Um mapa-mundí busca representar graficamente e, de forma reduzida, a superfície dos territórios em escala planetária. A tentativa de situar os lugares do mundo de forma visual é antiga, tendo a sua origem na Babilônia (o mapa Ga-Sur, feito em argila, aproximadamente em 2300 A.C.), e a lógica moderna do desenho da divisão política dos países ao redor do globo acompanha a configuração dos Estados e da sua expansão territorial de poder.
O Brasil aparece nos mapas a partir das grandes navegações, por meio do Planisfério de Cantino, em 1502, que registra os descobrimentos portugueses e a divisão territorial feita pelo Tratado de Tordesilhas. Mais tarde, vê-se a primeira menção ao nome Brasil no Planisfério de Jerónimo Marini, de 1511, o qual coloca a América portuguesa a leste do continente africano, pois, em comparação com os mapas contemporâneos, foi desenhado de cabeça para baixo. Aos curiosos, este mapa pode ser hoje visualizado na mapoteca histórica do Itamaraty no Rio de Janeiro.
O modelo de mapa-mundí eurocêntrico, com o continente americano à esquerda, o africano e o Polo Sul abaixo da Europa, e a Ásia e a Oceania à direita, foi projetado a partir dos trabalhos de Gerardus Mercator, em 1569. Dali em diante, outras projeções foram surgindo e aperfeiçoando à de Mercator.
Ao longo da história, vários países surgiram, assim como outros deixaram de existir, tendo os mapas-mundí também se modificado e acompanhado os movimentos geopolíticos mundiais.
No mês de abril, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou uma nova edição do mapa-mundí e do Atlas Geográfico, causando certo estranhamento, mas, sobretudo, ensejando críticas bastante positivas. Os novos documentos do IBGE colocam o Brasil e a diversidade dos grupos formadores de nossa sociedade em primeiro plano.
Importa neste artigo tratar do novo mapa do IBGE e da valorização por ele atribuída ao patrimônio cultural nacional. Pode-se fazer um paralelo do novo mapa-múndi com a obra de arte “América Invertida”, do artista uruguaio Joaquín Torres Garcia. Na década de 1930, Torres Garcia fundava a Escola do Sul (“La Escuela Del Sur”), cujo pensamento questionava a subalternização da América Latina a perspectivas políticas, econômicas, epistemológicas e culturais provenientes do hemisfério norte.
O famoso desenho do mapa da América do Sul invertido de Torres Garcia apresenta o Uruguai como norte e, em sua legenda, o manifesto emociona a todos os que vivem nesse pedaço do mundo: “Porque, em realidade, nosso Norte é o Sul. Não deve haver norte para nós, se não, por oposição ao nosso Sul. Esta retificação era necessária, por isto agora sabemos onde estamos (J.T.G, 1944)” (tradução minha).
É interessante observar que “América Invertida” questiona não apenas o local geopolítico do nosso subcontinente, mas o lugar de memória construído nas referências documentais expressas nos mapas tradicionais. Mapas são documentos e, assim, formas de arquivos que alimentam a história oficial, nossas referências, identidades e, portanto, o nosso patrimônio cultural. Devem, contudo, ser observados criticamente, na compreensão de que os discursos hegemônicos se afirmam por uma lógica de poder que, ao privilegiar um ponto de vista, tende a obscurecer outros referenciais discursivos.
“Lugar de memória” é um conceito teórico sintetizado pelo historiador francês, Pierre Nora, e que diz respeito a aspectos simbólicos, materiais e funcionais, que coexistem entre si. Um mapa, considerado um arquivo material de memória, reveste-se de uma aura simbólica e de significação, que produz efeitos na sua utilização. Pensar na “América Invertida”, a partir do referencial simbólico do mapa eurocêntrico, é questionar a formação histórica da região, o seu contexto presente e a possibilidade de leituras futuras plurais.
O novo mapa-mundí do IBGE torna concreto o desejo de Torres Garcia de realocar a América do Sul como prioridade daqueles que aqui habitam. É sabido que a reiteração de práticas contribui para a formação de uma tradição. O mapa da América do Sul como periferia do hemisfério norte reflete os efeitos herdados da colonização europeia, da tradição eurocêntrica da percepção do mundo, reiterando uma posição marginal do continente. Realocar o Brasil para o centro do mapa-mundí significa, assim, um desejo por um maior protagonismo e pela construção de novas narrativas.
Pierre Nora nos informa que um lugar de memória é “constantemente aberto sobre a extensão de suas significações”. Se o eixo de nossa geografia política seguiu, até recentemente, um norte eurocêntrico, o novo mapa do Brasil nos faz atentar para outros nortes, mais plurais e abertos a significações que representem a diversidade cultural dos povos que habitam este nosso território.
*Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo , Advogada e pesquisadora em Direitos Culturais (GEDAI-UFPR, IODA e MAE/USP). Doutoranda em Direito na UFPR. Coordenadora do GT Direito e Arte da Comissão de Assuntos Culturais na OAB-PR. Servidora pública no Itamaraty, atualmente em exercício no Escritório do Ministério da Cultura no PR. Membro associada do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Referências:
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GARCIA, J. T. Léccion 30. La Escuela del Sur”. Documents of Latin American and Latino Art. In: INTERNATIONAL CENTER FOR THE ARTS OF THE AMERICAS AT THE MUSEUM OF FINE ARTS. ICAA: HOUSTON, 1944.. Disponível em: https://icaadocs.mfah.org/s/en/item/1245960#?c=&m=&s=&cv=&xywh=-1116%2C-54%2C3930%2C2199 Acesso em: 29 abr 2024. p. 213
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SCHAEFER, M. América Invertida: o mapa de ponta-cabeça. In: Teoria do Design. Disponível em: América Invertida: o mapa de ponta-cabeça - Teoria do Design Acesso em: 29 abr 2024. p. 213
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Proj. História. São Paulo: (10), dez, 1993. Tradução: Koury, Y. A.