Anencefalia: um olhar constitucional frente à decisão da ADPF n° 54 pelo STF

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Resumo: O presente trabalho faz uma breve análise do julgamento da ADPF 54/DF pelo Supremo Tribunal Federal, que abordou o tema da interrupção de gravidez/ antecipação de parto de fetos anencéfalos, considerados fetos inviáveis no que tange à vida extrauterina. Esse tema, por versar sobre a proteção do direito à vida, suscita grande comoção social, dessa forma, para melhor contextualização da temática, que tem por objetivo geral a análise da decisão da ADPF 54/DF, surgem os seguintes objetivos específicos: abordar os conceitos de direito à vida, do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia de vontade, que deriva do direito privado; e, conceituar nascituro identificando as teorias que versam sobre seu tratamento jurídico. A metodologia utilizada foi a bibliográfica, utilizando-se de doutrinas reconhecidas e consolidadas de autores como Gilmar Mendes, Maria Helena Diniz, Ingo Wolfgang Sarlat, Marcelo Novelino, Pedro Enza, Elpídio Donizetti e Carlos Roberto Gonçalves. Numa decisão considerada histórica e marcante, o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que é inconstitucional a interpretação que a interrupção da gravidez de feto a encéfalo deve ser conduta tipificada, tal decisão se baseou em princípios constitucionais basilares do estado democrático de direito e reforçou a supremacia constitucional frente ao Código Penal de 1940.

Palavras-chave: Direito à vida; Nascituro; Anencefálico; ADPF.


INTRODUÇÃO

O direito à vida é alçado a uma posição diferenciada e privilegiada frente aos outros direitos por ser uma condição indispensável, já que sem a garantia à vida não há que se falar na existência de outros direitos garantidos pelo ordenamento, porém há que se destacar que não há hierarquia entre direitos, mesmo no que tange o direito à vida.

Dessa forma, insta destacar que não há direito absoluto no ordenamento brasileiro, assim sendo, até mesmo o direito à vida comporta relativizações, inclusive, o aborto é uma dessas possibilidades.

Através da ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para se posicionar acerca de decisões que tipificam a interrupção da gravidez do feto anencéfalo, considerando que resta configurado crime de aborto. Assim, o objetivo geral dessa pesquisa é analisar a decisão da ADPF 54 pelo STF.

A fim de melhor contextualizar a temática faz-se necessário os seguintes objetivos específicos: abordar conceitos relativos ao tema tais como o direito à vida, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia de vontade que deriva do direito privado; conceituar nascituro e identificar as teorias que versam sobre o tratamento jurídico; assim, se torna mais profícua a análise da decisão da referida ADPF.

A justificativa do tema se denota pela relevância e atualidade da temática que é polêmica e suscita opiniões que abarcam convicções pessoais e até de cunho religioso, dessa forma, nessa decisão é reforçada a laicidade do Estado e a supremacia dos princípios constitucionais.


DO DIREITO À VIDA, PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA AUTONOMIA DE VONTADE

Preliminarmente, faz-se necessário abordar alguns conceitos a fim de contextualizar a discussão acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54/ Distrito Federal, são eles o direito à vida, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia de vontade.

O direito à vida, conforme Sarlet (2022), é associado a uma concepção de direito natural inato e inalienável do ser humano e remonta aos primórdios do constitucionalismo moderno. O primeiro diploma que mencionou o direito à vida nos contornos atuais foi a Declaração dos Direitos da Virgínia de 1776 porém, sua consagração ocorreu através da Declaração dos Direitos do Homem de 1948, fomentada pelos Direitos Humanos no contexto pós segunda Guerra Mundial, que causou grandes impactos sociais a nível mundial.

Para Gilmar Mendes e Paulo Branco “é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí -lo. (Mendes; Branco, 2023, p. 397). Assim, dessa forma, o lugar de destaque do direito à vida verifica-se pois, sem sua garantia não faria sentido a previsão de outros direitos, já que a vida é indispensável para que a pessoa possa usufruir de previsões legais.

A definição do direito à vida “abrange tanto o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna (Lenza, 2023, p. 1.713)”. Evidencia-se que a proteção que o legislador intentava garantir, quando trouxe a proteção do direito à vida, não se limitava à manutenção da existência corpórea, mas sim que a vida pudesse ser digna.

No tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana, interessante destacar que ele é um princípio expressamente contemplado no texto constitucional, que representa um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Ademais, de acordo com entendimento de Marcelo Novelino (2023, p.297-298) a dignidade da pessoa humana, como um fundamento da República Federativa do Brasil, é caracterizada como um

núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, a dignidade é considerada o valor constitucional supremo e, enquanto tal, deve servir, não apenas como razão para a decisão de casos concretos, mas principalmente como diretriz para a elaboração, interpretação e aplicação das normas que compõem a ordem jurídica em geral, e o sistema de direitos fundamentais, em particular. O reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelas constituições em diversos países ocidentais tiveram um vertiginoso aumento após a Segunda Guerra Mundial, como forma de reação às práticas ocorridas durante o nazismo e o fascismo e contra o aviltamento desta dignidade praticado pelas ditaduras ao redor do mundo. A escravidão, a tortura e, derradeiramente, as terríveis experiências feitas pelos nazistas com seres humanos, fizeram despertar a consciência sobre a necessidade de proteção da pessoa, com o intuito de evitar sua redução à condição de mero objeto.

Enfatiza-se que a positivação da dignidade da pessoa humana, em inúmeras Constituições das mais diversas nações existentes, confirma seu caráter jurídico, posto que seu reconhecimento expresso implica a admissão como um valor moral que ganha contornos jurídicos e, por isso, dotado de normatividade. Assim, a relação entre o Estado e o particular deve pautar-se no benefício dos seres humanos e de seus direitos de personalidade, pois as pessoas devem servir de limite e fundamento para o exercício da atividade administrativa do Poder Público.

Além disso, verifica-se que a dignidade não é somente um direito dos indivíduos porque representa uma qualidade intrínseca deles, portanto não depende de ancestralidade, raça, gênero, orientação sexual, classe social ou qualquer outro tipo de requisito ou atributo sendo algo que não cabe relativização ou hierarquia. Dessa maneira, a dignidade apresenta um caráter absoluto, uma vez que “não comporta gradações no sentido de existirem pessoas com maior ou menor dignidade” (Novelino, 2023, p.298).

Contudo, o princípio da dignidade da pessoa humana não deve ser considerado como um axioma absoluto, visto que apesar de sua interpretação exigir compromisso e ponderação, sua aplicabilidade, na mesma maneira que outros princípios, depende das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto podendo ocorrer, inclusive, conflito entre princípios em que um deles irá prevalecer.

Ressalta-se que a definição da dignidade da pessoa humana, como um fundamento da República Federativa do Brasil, “não significa, portanto, a atribuição de dignidade às pessoas, mas sim à imposição aos poderes públicos dos deveres de respeito, proteção e promoção dos meios necessários a uma vida digna” (Novelino, 2023, p.299).

Destaca-se que, a autonomia de vontade é um princípio contratual (do Direito Civil/Privado) que tem origem no Direito Romano e permite que as pessoas sejam livres para realizar negócios jurídicos contratuais e representa a liberdade do indivíduo de escolher com quem quer contratar, qual o objeto do contrato (que deve ser lícito e possível) e somente se quiserem. Outrossim, ele implica na liberdade de escolher suas ações, em conformidade com seus interesses (possibilidade de pensar, agir e decidir), buscando concretizar um acordo de vontades sem interferências profundas do Estado (Donizetti, 2023).

Especificamente na Bioética, a autonomia de vontade representa dar àqueles que são considerados capazes (aptos em manifestar livremente suas vontades, podendo exercer e adquirir direitos) a tomada de decisões sobre seu corpo, sua vida, sua saúde e relações pessoais, isto é, possibilidade de autogoverno, autodeterminação e livre decisão sem intervenções de terceiros e do Estado. Presume-se que. para exercício da autonomia. a pessoa esteja consciente do seu papel ético (moral e comportamento social esperado), bem como saiba respeitar a seara de decisões dos outros e compreenda a responsabilidade decorrente das suas atitudes

No que tange a (in)disponibilidade do direito à vida, percebe-se que existem no ordenamento jurídico pátrio algumas situações que representam uma certa relativização da inviolabilidade desse direito como, por exemplo, o reconhecimento da possibilidade de realização do aborto necessário (artigo 128, inciso I, do Código Penal), o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (artigo 128, inciso II, do Código Penal), a legítima defesa (artigo 25 do Código Penal), o estado de necessidade (artigo 24 do Código Penal), o estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito (artigo 23, inciso III do Código Penal) e na pena de morte no caso de guerra declarada (artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição Federal de 1988).


SOBRE O NASCITURO E SEU TRATAMENTO JURÍDICO

Nos termos do artigo 2º do Código Civil, a personalidade civil da pessoa natural no direito brasileiro começa a ser reconhecida com o nascimento com vida, com isso observa-se que a legislação pátria emprega a corrente natalista, conforme depreende-se da leitura da letra da lei.

Indispensável, portanto, discorrer sobre as Teorias que visam explicar e definir a situação jurídica do nascituro, uma vez que esse assunto ainda não é um consenso na doutrina, sendo elas: a Natalista, a da Personalidade Condicional e a Concepcionista.

Segundo a Teoria Natalista considera-se que a aquisição da personalidade jurídica acontece a partir do nascimento da pessoa com vida, sendo assim o nascituro teria apenas uma expectativa de direito que somente se concretizaria com o nascer (Schreiber, 2020).

A Teoria da Personalidade Condicional prevê que o nascituro apresenta direitos que se encontram sob condição suspensiva, isto é, admite que o feto representa a expectativa de vida humana por se tratar de uma pessoa em desenvolvimento, com isso a lei não pode desconsiderar sua existência, sendo assim o legislador preocupou-se em resguardar eventuais direitos dessa figura. Assim, “a proteção do nascituro explica-se, pois há nele uma personalidade condicional que surge, na sua plenitude, com o nascimento com vida e se extingue no caso de não chegar o feto a viver” (Gagliano; Filho, 2019, p.170).

Ocorre que, para que esse indivíduo tenha acessos aos direitos protegidos é necessário que nasça com vida, por isso o nascituro é uma pessoa condicional, de forma que a aquisição de seus direitos de personalidade depende da materialização da condição suspensiva que é a natividade. Além disso, essa condição especial (suspensiva) que permite o reconhecimento de direitos ao nascituro é conhecida como planiol de antecipação da personalidade (Tartuce, 2020).

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Já a Teoria Concepcionista pressupõe que o nascituro adquire sua personalidade jurídica no momento de sua concepção, por isso a partir desse momento seria considerado pessoa (sujeito de direitos), posto isso esse indivíduo teria direito à concretização de eventuais efeitos econômicos e materiais, incluindo direito aos alimentos que seriam decorrentes do reconhecimento de sua personalidade. Dessa maneira, “a personalidade começa antes do nascimento, pois desde a concepção já há proteção dos interesses do nascituro, que devem ser assegurados prontamente” (Gonçalves, 2022, p.123).

De acordo com Tartuce (2023) prevalece o entendimento da teoria concepcionista no direito brasileiro, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, pois os nascituros têm direitos assegurados desde a concepção. Já para Donizetti; Beck; Donizetti (2023) o ordenamento nacional adota a teoria natalista mas inova ao resguardar direitos desde a concepção, no entanto destaca que o posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça é concepcionista. Assim, fica evidente uma divergência doutrinária quanto à abordagem.

Evidencia-se que, o Código Civil de 2002 aplica expressamente a Teoria Natalista, no entanto a doutrina, conforme mencionado anteriormente, não é uniforme sobre o tema, já o Supremo Tribunal Federal definiu, em maio de 2008, através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, em que foi discutida a constitucionalidade da autorização legal para a manipulação de células-tronco de embriões excedentários utilizadas para finalidades que não fossem a reprodução:

autorizada pela Lei de Biossegurança (art. 5º da Lei n. 11.105/2005), prevaleceu, por apertado resultado (6x5), o entendimento do relator, Ministro Carlos Ayres Britto, no sentido de que a lei é constitucional. Em seu voto, expôs o ilustre julgador a sua posição no sentido de que “as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil”, assentando que “a Constituição Federal, quando se refere à ‘dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, III), aos ‘direitos da pessoa humana’ (art. 34, VII, b), ao ‘livre-exercício dos direitos individuais’ (art. 85, III) e aos ‘direitos e garantias individuais’ (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa” (Gonçalves, 2022, p.125).

Diante disso, observa-se que a Suprema Corte firmou entendimento no sentido de que direitos subjetivos assegurados na Constituição Federal de 1988 não podem servir de fundamento para a proteção ao nascituro, porque são destinados à proteção das pessoas que apresentam personalidade jurídica que, nos termos da lei civil, somente se inicia com o nascimento com vida.

Destaca-se que, de acordo com todas as informações explicitadas acima, o nascituro pode ser considerado como o feto que está por nascer, porém já se encontra concebido no ventre de sua genitora, ou seja, é aquele indivíduo que foi concebido, entretanto encontra-se em vida intrauterina e não nasceu.

De acordo com o Conselho Nacional de Saúde o nascimento com vida se inicia com a respiração e batimentos cardíacos fora da vida uterina, assim, pelo Direito Civil,

se inicia a personalidade jurídica e a pessoa humana se torna titular de direitos e deveres, porém, desde a concepção há o resguardo legal de diversos direitos, entre eles o de manutenção da vida, igualmente protegidos estão os embriões com a concepção in vitro (Diniz, 2023).

Destarte, a personalidade jurídica pode ser compreendida como a aptidão geral conferida às pessoas (jurídicas e naturais) para serem detentoras de direitos e incumbir-se de obrigações, ou seja, a possibilidade de ser reconhecido como um sujeito de direitos. Com isso, a partir do momento em que o indivíduo começar a exercer sua personalidade (com o nascimento com vida para as pessoas naturais e com a elaboração do ato de constituição e seu devido registro no cartório para as pessoas jurídicas) ele passa a ser um sujeito de direitos podendo praticar atos e negócios jurídicos (Araújo, 2022).


ANÁLISE DA DECISÃO ADPF 54/ DF

O aborto é expressamente penalizado no Brasil, nos artigos 124 a 125 do Código Penal, sendo que a nomenclatura dos delitos são: aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento; aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante; aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante e aborto majorado/qualificado.

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124. - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: (Vide ADPF 54)

Pena - detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125. - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos (Brasil, 1940).

Além disso, existem também formas legais de aborto, as excludentes de ilicitude, elencadas no art. 128. do Código Penal. Sendo, portanto, lícita a conduta do médico que realiza aborto em casos de não haver outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez resulta de estupro ou ainda em casos de fetos diagnosticados com anencefalia, este último, alcançado por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.

Aborto necessário

Art. 128. - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (Brasil, 1940).

Em 17 de junho 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou a arguição de descumprimento de preceito fundamental, quanto à apreciação judicial desfavorável à antecipação de parto de fetos anencéfalos, nessa petição foi exposto que o Poder Judiciário estava empregando o Código Penal, datado da década de 1940, em detrimento da Constituição Federal de 1988 ao considerar aborto devidamente tipificado a interrupção dessa gestação que é incompatível com a vida extrauterina, foi salientado que princípios tais como dignidade da pessoa humana; princípio da legalidade e da liberdade; princípio da autonomia de vontade; e, direito à saúde não estavam sendo devidamente ponderados (Brasil, 2012).

A anencefalia é uma anomia que consiste na “malformação do tubo neural, caracterizando-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária (Brasil, 2012, p. 44)”.

A premissa principal da tese apresentada sustentou que o crime de aborto visa atingir apenas o sujeito passivo que tem potencial de ser uma pessoa natural com personalidade jurídica e, no caso da anencefalia, não se adequa, já que se o produto dessa gravidez é apenas uma expectativa mórbida de um feto inviável, desse modo a intervenção abortiva não deve ser considerada criminosa, uma vez que não há possibilidade de continuidade da vida extrauterina do feto (Brasil, 2012).

De acordo com o ministro Luiz Fux (2012)

Um bebê anencéfalo é geralmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de alguns indivíduos com anencefalia poderem viver minutos, a falta de um cérebro em funcionamento permanente descarta completamente a possibilidade de qualquer ganho de consciência. Ações reflexas como a respiração, resposta a sons ou olfato são absolutamente inocorrentes. O prognóstico para bebês que nascem com anencefalia é extremamente ruim. Se o infante não é natimorto, como declarou aqui o Ministro Marco Aurélio, com os dados científicos coligidos, geralmente ele vem a falecer em horas após o nascimento (Brasil, 2012, p. 156-157).

Sendo assim, de acordo com o Ministro Marco Aurélio (2012):

impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença (Brasil, 2012, p. 6-7).

Dessa forma, entende-se que não é razoável fundar-se de forma intransigente ao direito à vida, compelindo a gestante a prosseguir com uma gravidez que causará danos psicológicos, tendo em vista a frustração de conceber um feto com tão severa anomalia, sem nenhuma chance de sobrevivência, a fim de valer a letra da lei. Não pode o mero formalismo suplantar a dignidade da pessoa humana, no caso em tela, uma mãe grávida de um feto inviável para a vida extrauterina, inevitavelmente, sofrerá com as consequências dessa experiência traumática.

O Supremo Tribunal Federal em sua decisão considerou que a conduta do médico que realiza o procedimento mencionado deve ser considerada atípica, uma vez que a comprovação de ausência de atividade cerebral do feto confirma que ele não tem vida, sendo que o conceito de vida, para os mais diversos ramos de conhecimento, entende que a atividade cerebral é indispensável para sua configuração.

No referido acórdão, o STF ressaltou a laicidade do estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana a liberdade sexual e reprodutiva, a saúde, a autodeterminação e os direitos fundamentais, declarando inconstitucional a decisão que considere a interrupção da gravidez de feto anencéfalo penalmente tipificada (Brasil, 2012).

Dessa forma, resta claro que o diagnóstico concreto da anencefalia permite que o aborto seja considerado legal e, consequentemente, seja alcançado pela excludente de ilicitude e não possa ser encaixado nas condutas típicas previstas nos artigos 124 e 126 do Código Penal. Além do mais, representa uma situação em que não se compele a mulher a interromper a gravidez, mas sim viabiliza o exercício de uma faculdade pessoal de não andar andamento a gestação até o seu encerramento natural, já que que a criança não nascerá com vida, e isso só contribuiria para o desgaste emocional, físico e psicológico a mulher e seus familiares.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente trabalho, plenamente atingido, foi analisar a decisão da ADPF 54/DF que abordou a questão da antecipação de parto de feto anencéfalo, importante destacar que é um tema espinhoso e bastante polêmico.

Para melhor contextualização trouxe uma breve discussão sobre conceitos pertinentes à temática, quais sejam direito à vida, princípio da dignidade da pessoa humana e autonomia de vontade (derivada do direito privado). Em seguida teceu breves comentários quanto ao nascituro e seus direitos assim como das teorias que definem sua situação jurídica, para, nesse contexto, tecer breve análise acerca do acórdão da ADPF 54/DF, que fixou a tese da admissão da interrupção da gravidez do feto anencéfalo.

Cabe frisar que o Código Penal, datado de 1940, trouxe a tipificação de crime de aborto assim como das possíveis excludentes, porém, de forma expressa, não foi tratada a questão do feto anencéfalo à época, tendo em vista que o avanço da medicina da época sequer discutia acerca desse tema, dessa forma, a jurisprudência divergia sobre a devida interpretação do caso e majoritariamente a conduta era tipificada como o crime de aborto.

Dessa forma, o STF foi compelido a se posicionar e à luz dos princípios constitucionais, consoantes a Carta Magna de 1988, foi decidido que a antecipação do parto de feto anencéfalo é conduta atípica para o ordenamento e consideram-se inconstitucionais as decisões que deliberarem de forma oposta, dessa forma, a segurança jurídica se restaura pela supremacia constitucional frente à lei infraconstitucional e em prol do estado democrático de direito.


REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

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