Tribunal Penal Internacional ou Tribunal Penal Africano? Tensões entre o panafricanismo e o direito penal internacional

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As questões do panafricanismo e o direito penal internacional têm se entrelaçado de maneira complexa e controversa ao longo dos anos, com eventos recentes destacando as tensões existentes. Em 2016, três países africanos - África do Sul, Burundi e Gâmbia - anunciaram sua saída do Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, Holanda. As razões alegadas incluíram acusações de racismo e incompatibilidade entre os sistemas de justiça internos e o da corte internacional. No entanto, também surgiram suspeitas de que líderes africanos estivessem buscando evitar julgamentos futuros.

A África do Sul, em particular, enfrentou um impasse diplomático quando o TPI emitiu um mandado de prisão contra o presidente do Sudão, Omar Hassan al-Bashir, durante sua visita oficial ao país, acusado de genocídio. As autoridades sul-africanas debateram se deveriam cumprir a ordem de prisão, alegando que líderes estrangeiros têm imunidade em visitas oficiais. Esse episódio levantou questões sobre a relação entre o panafricanismo e o TPI, já que a África do Sul estava dividida entre suas obrigações internacionais e sua solidariedade regional. O mandado de prisão contra Omar Hassan al-Bashir foi emitido após uma decisão histórica, em que, pela primeira vez na história o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) encaminhou um caso ao TPI (Totten & Tyler, 2008).

O mandado de prisão contra al-Bashir foi objeto de críticas significativas, especialmente no que diz respeito à sua natureza imperialista. Houve alegações de que o TPI estava agindo como uma ferramenta hegemônica do Ocidente, impondo sua visão de justiça sobre a África. Isso foi particularmente apontado devido ao fato de que o Sudão não era signatário do Estatuto de Roma, que estabelece o TPI (Du Plessis, 2010; Clark, 2018). Países africanos e a União Africana (UA) reagiram ao mandado de prisão de al-Bashir. Alguns estados africanos se recusaram a cooperar com o TPI, seguindo a orientação da UA, que instruiu os estados membros a não cumprir o mandado de prisão. A UA expressou preocupação de que a ação do TPI pudesse prejudicar os esforços de paz em andamento no Sudão (Jalloh, 2012).

Toda essa controvérsia em torno do caso de Omar al-Bashir e suas implicações destacam questões mais amplas relacionadas à justiça internacional, à cultura da superioridade ocidental e à capacidade do TPI de agir de forma imparcial e eficaz em casos envolvendo líderes africanos. Essa saga também evidenciou a complexidade das relações entre o TPI e os Estados africanos, bem como o papel da UA na promoção de alternativas à justiça internacional. Ela gerou debates sobre como equilibrar a busca por justiça e responsabilidade com a necessidade de paz, reconciliação e estabilidade em regiões afetadas por conflitos.

A partir de 2013, houve um aumento significativo no movimento contrário ao TPI na África. A situação do Quênia foi utilizada como um exemplo do que foi chamado de perseguição racial aos africanos pelo tribunal internacional. Durante a 28ª Cúpula da União Africana em 2016, Uhuru Kenyatta propôs um plano para uma retirada em massa dos Estados africanos do TPI. Vários governos, incluindo a África do Sul, Burundi e Gâmbia, manifestaram interesse em denunciar o Estatuto de Roma, que criou o TPI. Alguns líderes africanos argumentaram que o TPI não estava servindo aos interesses dos países africanos e que era hora de desenvolver tribunais africanos para tratar de questões relacionadas a crimes.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), o único órgão judicial universal e permanente com jurisdição sobre crimes internacionais, foi fundado em 2002 (Niang, 2018). Inicialmente, houve um entusiasmo sobre o que o TPI poderia alcançar, mas rapidamente surgiram muitas críticas (Du Plessis, 2010; Jalloh, 2012; Mangu, 2015; Murithi, 2014; Tladi, 2009). Especialmente, o TPI enfrenta crescente resistência por parte dos estados africanos, que criticam que seus nacionais são os mais condenados pelo TPI (Olugbuo, 2014). Além disso, argumenta-se que a política desempenha o papel principal na decisão de investigar e processar indivíduos específicos sob a jurisdição do TPI (Fortin, 2013). Como resultado dessas críticas, a União Africana (UA) até considerou uma retirada em massa do TPI pelos estados africanos partes do Estatuto de Roma, ameaçando assim a existência do TPI (Fortin, 2013).

Os desacordos começaram a surgir em 2005, especialmente em casos envolvendo líderes africanos, como o Presidente sudanês Omar al-Bashir e o Presidente queniano Uhuru Kenyatta (Chipaike et al., 2019). Quando os esforços dos líderes africanos para suspender esses casos falharam, eles começaram a desacreditar as ações do TPI e a minar sua legitimidade (Mamdani, 2008). Alegaram que o TPI estava direcionando principalmente os africanos, enquanto atrocidades eram cometidas em outros lugares sem ação adequada do TPI (Dyani, 2012). No entanto, a opinião da sociedade civil e dos governos africanos nem sempre coincide, e muitos africanos discordam dessa tendência de denegrir o TPI, argumentando que desde que os perpetradores de crimes hediondos na África sejam levados à justiça, isso ajuda o continente (Ogunfolu & Assim, 2012).

Um dos principais argumentos levantados por líderes africanos é a alegação de que o TPI tem alvejado Estados africanos de forma desproporcional, o que é visto como resultado da influência hegemônica de potências ocidentais na organização. Essa desproporção nas investigações e processos judiciais é vista como injusta e motivada por interesses políticos e econômicos externos (Grovogui, 2015).

A crítica pós-colonial ao TPI se divide em duas principais vertentes. Primeiro, o TPI é frequentemente chamado de "Tribunal Criminal Africano" devido ao fato de a maioria dos casos e investigações do tribunal envolverem países africanos (Mangu, 2015). Essa visão retrata o tribunal como uma ferramenta de poder ocidental sobre os africanos (Clarke, 2019). Em segundo lugar, a crítica aponta que o TPI age de acordo com os interesses da política externa ocidental, o que é visto como uma perpetuação de desequilíbrios de poder originados nos tempos coloniais (Anderson, 2009). Isso envolve o papel do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), que tem influência nas decisões do TPI (Tladi, 2014). Assim, a prerrogativa do CSNU de encaminhar casos ao TPI ou adiar investigações tem sido objeto de críticas (Clarke, 2009). De fato, o artigo 13, “b”, do Estatuto de Roma prevê que o Tribunal poderá exercer a sua jurisdição se o Conselho de Segurança denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes de sua competência.

A instrumentalização do TPI por parte das potências ocidentais é uma preocupação relevante. Países como os Estados Unidos e a Rússia têm usado o tribunal de maneira pragmática, buscando seus próprios interesses nacionais enquanto garantem imunidade a seus cidadãos. Essa instrumentalização enfraquece a credibilidade do tribunal e levanta questões sobre sua independência e imparcialidade (Ba, 2017). Além disso, a pressão política sobre o TPI por parte de governos, como o governo Trump, evidenciou como a política internacional pode influenciar as decisões do tribunal.

A questão da cooperação dos Estados membros do TPI também é complexa. Alguns líderes políticos podem usar o tribunal como uma ferramenta para atacar seus adversários políticos, enquanto outros podem cooperar quando seus adversários são alvos da justiça internacional. A preocupação com a pacificação muitas vezes se sobrepõe à busca por justiça, levando a decisões políticas complexas sobre a cooperação com o tribunal.

Além disso, o artigo 16 confere a chamada “faculdade inibitória” do CSNU, isto é, a prerrogativa de suspender a abertura de qualquer investigação ou persecução do Tribunal, em qualquer fase que se encontrem, pelo prazo renovável de 12 meses. Clarke & Koulen (2014) destacaram a problemática política por trás das decisões de adiamento do CSNU. Uma análise crítica é apresentada, indicando que a relação entre o TPI e o CSNU pode politizar o tribunal, já que o CSNU é um órgão político. Mamdani (2008) argumenta que essa dinâmica coloca em questão a independência do TPI e pode permitir que interesses políticos influenciem as ações do tribunal.

A UA já externou as suas preocupações sobre o abuso do princípio de indicação pelo CSNU, especialmente em casos africanos. A UA, em 2012, instou seus membros a se defenderem contra o abuso da jurisdição universal. Essa preocupação ressoa com críticas de que nações poderosas, como os Estados Unidos, influenciam o funcionamento do TPI, por meio do CSNU (Chipaike et al, 2019). Com efeito, a perspectiva pós-colonial sobre o direito penal enfatiza como as nações não-ocidentais veem o TPI, vale dizer, uma ferramenta de controle dos Estados ocidentais sobre a África, levantando questões fundamentais sobre o poder e a justiça no sistema internacional (Simpson, 2004; Ba, 2017).

O TPI tem sido frequentemente acusado de ser um "Tribunal Criminal Africano", já que até o momento, apenas nacionais africanos foram julgados por ele. Steiner et al (2008) afirmam, é provável que os Estados da África sejam os usuários frequentes do TPI devido a dois fatores principais; nomeadamente uma prevalência relativamente mais elevada de conflitos e violações graves dos direitos humanos, e uma falta geral de sistemas jurídicos credíveis para os resolver." Esta crítica é baseada na percepção de que a África está sendo excessivamente visada pelo TPI. Outra crítica é a ideia de que o TPI é uma ferramenta de hegemonia das potências ocidentais. Jouannet (2007) considera que o papel institucional central do CSNU ameaça a independência do TPI. Isso significa que o TPI é percebido como dominado por interesses e agendas ocidentais, especialmente devido à influência do CSNU.

A discussão sobre a colonialidade do direito internacional também desempenha um papel importante na análise das controvérsias em torno do TPI. Argumenta-se que o sistema jurídico internacional é influenciado por hierarquias racializadas de normas e instituições que favorecem o Ocidente e exoneram as potências ocidentais da responsabilidade por crimes internacionais. Isso leva a uma percepção de que a justiça penal internacional é seletiva e injusta, especialmente em relação a países não ocidentais (Grovogui, 2015; Ba, 2017). Alguns líderes africanos, ao defenderem a saída em massa do TPI e a criação de uma seção penal no Tribunal Africano, podem estar buscando uma abordagem mais alinhada com suas tradições e valores, em oposição a um sistema legal internacional que consideram colonial e desigual (Elagwu & Mazrui, 2010).

O Ocidente e o TPI frequentemente respondem com irritação às crítica pós-colonial e tentam refutá-la enquanto enfatizam a importância do TPI como um tribunal de justiça (De Hoon, 2017). A crítica pós-colonial precisa ser levada a sério, independentemente de concordarmos ou não com ela, pois representa uma séria ameaça à legitimidade do TPI (de Hoon, 2017). A legitimidade depende em grande parte da percepção de que as ações do TPI são dignas de respeito (Charlesworth, 2010; De Guzman, 2012).

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No entanto, é possível apontar alguns contrapontos a essas críticas. Du Plessis (2010) argumenta que muitos estados africanos voluntariamente assinaram o Estatuto de Roma (RS), que rege o TPI. Além disso, em algumas oportunidades foram os próprios governos africanos que acionaram a jurisdição do TPI, demonstrando compromisso com o tribunal.

É importante notar que muitos dos casos investigados pelo TPI no início de sua existência envolviam situações africanas, o que reforçou a visão de seletividade em relação ao continente. A princípio, parece ser razoável argumentar que essa ênfase na África pode ser justificada pelo princípio da complementaridade, que sugere que o TPI deve intervir quando os sistemas jurídicos nacionais são incapazes ou relutantes em lidar com crimes graves. Ademais, as ações da Procuradoria, a partir de 2016, parecem ser outro relevante contra-argumento às críticas pós-colonialistas, uma vez que as investigações se estenderam a casos fora do continente africano, como a Geórgia e o Afeganistão.

Essas questões complexas não devem reduzir a importância do TPI na busca por justiça internacional e na garantia de direitos para as vítimas. O tribunal concede às vítimas um lugar no processo e a possibilidade de buscar reparação, o que é um avanço significativo na área dos direitos humanos. Portanto, as controvérsias em torno do TPI destacam a necessidade de um debate contínuo sobre o papel da justiça internacional e sua relação com os Estados africanos.

Referências:

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Sobre o autor
David Pimentel Barbosa de Siena

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Atualmente é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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