidenciais brasileiras de 2022, da qual resultou em invasões às representações da democracia nacional, depredação do patrimônio histórico nacional e crimes de Estado. O objetivo deste trabalho é analisar os acontecimentos em face do direito penal e na aplicação de determinados institutos jurídicos criminais aos julgamentos dos réus de tais crimes multitudinários. Conforme se evidencia, crimes multitudinários são perpetrados por multidões em um ideário comum, um vínculo subjetivo movido por fortes emoções, geralmente contra um objeto, que acaba vítima da atuação de até milhares de pessoas. Dessa forma, a aplicação de estudos como o do concurso de pessoas aos crimes em questão faz-se necessária a fim de compreender a visão do órgão julgador quanto à culpabilidade de cada agente de maneira individualizada. Assim, realizou-se uma revisão sistemática de literatura, analisando as perspectivas doutrinárias e acadêmicas sobre os crimes multitudinários e o caso do dia 8 de janeiro de 2023. Portanto, constata-se que, quanto aos crimes investigados e julgados, do “8 de janeiro”, foram adotadas as teses que incluem o concurso de pessoas aos delitos de multidão, adoção do concurso material de crimes do ordenamento jurídico nacional, quando da dosimetria das penas dos julgados pelo STF.

Palavras-chave: direito penal; atos; manifestações; crimes multitudinários; concurso de pessoas

ABSTRACT

The "8th of January" event was marked by insurgent protesters against the elected government in the 2022 Brazilian presidential elections. This episode resulted in invasions of democratic institutions, damage to historical heritage, and state crimes. This study aims to analyze these events from the perspective of criminal law, applying certain legal principles to the trials of defendants involved in such collective crimes. Collective crimes, as evidenced, are committed by crowds united by a common goal, driven by intense emotions, often directed against a target, which ends up being victimized by the actions of thousands of people. Thus, the application of concepts such as complicity becomes crucial to understand the responsibility of each individual in a personalized manner. Thus, a systematic literature review was conducted, analyzing doctrinal and academic perspectives on mass crimes and the case of January 8, 2023. Therefore, it is observed that, in the case of the investigated and adjudicated "8th of January" crimes, legal theses including complicity in collective offenses were adopted, as well as the application of the material concurrence of crimes in determining sentences by the courts, in accordance with the jurisprudence of the Supreme Court.

Key-words: criminal law; actions; protests; mass crimes; complicity

INTRODUÇÃO

O “8 de janeiro” refere-se a uma série de atos realizados por um grupo eleitoral em virtude da derrota de seu candidato à disputa presidencial nas eleições de 2022, Jair Messias Bolsonaro, o que culminou na invasão à sede dos Três Poderes da República, na depredação do patrimônio nacional e na tentativa de golpe de Estado. As perspectivas criminais do caso apontam a ocorrência do chamado “crime multitudinário”, aquele ocorrido na seara de uma multidão em convergência psicológica movida por uma forte emoção comum, resultando em caos generalizado (Lima, 1958). Para o direito penal, no entanto, é de forte discussão doutrinária a possibilidade da aplicação de penas individualizadas com a ocorrência do concurso de pessoas, modalidade criminosa que pressupõe a pluralidade de participantes e de condutas, a identidade de infração penal, a relevância causal de cada conduta e, principalmente, o vínculo subjetivo entre os coautores (Bittencourt, 2020).

Conforme se extrai do caso concreto, cerca de quatro mil pessoas se dirigiram do Quartel General de Brasília à Praça dos Três Poderes, em marcha paramilitar, de modo a conflitar com policiais militares do Distrito Federal e adentrar a Esplanada dos Ministérios com o intuito de invadir instituições democráticas, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, fato que ocasionou depredação do patrimônio público e vandalismo generalizado. (Pinto; Santos, 2023).

A repercussão internacional do caso apurou a depredação ao patrimônio nacional e a insurgência contra o sistema eleitoral, movido por um ideal social de desconfiança no modelo brasileiro de apuração de votos. Na data em questão, durante as invasões, grupos de participantes realizaram transmissões ao vivo, publicações em redes sociais e compartilhamento em meios de comunicação privados de envio de mensagens instantâneas, com símbolos de apoio aos acontecimentos em prol de garantir a tomada do poder político pela oposição do presidente eleito (Angelos et Eleni, 2023).

Segundo relatório do IPHAN, foram encontrados 167 danos em prédios tombados como Palácio do Planalto, Palácio do Supremo Tribunal Federal, Palácio do Congresso Nacional, entre outros (Brasil, 2023). Logo, realizada a invasão e a tentativa do golpe, quanto a aspectos materiais das condutas dos manifestantes, seus atos resultaram em crimes como abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado, dano qualificado, deterioração do Patrimônio tombado e associação criminosa armada, uma vez que os objetos da ira dessa parcela representam a democracia e o Estado de Direito brasileiros (Korquievicz et al, 2023).

Partindo desse pressuposto, o intuito de realizar o presente trabalho se deu com o fulcro de compreender os conceitos penais atinentes aos crimes cometidos e à forma que estes se sucederam, a aplicação, ou não, de qualificadoras, assim como o de identificar a posição da jurisprudência, e se esta integra o ordenamento de modo a oferecer segurança jurídica. Em suma, no sentido de avaliar as repercussões penais dos atos dos manifestantes, o presente trabalho visa a elucidar questões materiais e processuais criminais em face dos indiciados e condenados em virtude de suas atuações no movimento, em análise dos julgamentos executados pelo Supremo Tribunal Federal e das disposições legais codificadas e extravagantes relativas aos atos criminosos.

METODOLOGIA

Para atingir o objetivo da pesquisa, foi realizada uma revisão de literatura, de forma sistemática. Dessa forma, foi realizado buscas nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SCIELO), Google Acadêmico e Suprema – Revista de Estudos Constitucionais. As palavras chaves utilizadas foram “manifestações”, “atos”, “políticos”, “multitudinários”, “julgamentos”.

Os critérios de inclusão utilizados utilizaram de acervo artigos científicos publicados entre 2018 e 2024, que discutiam a adoção do concurso de pessoas em crimes multitudinários, a repercussão dos atos no patrimônio histórico nacional e na democracia brasileira. Em contrapartida, resultados que conglomeram dissertações, teses, duplicatas e livros foram englobados como critérios de exclusão.

Além disso, foram analisadas as Ações Penais julgadas pelo Supremo Tribunal Federal cujos polos passivos são integrados por participantes das manifestações do “8 de janeiro”, assim como busca na legislação nacional aplicável ao caso. Por meio do endereço eletrônico do STF, foram colhidas 10 Ações Penais para análise dos pressupostos processuais, fundamentações, imputações e aplicações das penas. Quanto aos diplomas normativos buscados, foram utilizados a Constituição Federal, os Códigos Penal e de Processo Penal e Leis esparsas, como a Lei nº 7.347/1985 e Lei nº 9.605/1998, que dispõem sobre “a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências” e sobre “as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”, respectivamente.

O estudo do conteúdo foi compilado em um quadro em que há autor, ano de publicação, título, objetivo e resultados, de maneira resumida para melhor compreensão e acesso a dados rápidos. Nessa seara, iniciou-se com a conceituação da autoria delitiva no direito penal e a integrou com os estudos doutrinários e sociológicos de multidão, crimes multitudinários e concurso de agentes na esfera delituosa.

Em seguida, buscou-se as Ações Penais cujos réus foram agentes dos fatos ocorridos em Brasília. Por conseguinte, foram redigidos os resultados do estudo.

REFERENCIAL TEÓRICO

A filosofia contratualista diz respeito ao entendimento do indivíduo em seu estado de natureza e, posteriormente, em seu estado social, por meio do contrato social, firmado entre a comunidade para a formação do dito estado. Pensadores, durante séculos, se debruçaram nesses questionamentos, levantando, cada um, sua hipótese sobre o homem no estado natural e os motivos que o levaram a firmar o contrato social.

Para Hobbes i.e., ao homem natural é inerente o medo e a vigilância, por receio de invasões e ataques de seus iguais, e firma, portanto, o contrato para que seja estabelecida a ordem. Em outra análise, Locke entende a formação da sociedade civil como meio de obter a segurança dos bens dos indivíduos, uma vez que a propriedade privada é um direito natural e deve ser observada pelo Estado (Silveira, 2017). Nesse sentido, a formação do Estado depende das vontades dos indivíduos a serem regulados por ele, caso contrário viver-se-ia, até a atualidade, no sistema de autotutela. O Estado, portanto, nasce com a junção dos elementos da soberania, do território e do povo (Dallari, 2010). Por conseguinte, um dos deveres do Estado é garantir a lisura e a representação democrática de seus integrantes; estes, por sua vez, devem confirmar a democracia ao honrar com a vontade popular no sistema eleitoral.

O ocorrido no Brasil, portanto, decorre da violação generalizada do pacto social e da insurgência contra o Estado Democrático de Direito, indo de encontro ao estado social de estabilidade preconizado pelos contratualistas. Os atos discutidos no “8 de janeiro” partiram da difusão de informações falsas sobre a lisura do sistema eleitoral, movidos por um ódio conjunto de parcela da sociedade aos ideais defendidos pelos adversários políticos, de modo a alcançarem financiamento para as intenções de insurgência. Nesse sentido, as repercussões doutrinárias e jurisprudenciais são cruciais para compreender e retribuir ao ocorrido as devidas consequências legais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O presente trabalho analisou artigos científicos pautados no tema das ocorrências dos atos do “8 de janeiro” de 2023, na Capital Federal, dos crimes multitudinários, da aplicação do concurso de pessoas, e dos resultados das depredações, assim como a visão do Supremo Tribunal Federal.

De início, buscou-se compreender a ocorrência do “8 de janeiro” por meio de uma visão sociopolítica envolvida com a psicologia das massas, e os acontecimentos que antecederam a efetiva invasão, como a movimentação em redes sociais e o financiamento de expedições à Capital Federal visando à execução dos atos. Ademais, buscou-se avaliar a noção de autoria delitiva na doutrina e os aspectos que a compõem e a concepção dos crimes multitudinários para pensadores e a aplicação prática nos julgamentos dos manifestantes do 8 de janeiro.

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Com esses fins, foram reunidos os seguintes trabalhos acadêmicos:

Autor

Título

Resumo

Resultados

DA FROTA, 2023

Os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023: sadismo, masoquismo e vidas colonizadas

Oferecer contribuições à Criminologia no exame dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, à luz do diálogo entre as perspectivas psicanalítica, existencial, marxista e de colonial

Percebeu-se que ao se vandalizar a Praça dos Três Poderes, manifestava-se o masoquismo do sujeito de desconsiderar o bem-estar próprio e da sua família, no longo prazo, em nome do gozo imediato, ao apelar à violência institucional e grupal

VIDIGAL; BORGES, 2018

Do lulismo ao antipetismo? Polarização, partidarismo e voto nas eleições presidenciais brasileiras

Contribuir com a literatura de polarização colocando em questionamento alguns diagnósticos relativos à consolidação do sistema partidário presidencial

Evidências de uma crescente convergência ideológica entre os vários segmentos do eleitorado ao longo do tempo

KORQUIEVICZ; et al, 2023

A restauração dos bens culturais destruídos nos atos 8 de janeiro de 2023 como meio de fortalecer o Estado Democrático de Direito.

Análise sobre os bens culturais mais importantes que foram destruídos no atentado aos prédios dos três poderes.

as restaurações dos bens atingidos ocorreram rapidamente, mandando uma mensagem aos vândalos de que a democracia brasileira permanece inabalada

DE CARVALHO,2019

Crimes multitudinários

Levantar subsídios para equação, afora tantas outras dificuldades encontradas no palco das multidões, de questão principal, qual seja, a inclusão do crime multitudinário como forma sui generis de concurso de pessoas.

Conclui-se que se cuida de verdadeiro concurso de pessoas

SABBATINI; et al, 2023

Ataque à democracia e repercussão do 8 de janeiro.

Somar esforços para construir conhecimento e desenvolver mecanismos para frear ameaças on-line e fortalecer valores democráticos no Brasil

Após repercussão negativa inicial, perfis favoráveis à tentativa de golpe se articularam para emplacar narrativa de “infiltrados” da esquerda nos ataques aos Três Poderes em Brasília, sobretudo em grupos de aplicativos móveis.

PINTO; SANTOS, 2023

DE MANIFESTANTES À TERRORISTAS: o enquadramento midiático e a circulação de sentidos do acontecimento 8 de janeiro de 2023

Entender como quatro veículos nacionais (CNN, Jovem Pan News, G1-DF e Folha de S. Paulo) enquadraram o acontecimento 8 de janeiro e que sentidos colocaram em circulação a partir de suas manchetes e subtítulos

Cada sentido acionado se relaciona com intencionalidades, ideologias diferentes e pretendem mobilizar no público uma leitura específica do mesmo ato, até que ocorra a sua normalização.

TATAGIBA; GALVÃO, 2019

Os protestos no Brasil em tempos de crise

Analisar as características dos protestos no Brasil entre 2011 e 2016, um contexto socioeconômico e político marcado pelas contradições e pelo ocaso dos governos petistas

Apontam tanto a permanência dos conflitos de classe quanto o fortalecimento de conflitos estruturados em torno de outros pertencimentos identitários, especialmente os das chamadas minorias.

RENNÓ, 2022.

Bolsonarismo e as eleições de 2022

Apresentar evidências da consolidação do bolsonarismo baseadas em levantamentos de opinião pública

Os dados apontam para uma consistente adesão de parcela da população, tanto em sua manifestação de apoio a Bolsonaro como da relação desse apoio a posições políticas

Buzanello, 2018.

ASPECTOS JURÍDICOS DOS PROTESTOS PÚBLICOS NO BRASIL

Analisar apenas quando os movimentos sociais descambam para a violência e com incidentes gravosos contra pessoas e danos de bens públicos e privados

Em regra, aprova-se os protestos públicos, mas não se aprova o uso da violência ou o abuso do direito de manifestação

DE OLIVEIRA; FERRAZ, 2023.

Democracia defensiva no Brasil? Uma análise conceitual e jurisprudencial

Se debruçar sobre o tema da “democracia defensiva”, de modo a delimitar seu conceito técnico e analisar a jurisprudência internacional sobre o assunto

A construção de um “princípio da democracia defensiva” em nosso país não é algo que seria alheio à nossa realidade institucional. Representaria a defesa de aspectos centrais do Estado brasileiro

Autoria no direito penal

A autoria consiste, basicamente, em praticar conduta descrita como infração penal. O disposto no art. 29 do Código Penal Brasileiro aduz que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” (Brasil, 1940). O conceito de autor, no entanto, foge das perspectivas codificadas e precisa encontrar respaldo em discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Ao adotar-se um conceito restritivo de autor, este será somente quem praticar a conduta descrita no núcleo do tipo penal, excluindo os demais que não praticassem o verbo nuclear, ainda que houvessem prestado auxílio ou participação, atribuindo-lhes o conceito de partícipe (Greco, 2023). Embora aclamada por parte da doutrina alemã, tal perspectiva é insuficiente para representar o conceito mais adequado de autoria delitiva. Por outro lado, a teoria subjetiva da participação entende que há distinção entre autores e partícipes quanto à atuação do agente na prática de um fato tido como próprio (autor) ou como alheio (partícipe), modelo objeto de críticas doutrinárias, apesar de por vezes aplicada no ordenamento nacional. A chamada teoria do domínio do fato, por sua vez, surge a partir do estudo de Hans Welzel, e leciona que a característica do autor é sua posição como dominador do fato, pois o agente como senhor de sua conduta o transforma em autor do fato (Welzel, 1987), doutrina essa que auxilia a aplicação da teoria objetivo-material na jurisdição brasileira.

Um dos pontos de discussão presentes no estudo dos aspectos penais dos atos antidemocráticos é a relação entre os agentes e uma possível presença de concurso de pessoas. Para a sua caracterização, é necessária a concorrência dos seguintes elementos: a pluralidade de agentes, a relevância causal dos comportamentos, a identidade de infração penal e o liame subjetivo entre os autores (Bitencourt, 2020). Portanto, um dos aspectos a serem debatidos é a aplicação do concurso de pessoas aos crimes multitudinários, como os ocorridos nas manifestações do 8 de janeiro.

Crimes multitudinários e a aplicação do concurso de pessoas

Multidões criminosas são aglomerados de pessoas que, unidas seja por um sentimento conjunto, seja por mandamento de um autor intelectual, promovem caos e perturbações generalizadas umas contra as outras ou contra um objeto em comum (Lima, 1958). Em relação especificamente aos crimes praticados por tais multidões, há divergência doutrinária quanto à individualização das condutas e à prática de infrações penais semelhantes ou divergentes, a depender da vontade livre e consciente de cada agente participante do tumulto, de modo a afastar a responsabilidade penal objetiva (Carvalho, 2019). Para uma parcela da doutrina, à qual se filia Mirabete, todos os envolvidos na multidão respondem pela mesma infração penal. Nas palavras do ilustre doutrinador (Mirabete, 2024):

Afastada a hipótese de associação criminosa (art. 288), é possível o cometimento de crime pela multidão delinquente, como nas hipóteses de linchamento, depredação, saque etc. Responderão todos os agentes por homicídio, dano, roubo, nesses exemplos, mas terão as penas atenuadas aqueles que cometerem o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocaram (art. 65, III, e). A pena, por sua vez, será agravada para os líderes, os que promoveram ou organizaram a cooperação no crime ou dirigiram a atividade dos demais agentes (art. 62, I).

Em contrapartida, pensadores como Rogério Greco defendem a tese de que apesar da presença de um grupo em convergência de um objetivo, não há que se falar em liame subjetivo para justificar condenações por delitos comuns, sem especificar os resultados perpetrados por cada agente (Greco, 2023). Para o Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais:

Concluindo, somos da opinião de que nos crimes multitudinários não podemos presumir o vínculo psicológico entre os agentes. Tal liame deverá ser demonstrado no caso concreto, a fim de que todos possam respondem pelo resultado advindo da soma das condutas

Para o caso em tela, a atuação da Procuradoria-Geral da República resultou na denúncia de mais de mil e trezentas pessoas, assim como há a tentativa de acordos de não persecução penal. De forma a culminar em auxílio à PGR, os próprios envolvidos compartilharam via redes sociais vídeos e imagens nas quais pregavam o desejo de uma intervenção militar e a ruptura com o estado democrático de Direito. Desse modo, era questionável se há, ou não, a aplicação do vínculo subjetivo entre os autores, observada essa vontade comum de derrocada de um governo democraticamente eleito por meio de invasões a sua sede e a promoção do caos generalizado.

Repercussão do caso no Supremo Tribunal Federal

Para a jurisprudência, a situação não é controvertida. É de entendimento consolidado do Supremo a atribuição dos mesmos resultados aos participantes dos crimes em questão, observado o disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, e desde que não implique prejuízo à defesa dos acusados. O CPP aduz que a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (Brasil, 1941), porém a jurisprudência admite a imputação com narração genérica dos fatos atribuídos a cada agente. In verbis:

“nos crimes multitudinários, ou de autoria coletiva, a denúncia pode narrar genericamente a participação de cada agente, cuja conduta específica é apurada no curso do processo desde que se permita o exercício do direito de defesa” (HC 73638, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Julgamento: 30/04/1996, Publicação: 07/06/1996).

Desse modo, é evidente que o Supremo Tribunal Federal se filiou à tese de Mirabete e manteve válido o precedente do Ministro Maurício Corrêa, para o julgamento e condenação de réus que participaram dos ataques violentos à República. Foram condenados, até o momento, mais de duzentos participantes da intentada contra o livre exercício dos poderes republicanos e o sistema eleitoral nacional. Os julgamentos das APs 1074, 1076, 1080, 1085, 1261, 1268, 1393, 1397, 1404, 1415, 1419, 1431, 1506 e 1513 mostram a perspectiva do STF quanto à participação de agentes e os crimes cometidos. A saber, a Ação Penal 1109/DF, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, é impositiva no sentido de que não houve a inépcia da petição inicial pela ausência da imputação a ações individualizadas. Para o relator,

Importa mencionar que não se exige, nesse particular, que a conduta de todos seja idêntica, desde que se insira na linha de desdobramento causal dos fatos típicos puníveis, o que, quanto às imputações realizadas na denúncia, não há dúvidas.

Nesse sentido, torna-se irrelevante discriminar qual ou quais bens o denunciado danificou, ou mesmo especificar como o denunciado confrontou as forças de segurança pública. Isso porque, pelo que se verifica dos elementos probatórios coligidos, os crimes, praticados em contexto de multidão, somente puderam se consumar com a soma das condutas e comunhão dos esforços de todos que, unidos pelo vínculo psicológico - propósito comum ou compartilhado -, contribuíram efetivamente para a realização dos resultados pretendidos.

Sendo assim, uma vez que, em uma linha de desdobramento fático, a conduta individualizada de cada participante dos ataques foi relevante para a perpetração dos crimes em questão, é possível a imputação de condutas genéricas, com a devida venia a condutas passíveis de individualização. Para Alexandre de Moraes, no bojo da AP 1075:

Além disso, as variadas e multitudinárias condutas, dentre elas a do denunciado, tiveram evidente relevância causal para a produção dos resultados materiais ou jurídicos compartilhados, sendo certo que, caso não houvesse a adesão de agrupamento com essa dimensão quantitativa, os crimes não poderiam ser executados da forma que se verificou.

Portanto, entende-se que o papel do STF no julgamento dos crimes cometidos levou em consideração o aspecto psicológico-social envolvido nos atos, porém não afastou a responsabilidade individual de cada participante da multidão, permitindo a individualização de condutas quando evidentemente possíveis de tal efeito, à medida que a Procuradoria da República integrou aos autos situações específicas de cada agente.

Entre os delitos cometidos pela multidão, incluem-se os crimes previstos nos artigos 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (Golpe de Estado), 163, parágrafo único, I, II, III e IV (dano qualificado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), todos do Código Penal, assim como o artigo 62, I (deterioração do Patrimônio tombado), da Lei 9.605/1998. Para a dosimetria da pena, o STF aplicou o supracitado artigo 29 do Código Penal, de modo a calcular as penas na medida da culpabilidade de cada agente. Assim, as penas foram fixadas entre 12 a 17 anos. A saber, na AP 1413, foi aplicada ao réu a pena de 12 anos de reclusão; ao réu da AP 1183, foram aplicadas as penas de 17 (dezessete) anos, sendo 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção e 100 (cem) dias-multa, cada dia-multa no valor de 1/3 (um terço) do salário mínimo; quando da AP 1109, aplicou-se a pena de 14 (quatorze) anos, sendo 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção e 100 (cem) dias-multa. Destarte, foi considerada a aplicação de penas pela incursão nos delitos supracitados, em concurso material (art. 69 do CPB), na medida da culpabilidade de cada agente.

No sentido de se tratar de um crime multitudinário, em que pese a dificuldade da individualização das condutas, também houve a previsão de pagamento de multa estimada em R$30.000.000,00 (trinta milhões de reais), a ser adimplida de forma solidária pelos condenados. Será aferido, portanto, o grau e a intensidade de culpa, no caso concreto, entre provas e perícias, para apurar o teor da contribuição individual (Buzanello, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, depreende-se que, em que pese a concepção da vida em sociedade é predeterminada pelo contrato social de condicionamento à vontade comum, o corpo social está suscetível a divergências e insurgências políticas que, por vezes, culminam na subversão de parcela da população. No caso em tela, tem-se que o ocorrido em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023 decorreu da efervescência na política brasileira da última década, e resultou na ação subversiva criminosa, ora apurada no mais alto escalão da jurisdição nacional.

Portanto, como se evidencia, a repercussão jurídica do caso levou o Supremo Tribunal Federal a adotar divergências doutrinárias para a apuração de condutas individualizadas, de modo a garantir o devido processo legal e os princípios que lhe são inerentes. Em síntese, foi adotada a tese levantada pelo relator Ministro Alexandre de Moraes, no sentido de atribuir aos julgados o concurso de pessoas e a responsabilização integral e solidária dos ilícitos.

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Herbeth Barreto de Souza

Advogado e Professor. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor da disciplina de Direito Penal IV da FACSUR︎

Eshterfany costa

Graduanda em Direito pela Faculdade Supremo Redentor – FACSUR

Ruan Victor Chaves Soares

Graduado em Direito pelo Uniceuma, especialista em Direito público e prática criminal Docente do Curso da FACSUR – Especialista em Direito Público e Criminal.︎

Pamela Suen Fonseca Mineiro Pereira

Mestra em Direito e Afirmação de Vulneráveis︎

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