Quem decidirá qual pesadelo nós viveremos? Os homens ou as máquinas?

04/06/2024 às 13:35
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Alguns analistas de direita exigem uma guerra mundial, ou no mínimo uma versão civilizada dela na Europa, para salvar o neoliberalismo do colapso. Varoufakis, principal teórico da esquerda europeia, afirma em seu último livroque o surgimento do Tecnofeudalismo já está causando a morte do capitalismo, porque as Big Techs criaram feudos em que exploram aluguéis tendo submetido à sua lógica inclusive os “negócios como de costume” que visam lucro.

O neoliberalismo está aparentemente morrendo, sem dúvida. Muito provavelmente, porém, esse sistema de poder econômico e político conseguiu levar a cabo com sucesso uma metamorfose (ou metástase, dependendo da perspectiva que for adotada). 

Os principais fluxos de capital financeiro, bem como quase toda a informação consumida e partilhada (seja verdadeira ou falsa), já dependem quase inteiramente da mediação de algoritmos poderosos e rentáveis que, como demonstraram vários autores, têm o poder de modelar o mundo. tanto economicamente como politicamente.

Estes algoritmos, quer eles sejam controlados por norte-americanos ou chineses, têm características diferentes de tudo o que foi anteriormente inventado para estruturar burocraticamente sociedades complexas. Podemos dizer com alguma segurança que eles governarão cada vez mais as nossas vidas em benefício dos magnatas das empresas de TI que criam Inteligências Artificiais para explorar lucrativamente dados que são produzidos a todo momento e em todos os lugares por bilhões de pessoas e instituições públicas e privadas. 

O ser humano sofre e é capaz de sentir (ou vivenciar em si mesmo) a dor sentida pelos seus semelhantes. Aqueles que não têm empatia muitas vezes se tornam um problema para a sociedade. Algoritmos não sofrem e possuem objetivos que devem ser alcançados mesmo que isso cause sofrimento a alguém em algum lugar. Não é possível ensinar algoritmos a desconsiderar seus objetivos se eles estiverem causando sofrimento. A vida dos homens é limitada, a vida dos algoritmos não. Portanto, os algoritmos causarão mais problemas à sociedade do que os seres humanos sem empatia. 

Não é possível hackear a consciência de um ser humano, mas ele pode ser convencido por argumentos racionais ou corrompido com dinheiro, cargo, benesses, etc. Algoritmos podem ser hackeados e corrompidos, mas apesar das consequências morais de suas ações no mundo fenomênico, um algoritmo corrompido nunca será algo ou alguém imoral. Divindades e demônios também não podem ser hackeados, sua “programação” é impermeável à ação de hackers humanos e aos algoritmos que eles criam para invadir sistemas e corromper pessoas. 

As guerras de religião deram origem ao princípio da liberdade de consciência religiosa e política, em decorrência do qual as pessoas podem ter ou não uma religião ou partido e até trocar uma religião ou partido por outro. Ninguém tem a liberdade de reconfigurar os algoritmos privados que de alguma forma estruturam as suas vidas. A liberdade algorítmica é uma necessidade, mas é incompatível com a economia construída em torno de algoritmos protegidos por copyright.

As guerras algorítmicas são inevitáveis, mas ninguém sabe ainda como elas serão. Entretanto, nós podemos dizer com alguma segurança que sabemos que o mundo será cada vez mais dividido entre aqueles que beneficiam política e economicamente dos dados produzidos por bilhões de pessoas e aqueles que simplesmente os produzem. Os barões das finanças e os barões dos dados estão juntos. Todos os outros ficarão divididos e por quanto tempo? As estruturas de poder econômico e político criadas no mundo virtual que invadiram o mundo real tendem a perpetuar-se até que algo aconteça.

O Pentágono utiliza algoritmos para realizar jogos de guerra e criar cenários tendo em conta a necessidade de preservar a hegemonia norte-americana. Os principais adversários dos EUA provavelmente fazem algo semelhante. Isto certamente pode interferir ou já está interferindo de alguma forma na arena diplomática. Portanto, não é mais possível sequer discutir diplomacia sem levar em conta a questão dos algoritmos.

“Não queremos viver num mundo onde os chineses sejam o país dominante”, afirmou o embaixador norte-americano Nicholas Burns. Ao tomar conhecimento disso lembrei-me da frase da esposa de Joseph Goebbels no filme alemão Der Untergang (2004). Pouco antes ou depois de envenenar os seus 5 filhos, Magda Goebbels diz que não quer viver nem deixar os seus filhos viverem num mundo sem o Partido Nazista.

O embaixador norte-americano provavelmente não tem consciência das bobagens que disse mecanicamente. A China já era grande e poderosa antes da existência dos EUA. Ninguém deve estranhar que o país volte ao centro do cenário mundial desempenhando um papel de liderança, até porque as autoridades chinesas dizem sempre que querem coexistir com outras nações e não exterminá-las.

Nicholas Burns vocalizou algo em que os maníacos do Pentágono e da OTAN também acreditam? Ele e seus colegas estão se tornando prisioneiros de uma forma de pensar típica de Inteligências Artificiais que encenam jogos de guerra? É impossível ensinar uma máquina a pensar como se fosse um ser humano. Mas as máquinas certamente podem adestrar seus usuários humanos a pensarem de maneira mecânica. 

O que tudo isso pode significar para o Brasil?

Em meados da década de 1970, a infraestrutura industrial do Brasil era mais complexa e 10 vezes maior que a infraestrutura industrial da China. Essa relação se inverteu, hoje a infraestrutura industrial chinesa é 25 vezes maior que a brasileira. Durante o milagre econômico, os analistas brasileiros nunca teriam sido capazes de imaginar que algo semelhante ocorreria. Eles acreditavam que o Brasil continuaria a crescer e a se desenvolver. O mesmo pode estar acontecendo nesse momento com os analistas chineses ou não que observam o desempenho atual da China. 

O futuro nunca é uma projeção do passado. Brasil e China são países diferentes com potenciais muito distintos. Mas nós sabemos que quando algo imprevisível acontece o florescimento de um país pode ser acelerado ou interrompido. No caso brasileiro, duas coisas afetaram negativamente o rumo do país em meados da década de 1970: uma foi a crise do petróleo, que causou uma imensa dívida externa; a outra foi a opção norte-americana de priorizar investimentos na China, considerada na época uma nova aliada no conflito geoestratégico contra a URSS. 

No caso da China, a catástrofe econômica poderá ocorrer em consequência de uma guerra quente contra os EUA e os seus aliados na Ásia. O sistema político chinês entrará em colapso se o país não puder importar alimentos e exportar produtos manufaturados. O comércio mundial depende muito do transporte marítimo e ele será obviamente interrompido em caso de guerra.

O Brasil precisou de duas décadas para reorientar sua economia e retornar ao crescimento. Na década de 1970, as exportações de manufaturados era economicamente muito importante. Hoje o nosso país exporta basicamente alimentos e minerais para a China. Em caso de guerra a economia brasileira será imediatamente destroçada? Os norte-americanos compensarão nossos prejuízos? A crise política no campo será amplificada pela queda abrupta da arrecadação de impostos? 

A fome será uma consequência inevitável da guerra entre os chineses. Mas a China pode impor prejuízos imensos aos EUA congelando ou nacionalizando ativos de empresas norte-americanas que operam em território chinês. Isso certamente afetará os interesses de muita gente poderosa nos EUA.

O que exportará a China se os norte-americanos perturbarem as rotas comerciais marítimas globais para estrangularem Pequim? Pequim pode exportar refugiados chineses por via terrestre, mas é pouco provável que isso melhore a situação do país ou sustente a sua economia. O que parece ser força pode na verdade ser fraqueza. E isto também se aplica aos próprios EUA.

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Nenhuma guerra é inevitável. Mas ao que parece ninguém quer realmente evitar uma guerra nesse momento. Guerras são lucrativas e economias fragilizadas podem ser impulsionadas com a expansão dos gastos militares. Isso é uma realidade nos EUA e está se tornando uma realidade na Europa também. Depois que conseguem capturar uma fatia do orçamento os fabricantes de armamentos geralmente consolidam suas posições financiando políticos que preservem seus interesses (e os dos especuladores que investem nas ações das montadoras de caças, bombardeiros, tanques, submarinos nucleares, porta-aviões, etc…).

Joe Biden fez toda sua carreira política incentivando a produção e exportação de armamentos “made in USA”. Olaf Scholz está revitalizando a indústria de armas alemã e as exportações de armamentos “made in Germany”. Nesse contexto, as eleições europeias são tão irrelevantes como as norte-americanas. Na verdade, o capital militarizado que faz da política uma guerra por outros meios para poder travar a guerra por todos os meios já está comandando o mundo civilizado.

Os avatares humanos brancos, negros e coloridos do capital militarizado nos EUA e na UE não são livres para fazer a paz, porque a paz não será lucrativa. E alguns deles provavelmente ficarão felizes em incendiar o mundo, como se pudessem desligar suas TVs e interromper a programação que foi escolhida para eles. Discussões politizadas e argumentos racionais parecem bons, mas já não fazem diferença. O capital militarizado quer sangue, ele exige sangue e vai fazer muito sangue correr porque ele se alimenta sangue como se fosse um vampiro. Varoufakis descreveu o Tecnofeudalismo, mas poderia muito bem começar a falar do Tecnovampirismo oriundo do capital militarizado.

Estava mergulhado nesses assuntos quando fui dormir ontem. Em decorrência, tive um pesadelo cômico. Um por um, os países europeus tornaram-se presas fáceis para os governos da nova extrema direita. E depois os seus líderes se reuniram em Bruxelas e juntos se apressaram em declarar guerra contra a Rússia, a China e o Irã. Na cena seguinte, a guerra começa: os exércitos europeus de ovos barulhentos com perninhas e braços nervosos descem a colina e começam a rolar e quebrar por conta própria. Lá em baixo, russos, chineses e iranianos riem-se dos seus inimigos europeus.

Caso se torne realidade, esse pesadelo não terminará de maneira engraçada. Caso seja derrotada, a Europa será recolonizada por africanos e chineses. É isso que os estrategistas norte-americanos desejam ou eles foram iludidos pela IA que utilizam para encenar jogos de guerras que sempre terminam com um resultado semelhante àquele que eles desejam?

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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