Transgêneros: uma análise sobre o direito de aposentadoria da mulher trans

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Introdução

A previdência social é um direito garantido pela Constituição Federal do Brasil em seu do art. 6º, XXIV a todas as pessoas que preencham os requisitos legais. O direito ao benefício é conquistado através da contribuição previdenciária por parte das pessoas empregadas e seguradas que obrigatoriamente se vinculam à previdência, seja no regime geral ou nos regimes específicos.

Assim, todas pessoas podem se vincular à previdência social, independente de origem, raça, cor, gênero e orientação sexual.

Entretanto, no nosso país as pessoas transsexuais, principalmente as mulheres trans, acabam encontrando dificuldades perante a Previdência Social, sendo esse o objeto de estudo deste artigo.

1.Da previdência

Segundo Lobato, Costa e Rizzotto (2019) a Constituição Federal de 1988 criou o capítulo inédito da ordem social que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social; e nele consta a seguridade social como conceito organizador da proteção social, que compreende a saúde, a previdência social e a assistência social. Os autores comentam que desde então muitas alterações foram feitas nessa estrutura, infelizmente mais restritivas do que inclusivas. No caso da previdência, reformas foram empreendidas em todos os governos desde a Constituição, mas a proposta feita pelo governo Jair Bolsonaro é a mais ampla, visto que altera radical e profundamente o que foi construído desde a década de 1930. É também a mais injusta com os brasileiros e a que mais aumenta riscos aos grupos mais vulneráveis de mulheres e idosos.

Para Vicente (2021), após o processo de abertura política na década de 1980, e com a nova Constituição Federal, é que foi possível repensar os rumos da Previdência Social, e torná-la uma Seguridade Social ampla, com fontes diversas de financiamento, onde teríamos novidades importantes, como: 1) a introdução do piso previdenciário a partir do salário-mínimo; 2) a inclusão dos trabalhadores rurais como segurados especiais; 3) a inclusão de idosos e pessoas com deficiência, membros de famílias de baixa renda – renda per capita até 1/4 do salário-mínimo, na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC); 4) a diferenciação do regime para mulheres em virtude da dupla/tripla jornada e dificuldade na manutenção do emprego por longos períodos e, portanto, da manutenção da contribuição. O autor enfatiza que além, é claro, de toda a desigualdade de gênero estrutural que se verifica nas relações de trabalho e emprego.

É assim que resta claro, portanto, que não se trata mais de seguro, e sim de Seguridade Social, em sintonia com os princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade, entre outros.

O autor ainda comenta que a Previdência Social, que se volta ao amparo e à segurança alimentar, visa trazer a proteção social para as pessoas trabalhadoras, mediante contraprestações, em face de situações alheias ao âmbito decisório da pessoa envolvida, mas que fazem com que ela tenha que se afastar do trabalho e, assim, não consiga garantir o próprio sustento. São situações como doenças, acidentes de trabalho, invalidez e idade avançada.

Lopes e Oliveira (2020) salientam que a previdência social é uma espécie de seguro no qual pessoa trabalhadora participa por meio de contribuições mensais, com a finalidade de garantir estabilidade financeira no caso de eventuais riscos que possam lhe atingir de forma temporária ou permanente. Sendo assim, a previdência social pode oferecer benefícios como aposentadoria, salário maternidade, auxílio-doença, pensão por morte, entre outros.

Evaristo (2021) comenta que o sistema previdenciário brasileiro é composto por dois regimes: o Regime Geral de previdência Social (RGPS) e Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). O primeiro engloba o maior contingente da população economicamente ativa, principalmente os trabalhadores das empresas privadas regidos pela CLT. Já o RPPS aglutina, basicamente, servidoras e servidores públicos, militares e de algumas autarquias, havendo também o regime complementar, que é opcional aos trabalhadores e às trabalhadoras, sendo oferecido por empresas privadas que lucram muito com a adesão, sendo essas as maiores interessadas na capitalização da previdência social brasileira, como acontece em vários países.

Ainda na visão do autor, expressa-se como um sistema de proteção social importante no sentido de amenizar as contradições, em especial se considerarmos os sistemas de proteção sociais dos países vizinhos da América Latina e, considerada por diversas literaturas sobre o tema como um progresso para relação capital-trabalho. Neste sentido, o Brasil construiu um sistema de seguridade social que colocou na carta constituinte direitos sociais almejado pela classe trabalhadora em suas lutas reivindicatórias de anos anteriores, que colocou na visibilidade política, econômica e social uma boa parte das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros que até então eram excluídos da seguridade social, como o caso das pessoas que trabalham no campo.

No regime geral, administrado pelo INSS – Instituto Nacional de Seguro Social, destina-se aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, excetuando-se apenas as pessoas ocupantes de cargo públicos efetivos vinculadas a regimes específicos. Assim, o artigo 11 da Lei x8213/1991 prevê quem são os segurados obrigatórios, seja como empregadas e empregados; seja como contribuintes individuais.

Feita essas considerações sobre previdência, passemos a analisar a situação da pessoa transexual ou transgênero.

2.A situação da pessoa transexual ou transgênero

Neto, Souza e Júnior (2022) identificam que o contribuinte, independente do gênero, adquire o direito legal de desfrutar dos benefícios da aposentadoria, tendo em vista sua filiação para o Regime Geral da Previdência Social. Contudo, existem aspectos nesta espécie de prestação que são diferentes entre os segurados do sexo masculino e do feminino, conforme será visto no tópico seguinte. Para os autores, assim, frente a um indivíduo transexual ou transgênero, questiona-se qual o melhor critério a ser utilizado para regulamentar seu benefício sem que haja prejuízo nem para o contribuinte, nem para a Previdência. Ainda sobre o assunto, os autores enfatizam que a ausência de legislação específica com o intuito de abordar detalhadamente os direitos previdenciários dos transexuais prejudica de forma grandiosa uma parte da população, especialmente no que diz respeito à aposentadoria de forma isonômica, principalmente para a mulher trans. Os autores ainda reforçam que o Brasil é um país conservador, o que implica em uma possível rejeição a essas pessoas.

Na análise de Trespac e Sittoni (2020) é notória a carência de normas inclusivas quanto aos benefícios da Previdência Social às pessoas transexuais e a falta de interesse por parte do Poder Legislativo em ampliar a esteira de direitos sociais à estas pessoas tão abandonadas pela sociedade. Essa ausência de legislação onera de forma significativa a população transexual e não garante os direitos de aposentadoria frente ao Instituto Nacional do Seguro Social INSS. Assim, acaba por deixar nas mãos do Poder Judiciário o encargo de solucionar as problemáticas que poderiam ser resolvidas através de uma regulamentação apropriada, que não é o atual cenário em que se encontra o país.

Para Lopes e Oliveira (2020) quanto aos transgêneros e à forma como são vistos pela sociedade podemos inferir que tudo o que está fora dos padrões sociais aceitos, ou seja, dentro da lógica binária, é, infelizmente, tratado como anormal. Logo, a essas pessoas é negada uma série de garantias constitucionais, como a igualdade perante a lei e a dignidade humana. Nesse contexto, fica ferido o princípio da dignidade humana em seu viés de autonomia, ou seja, de assegurar ao indivíduo o direito de ser quem é, de realizar suas atividades cotidianas, de frequentar determinados espaços, com igualdade de liberdade. Segundo os autores, a identidade de Gênero relaciona-se à percepção subjetiva de ser masculino ou feminino, conforme os atributos, os comportamentos e os papéis convencionalmente estabelecidos para homens e mulheres. Assim, infere-se que, ao ter um gênero preestabelecido de acordo com o sexo biológico, o indivíduo é balizado para enquadrar se em um determinado procedimento que norteia seu nome, seus gestos, sua vestimenta, suas conexões sociais, etc.

Trespac e Sittoni, (2020) entendem que ocorre que não houve, até então, por iniciativa do Poder Legislativo, políticas públicas de estruturação para um pacto social passível, no que diz respeito à inclusão da população excluída, ora em análise, transexuais. Do mesmo modo, a conquista de políticas efetivas e universais de cidadania para esta classe no tocante à seguridade social. Os acontecimentos diversos neste meio remetem a analisar um suposto boicote à seguridade social, de diversas formas. Do mesmo modo, o fracasso das políticas neoliberais e a emergência de uma nova questão social, a violência, repõem a necessidade de repactuar acerca das condições imprescindíveis para a construção de uma sociedade inclusiva.

Entretanto, recentemente a justiça vem reconhecendo o direito da aposentadoria de mulheres trans de forma plena, mudando a realidade de um cenário de lutas para um cenário de vitória para a comunidade trans, senão vejamos.

3.Da aposentadoria para as mulheres trans

Antes da reforma da previdência do governo anterior, existiam a aposentadoria por idade e a aposentadoria por tempo de contribuição. Entretanto, respeitando as situações transitórias, essas últimas foram convertidas em uma só espécie aposentadoria, nos termos do artigo 201 da Constituição da República do Brasil.

Assim, atualmente se faz necessário para quem trabalha no meio urbano 65 anos sendo homem e 62 sendo mulher e para quem trabalha no campo a idade mínima cai para 60 anos o homem e 55 a mulher e para a professora ou professor da educação infantil, do ensino fundamental ou do ensino médio (não para o superior) a idade será de 60 anos para o homem e 57 para a mulher. Além disso, deve haver no mínimo 20 anos de contribuição para a previdência no caso de homem e 15 anos no caso de mulher, sendo essas contribuições presumidas para quem trabalha no campo.

Desse modo, conforme se percebe, existe uma diferença para aposentadoria entre homens e mulheres, o que é, como dito no tópico anterior, uma medida de aplicação do princípio da igualdade em decorrência do reconhecimento de que em nossa sociedade patriarcal a mulher tem uma sobreposição de trabalho dentro e fora de casa.

Sendo assim, pergunta-se: a mulher tans deve se aposentar com as regras do sexo que lhe foi atribuído socialmente no seu nascimento ou com o sexo que ela se identifica?

Recentemente, a 3ª Turma Recursal da Justiça Federal do Ceará – JFCE decidiu que uma mulher transgênero tinha o direito de se aposentar com as regras do sexo feminino durante todo o período o trabalhado1.

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A referida decisão se baseou na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275, que autorizou a alteração do registro civil de pessoa transgênero pela via administrativa mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo2, bem como na Opinião Consultiva-OC24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que dispõe sobre as “Obrigações Estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e aos direitos derivados de um vínculo entre casais do mesmo sexo3”.

Desse modo, não resta dúvida de que, seja no âmbito nacional ou interno, avançamos quanto ao tema para cada vez se concluir que não podemos fazer diferenciação entre pessoas trans e pessoas cis. Uma mulher é uma mulher em qualquer situação e deve ter o direito de se aposentar como mulher, independentemente até mesmo de alteração da nossa legislação.

Conclusão

O Brasil é um país extremamente transfóbico, as pessoas transexuais são excluídas da nossa sociedade e da nossa legislação, o que lhes dificulta o exercício de direitos, inclusive os direitos previdenciários, principalmente os direitos das mulheres trans.

Sendo assim, mudanças legislativas incluindo as pessoas transsexuais seriam extremamente importantes para uma sociedade mais justa, inclusive no aspecto simbólico e de empoderamento dessas pessoas.

Entretanto, independentemente de mudança na legislação, uma mulher trans é uma mulher tal como qualquer outra e por isso deve ser aposentada com a mesma idade e tempo de contribuição de qualquer outra mulher. Pensar de outra forma é conservar um preconceito não cabível mais na sociedade atual.

REFERENCIAS

BRASIL. LEI nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.  Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 de Julho de1991.

BRASIL. LEI nº 9717, de 27 de novembro de 1998. Dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 de novembro de1998.

LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa. COSTA. Ana Maria. RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. Reforma da previdência: o golpe fatal na seguridade social brasileira. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. 120, P. 5-14, JAN-MAR 2019

VICENTE, Laila Maria Domith. A Reforma da Previdência de 2019 no Brasil e suas Consequências no Aprofundamento das Desigualdades de Gênero e da Feminização da Pobreza. RDP, Brasília, Volume 18, n. 97, 359-378, jan./mar. 2021.

EVARISTO, Arlei Olavo. Impactos das Reformas Trabalhista e da Previdência Em Trabalhadores Adultos. Dissertação. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos – SP. Agosto/2021.

NETO, Euvaldo Leal de Melo. SOUZA, Mariana Dias Barreto de. JÚNIOR, Miguel Horvath. Direitos previdenciários do RGPS para os transgêneros e transexuais: uma análise da ausência de legislação previdenciária específica frente à mudança de gênero. Revista Brasileira de Direito Social - RBDS, Belo horizonte, v. 5, n. 2, p. 18-32, 2022.

TRESPAC, Gabriel Rodrigues e SITTONI, Martha Macedo. Transexualidade e Previdência Social: Regras de aposentadoria para cidadãos transexuais e os dilemas da inclusão social sob análise da legislação previdenciária e da constituição federal de 1988. PORTO ALEGRE: PONTIFÍCIA UNIVESIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL, 2020.

LOPES, Iara; OLIVEIRA, Raquel Andrade Silva de. Direito Previdenciário dos Transgêneros. Revista Científica UNIFAGOC. Caderno Jurídico. Volume V. n. 2. 2020.


  1. Fonte:https://ibdfam.org.br/noticias/11885/Mulher+trans+conquista+aposentadoria+conforme+regras+para+pessoas+do+sexo+feminino+na+Justi%C3%A7a+Federal+do+Cear%C3%A1

  2. Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386930

  3. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf

Sobre os autores
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Saulo Emmanuel Rocha de Medeiros

Mestre em Gestão Pública pela UFPE. Especialização em Administração Hospitalar pela Universidade de Ribeirão Preto (2000). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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