Sou solteira, sem filhos, pais já falecidos mas tenho vários irmãos e pretendo beneficiar apenas um deles em Testamento. É possível?

03/06/2024 às 11:19
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O TESTAMENTO é um instrumento destinado a conter as disposições de vontade do "testador" para que produzam efeitos posteriormente à sua morte. Não somente questões patrimoniais podem ser dispostas em testamentos porém essa é, sem dúvida, uma das maiores senão a maior razão para utilização do instrumento. A legislação brasileira autoriza várias formas de Testamento sendo que duas são as mais conhecidas dentro dos chamados "Testamentos Ordinários" elencados no art. 1.862 do Código Civil: o Testamento Público (feito em qualquer Cartório de Notas, lavrado por Tabelião ou por seu Substituto Legal) e o Testamento Particular, que pode ser feito pela própria pessoa, sem necessidade de Tabelião ou mesmo Advogado - o que acende o alerta desde já para a necessidade de conhecer todas as regras específicas e complexas do Código Civil l acerca do Direito das Sucessões, sob pena de suas disposições serem reputadas como INVÁLIDAS, resultando no não cumprimento do testamento.

Como já tratamos em outras passagens aqui, via de regra com o falecimento da pessoa deverá ser realizado "Inventário e Partilha" dos seus bens para fins de, prioritariamente, liquidação de suas dívidas e, sobrando, distribuição entre os seus herdeiros, em conformidade com as regras do art. 1.997 do CCB:

"Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube".

Ou seja, não se distribui bens a herdeiros se não for apurado, antes, se existem DÍVIDAS deixadas pelo morto que, conforme regra acima, deverão ser suportadas pela sua herança. Mas quem são esses herdeiros? Os herdeiros são aqueles arrolados pelo art. 1.829 do Código Civil mas a questão não é tão simples quanto parece, já que na verdade, havendo TESTAMENTO entra em jogo a necessidade de se analisar a transmissão patrimonial "causa mortis" sob o prisma da SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA, quando então a vontade do testador deve prevalecer às determinações "padrão" do legislador quando do desenho da Sucessão Legítima, desde que é claro observadas algumas regras restritivas muito importantes, como aquela que determina que na existência de herdeiros necessários não poderá o Testador dispor sobre a totalidade dos seus bens:

"Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança".

Herdeiros necessários, por sua vez, com base no Código Civil vigente até esse momento, são todos os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (e também devemos ler aqui o (a) companheiro (a) do testador/autor da herança):

"Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge".

Aos herdeiros necessários, como visto acima, pertence a LEGÍTIMA (ou seja, a metade do patrimônio do testador), o que não significa dizer que em vida o titular dos bens não possa vender todos eles (mas isso não se aplica à DOAÇÃO, onde inclusive há restrição legal do artigo 549 do mesmo Código Civil).

Na elaboração do Testamento - por mais que a jurisprudência dos Tribunais iluminada pela orientação do STJ tenda a preservar ao máximo a aplicação e validade das deixas testamentárias ainda que com controlado sacrifício de regras legais (vide, p.ex., REsp 2080530/SP. J. em 17/10/2023) - não se pode deixar de observar as regras do Código Civil sob pena de invalidade das disposições. Não por outra razão, ainda que feito por Tabelião de Notas (e com muito mais razão se a hipótese for de Testamento Particular) a assistência e orientação por Advogado Especialista se mostra um caminho seguro e altamente recomendado.

Não sendo caso de existirem herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro) mas apenas IRMÃOS (que são considerados herdeiros colaterais ou facultativos - art. 1.592) se mostra plenamente possível e legal dispor de todo o patrimônio beneficiando única e exclusivamente terceiros ou apenas um dos irmãos, se essa for a vontade do testador o que é confirmado com a interpretação do art. 1.850 do Código que reza:

"Art. 1.850. Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar".

A lição é também do saudoso professor CRISTIANO CHAVES DE FARIAS em obra coescrita com o não menos brilhante professor NELSON ROSENVALD (Curso de Direito Civil - Sucessões. 2023):

"Os herdeiros necessários (ou herederos forzosos, como prefere o Código Civil da Espanha) não podem, ordinariamente, ser preteridos pela vontade do titular. Dessa forma, uma pessoa que tenha descendentes, ascendentes ou cônjuge não poderá testar mais do que cinquenta por cento do seu patrimônio por conta do direito reconhecido ao herdeiro necessário. Ao revés, os herdeiros facultativos podem ser excluídos da herança pela vontade do titular. Em sendo assim, através de um testamento, o autor da herança tem a prerrogativa de dispor na inteireza de seu patrimônio em favor de terceiros, em detrimento do herdeiro facultativo. O art. 1.845 da Lei Civil é de clareza meridiana ao prescrever que os herdeiros necessários são os descendentes, ascendentes e cônjuge sobrevivente."

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Ora, não se desconhece que a afetividade deve permear as relações familiares que estão intimamente ligadas a questões patrimoniais e inclusive sucessórias. É muito comum que o testador tenha um parente preferido ou mais afeiçoado, um irmão, um sobrinho, dentre muitos outros. Ainda assim, mesmo sem qualquer motivação, a autonomia privada deve ser prestigiada, especialmente com base na regra do art. 1.850 citado. Não se pode negar ao testador o direito de direcionar com exclusividade seu patrimônio para aquele a quem desejar - desde que é claro sua disposição não ofenda nenhuma restrição legal - como reconhece a jurisprudência paulista com acerto costumeiro e precisão cirúrgica:

"TJSP. 1019593-57.2021.8.26.0100. J. em: 23/03/2023. TESTAMENTO PÚBLICO - Autora da herança dispôs da integralidade de seus bens em prol de herdeiro testamentário e, caso falecido, aos seus respectivos sucessores - Testamento que beneficiou APENAS UM DOS IRMÃOS - Insurgência da autora, que também é irmã da testadora - NÃO ACOLHIMENTO - Inexistência de herdeiros necessários - Autorização legal para dispor da totalidade de bens em favor de herdeiro testamentário - Herdeira colateral não contemplada no testamento - Exclusão da sucessão - Inexistência de direito à herança - Premoriência do legatário - Falecimento do herdeiro testamentário antes da testadora - Alegada caducidade do testamento, à luz do artigo 1.939, inciso V, do Código Civil - Não ocorrência - Expressa manifestação de vontade da testadora nomeando seus sobrinhos (sucessores) como substitutos testamentários - Disposição testamentária válida - Falta de interesse de agir caracterizada - Sentença de extinção mantida - RECURSO NÃO PROVIDO".

Sobre o autor
Julio Martins

Advogado (OAB/RJ 197.250) com extensa experiência em Direito Notarial, Registral, Imobiliário, Sucessório e Família. Atualmente é Presidente da COMISSÃO DE PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS da 8ª Subseção da OAB/RJ - OAB São Gonçalo/RJ. É ex-Escrevente e ex-Substituto em Serventias Extrajudiciais no Rio de Janeiro, com mais de 21 anos de experiência profissional (1998-2019) e atualmente Advogado atuante tanto no âmbito Judicial quanto no Extrajudicial especialmente em questões solucionadas na esfera extrajudicial (Divórcio e Partilha, União Estável, Escrituras, Inventário, Usucapião etc), assim como em causas Previdenciárias.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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