Funções essenciais à justiça: cláusulas pétreas?

16/06/2024 às 09:31
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Segundo o artigo 2º a Constituição Federal, são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Além disso, conforme o artigo 60, § 4º, inciso III do Texto Magno, não serão objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes.

Destarte, o tema da separação das funções estatais na Constituição compõe o elenco das cláusulas pétreas, o núcleo duro, não sendo passíveis de aniquilação, mas apenas de aperfeiçoamentos que não alterem o seu espírito.

Dessa forma, no título IV, da Constituição da República encontra-se a Organização dos Poderes. Nesse particular, além das funções estatais clássicas de Montesquieu, o constituinte inseriu as Funções Essenciais à Justiça. Conforme Torres,


A Constituição de 1988, no Título consagrado à Organização dos Poderes, além dos quatro tradicionais Capítulos, dedicados aos Três Poderes do Estado, apresenta um quarto, cuidando, em apartado, das Funções Essenciais à Justiça. Surpreendentemente, ao que se nota, a literatura juspolítica nacional, com poucas e lúcidas exceções, parece não ter dado conta da transcendência dessa inovação e do que ela representa para a realização do valor justiça, aqui entendida como síntese da licitude, da legitimidade e da legalidade, no Estado contemporâneo, como aventam os jusfilósofos mais respeitáveis, como MIGUEL REALE, um valor básico e instrumental para a realização dos demais, por pressupor “uma composição isenta e harmônica de interesses”. As funções essenciais à Justiça, conforme lições do mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, apresentam-se como sistema de controle, através de funções específicas que atuam por órgãos técnicos, “exercentes de uma parcela do poder estatal, mas destacados dos Poderes do Estado”. A constituinte buscou prestigiar funções imprescindíveis para o equilíbrio e para a harmonia dos Poderes estatais, e é sob esse aspecto que deve ser percebida a atuação da advocacia privada e das “procuraturas constitucionais” (o Ministério Público, a Advocacia de Estado e a Defensoria Pública). (g. n.)


Portanto, considerando as funções indispensáveis à justiça como necessárias ao equilíbrio e à manutenção da separação dos Poderes, forçoso reconhecê-las igualmente como cláusulas pétreas constitucionais por reflexo ou arrastamento.

Outrossim, a despeito da ausência de menção na Carta Magna, também se incluem nessa categoria a Advocacia Pública Municipal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, verbis:


A expressão ‘Procuradores’, contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. (RE n. 663.696-MG, rel. min. Luiz Fux, j. 28 -2-2019, P, DJE de 22-8-2019, Tema 510).


Malgrado não constar dos entendimentos doutrinário e jurisprudencial tradicionais, nos parece que a Advocacia também se enquadra nas cláusulas irrevogáveis, haja vista que sua existência está estritamente vinculada ao Estado de Direito e ao direito fundamental da inafastabilidade do controle jurisdicional. Nada obstante, a Lei Maior somente explícita as garantias dos Advogados, nada dizendo acerca da Ordem dos Advogados do Brasil enquanto pessoa jurídica (art. 133, CRFB).

Nesse particular, segundo Córdova em relação à Defensoria Pública,


A Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, possui status de cláusula pétrea no sistema jurídico nacional. Esta é a premissa a ser defendida nesta oportunidade, notadamente por consistir em um instrumento garantidor da obrigação estatal de prestar assistência jurídica integral e gratuita em favor das pessoas necessitadas, conforme dispõe o artigo 5º, LXXIV, em combinação harmônica com o inciso IV, § 4º, do art. 60, e ainda, com o art. 134, todos da Carta da República. (…) Desta forma, reafirma-se à exaustão: a Defensoria Pública e sua condição de cláusula pétrea determinada pelo constituinte originário exigem dos Poderes Constituídos obediência ao seu conteúdo normativo e ao seu significado constitucional, garantidor do acesso à Justiça por parte da população mais humilde, em estrita obediência não apenas aos dispositivos constitucionais já mencionados, mas, ainda, ao disposto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, que consagra entre nós o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, base deste Estado Democrático de Direito.


Com o mesmo espírito escreveu Donizetti,


O enquadramento da Defensoria Pública como garantia fundamental constitucional, incumbida, principalmente, da promoção do acesso à justiça – direito fundamental consubstanciado no art. , XXXV, da Constituição de 1988 – faz com que essa instituição seja considerada pela maioria da doutrina como integrante do núcleo essencial de um Estado Democrático de Direito. Tal constatação se deve ao fato de que “o direito de acesso à Justiça faz parte do assim chamado mínimo existencial, núcleo essencial do princípio da dignidade humana, não podendo de forma alguma ser suprimido mediante reforma constitucional”. Assim, em razão da importância de sua atuação para a garantia de direitos fundamentais, a Defensoria Pública não pode ser suprimida, nem ter suas atribuições reduzidas via emenda constitucional, “sob pena de indefensável retrocesso no cumprimento do objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.



De seu turno, o Ministério Público, a semelhança da Defensoria Pública, possui como função a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo instituição permanente.

Com efeito, conforme anotou Rodrigues comentando a PEC n. 75 de 2011,


O Ministério Público, à luz do neoconstitucionalismo, foi consagrado por nossa Magna Carta como Instituição permanente essencial na defesa da cidadania e da democracia, bem como na efetivação da ordem social justa. Além do mais, o Ministério Público desempenha uma função indispensável à efetivação dos direitos fundamentais, pois nosso ordenamento tem como um dos valores supremos a dignidade da pessoa humana, o que atribui à instituição status de cláusula pétrea. Não podendo ser suprimido nem restringido pelo Poder Constituinte Derivado. (g. n.)


A despeito do brilhantismo do trabalho, entendemos que a garantia da vitaliciedade não possui nenhuma relação com as cláusulas pétreas, senão os Defensores e os Advogados Públicos não exerceriam função indeclinável à justiça com todo o esmero de praxe.

Diga-se de passagem, com o advento da Lei Orgânica das Policias Civis (Lei Federal n. 14.735 de 2023), a quem defensa a inclusão da Polícia Civil no rol das funções imprescindíveis à justiça criminal, posicionamento do qual discordamos, haja vista que seria necessário primeiro alterar a Constituição Cidadã. É pacífico que as leis devem ser interpretadas de acordo como a Constituição e não o contrário, conforme lições de Konrad Hesse (Força Normativa da Constituição). De nenhuma forma tal posicionamento é desmerecedor da Polícia Judiciária, a qual é uma função imperiosa à Segurança Pública, assim como a Polícia Militar.

Nesse ponto, vale a pena a advertência feita por Martins (pág. 265), segundo o qual,


Dessa maneira, o intérprete manifesta o narcisismo constitucional quando dá uma interpretação exagerada das cláusulas pétreas, impedindo que a Constituição seja reformada por gerações futuras. Como escreveu Catarina Santos Botelho, essa postura de ampliar excessivamente as cláusulas pétreas (seja formalmente, no texto constitucional, seja informalmente, através de uma elástica interpretação constitucional) é perigosa: “estas cláusulas de eternidade podem ser perigosas para o Estado de Direito, na medida em que, de certa forma, encorajam as elites políticas a tornear essas limitações, provocando instabilidade institucional e até, no limite, fraude à Constituição. (g. n.)


Sem embargo, conquanto que as garantias institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional remanesçam para a Defensoria e o Ministério Público, a vitaliciedade dos membros não é genuína cláusula pétrea, até porque é uma característica típica das monarquias. Todo agente público deve responder de forma ampla por seus atos, sem corporativismo.

Ora, a Advocacia Pública sobrevive apenas com a independência técnica prevista no artigo 18 da Lei Federal n. 8.906 de 1994 (EOAB) e com algumas súmulas não vinculantes da OAB1, por quê não os demais órgãos?

Algumas constituições, como a do Estado de São Paulo, dão pleno reconhecimento a uma situação já existente, qual seja, a importância e permanência da Advocacia de Estado, erigindo-as a autênticas cláusulas de eternidade:


Artigo 98 - A Procuradoria Geral do Estado é instituição de natureza permanente, essencial à administração da justiça e à Administração Pública Estadual, vinculada diretamente ao Governador, responsável pela advocacia do Estado, sendo orientada pelos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público. (g. n.)


Com efeito, segundo anotou Almeida em relação ao Ministério Público,


Indubitavelmente o Ministério Público brasileiro constitui-se em uma das mais importantes garantias constitucionais fundamentais institucionais da sociedade e do cidadão. A Instituição possui a natureza jurídica da garantia constitucional fundamental permanente de acesso à justiça. É essa a sua verdadeira concepção constitucional quando a Instituição é pensada à luz tanto dos valores fundantes da Constituição, que são o resultado da história de lutas e reivindicações por direitos humanos e direitos fundamentais, quanto do núcleo essencial, com força normativa em grau máximo, que é a teoria dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais consagrada na Constituição de 1988, especialmente a força interpretativa expansiva do Título II, Capítulo I, da Constituição (direitos e deveres individuais e coletivos). Nesse ponto, fala-se na supremacia dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, sua força interpretativa expansiva, irradiante e sua aplicabilidade imediata. Todas essas diretrizes são cláusulas pétreas, inclusive o próprio Ministério Público como Instituição permanente. (g. n.)


Noutra quadra, de acordo com o escólio de Carlos Ayres Britto:


As cláusulas pétreas da constituição não são conservadoras, mas impeditivas de retrocesso. São salvaguardas da vanguarda constitucional. a democracia é o mais pétreo dos valores. E quem é o supremo garantidor e fiador da democracia? O Ministério Público. Isto está dito com todas as letras no art. 127 da Constituição. Se o MP foi erigido à condição de garantidor da democracia, o garantidor é tão pétreo quanto ela. Não se pode fragilizar, desnaturar uma cláusula pétrea. O MP pode ser objeto de emenda constitucional? Pode. Desde que para reforçar, encorpar, adensar as suas prerrogativas, as suas destinações e funções constitucionais. (g. n.)

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No caso das procuradorias públicas, a despeito de serem cláusulas pétreas, elas não gozam de todas aquelas garantias das outras procuraturas, conforme desventuradamente decidiu a Suprema Corte,


A Procuradoria-Geral do Estado é o órgão constitucional e permanente ao qual se confiou o exercício da advocacia (representação judicial e consultoria jurídica) do Estado-membro (CF/88, art. 132). A parcialidade é inerente às suas funções, sendo, por isso, inadequado cogitar-se independência funcional, nos moldes da Magistratura, do Ministério Público ou da Defensoria Pública (CF/88, art. 95, II; art. 128, § 5º, I, b; e art. 134, § 1º). A garantia da inamovibilidade é instrumental à independência funcional, sendo, dessa forma, insuscetível de extensão a uma carreira cujas funções podem envolver relativa parcialidade e afinidade de ideias, dentro da instituição e em relação à Chefia do Poder Executivo, sem prejuízo da invalidação de atos de remoção arbitrários ou caprichosos. [ADI 1.246, rel. min. Roberto Barroso, j. 11-4-2019, P, DJE de 23-5-2019.]


Ora, é assente a grande dificuldade pelas quais passam as Procuradorias Municipais, e as garantias das demais procuraturas teriam o condão de superar diversos entraves locais, como falta de recursos e interferência políticas.

Finalmente, conforme excelente exposição de Martins (pág. 994),


Por sua vez, as garantias institucionais são diversas. Enquanto as garantias fundamentais referem-se à pessoa, em suas relações particulares, as garantias institucionais incidem sobre toda a sociedade. Elas são garantias que têm por objetivo tutelar determinadas instituições de direito público que, devido à sua importância, devem ser protegidas contra a ação erosiva do legislador. Trata-se de uma nomenclatura decorrente da doutrina alemã, especialmente da obra de Carl Schmitt, segundo o qual as garantias institucionais são previsões constitucionais colocadas como uma maneira de tornar impossível que os direitos fundamentais sejam suprimidos por via de legislação ordinária. Dá como exemplos de garantias institucionais a proibição dos Tribunais de Exceção, o matrimônio como base da vida familiar, o direito dos funcionários públicos, a liberdade da ciência e ensino nas universidades etc. (g. n.)


Por conseguinte, alterações constitucionais com o condão de fortalecer as procuraturas constitucionais são plenamente validas. Lado outro, emendas com o intuito de enfraquecê-las, como a PEC n. 102 de 2011 que retira o controle externo da atividade policial, violam frontalmente as cláusulas pétreas pois enfraquecem a privatividade da ação penal pública.2

De seu turno, a PEC n. 28 de 2023 que visa incluir os procuradores municipais na Lei Magna é plenamente consentânea com as garantias institucionais que objetivam fortalecer as funções da justiça.3

Pelo exposto, defendemos que todos os órgãos integrantes das funções fundamentais à justiça integram o núcleo pétreo da Constituição, a despeito de cada autor defender apenas o seu curral, não podendo sequer serem enfraquecidos por emendas constitucionais.

Dessa forma, os artigos 131 e 132 da Constituição de Outubro deveriam ser reformados para tornarem igualmente a Advocacia Pública como instituição permanente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almeida, Gregório Assagra de. O Ministério Público e o Direito em épocas extraordinárias. Disponível em: https://ammp.org.br/o-ministerio-publico-e-o-direito-em-epocas-extraordinarias/ Acesso em: 15 jun. 2024.


Britto, Carlos Ayres. O Papel Democrático do Ministério Público no Processo Coletivo: o Ministério Público como Garantia Institucional do Cidadão na Democratização do Acesso à Justiça. Disponível em http://www.mpdft.mp.br/revistas/index.php/revistas/article/viewFile/146/179. Acesso em 12/02/2017.


Córdova, Haman Tabosa de Moraes e. Defensoria Pública é cláusula pétrea da Constituição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-mai-21/haman-tabosa-defensoria-publica-clausula-petrea-constituicao/ Acesso em: 15 jun. 2024.


Donizetti, Elpídio. Das funções essenciais à Justiça: a Defensoria Pública. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/das-funcoes-essenciais-a-justica-a-defensoria-publica/376824739 Acesso em: 15 jun. 2024.


Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. - São Paulo : SaraivaJur,

2022.


Rodrigues, Raquel Ediane. O Ministério Público como Cláusula Pétrea - Análise à Luz da Proposta de Emenda Constitucional 75 de 2011. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/comunicacao/site/revista_6.pdf Acesso em: 15 jun. 2024.


TORMENA, Celso Bruno. A obrigatoriedade de instituição do órgão de advocacia pública nos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6881, 4 mai. 2022. Disponível em:https://jus.com.br/artigos/87772. Acesso em: 16 jun. 2024.


TORMENA, Celso Bruno. A polícia judiciária não é função essencial à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6893, 16 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97787. Acesso em: 16 jun. 2024.


Torres, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo. 10ª Ed. Juspodivm. 2020.






1 Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/24762/conselho-federal-traca-diretriz-em-defesa-da-advocacia-publica Acesso em: 15 jun. 2024.

2 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102919 Acesso em: 15 jun. 2024.

3 Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/62006/pec-que-inclui-procurador-municipal-na-advocacia-publica-avanca-no-senado Acesso em: 16 jun. 2024.

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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