Breve introdução e conceito.
Existem diversos nomes dados a essa garantia introduzida na Lei Geral de Licitações de nº. 14.133, de 01 de abril de 2021, sendo o mais comum deles a já abrasileirada cláusula de retomada. De outras origens, pode-se utilizar performance bond ou step in rights para glamourizar com o estrangeirismo tão popular e usual no colóquio tupiniquim.
Afinal, o que vem a ser essa Cláusula de Retomada e como ela pode ser “a esperança de efetivação das obras públicas”? Para tanto, faz-se necessário debulhar as linhas em duas etapas: i) conceito e aplicabilidade da cláusula famosa, e; ii) os efeitos almejados de sua existência.
Adiante.
No Direito brasileiro – e só este interessa, a Lei nº 13.097/2015, que alterou a redação da Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões) e da Lei nº 11.079/2004 (Lei das PPPs), estabeleceu a possibilidade dessa nova garantia para assegurar aos financiadores e garantidores do projeto (seguradores) o direito de resgatar o controle ou a administração temporária da concessionária/parceira (empresa), ao fim de reestruturar financeira e operacionalmente a continuidade da prestação de serviços.
Agora, no entanto, a garantia foi inserida no corpo compêndio da Lei de nº. 14.133/2021, estando apta para uso e gozo da Administração ao tempo que perfectibilizado o interesse legal e regulamentação local sobre a novidade.
Para bem conceituar a Cláusula de Retomada, convoca-se o professor Joel de Menezes Niebuhr.
[...] o performance bond é uma espécie de seguro em que a seguradora assume responsabilidade pela execução total da obra, firmada pela seguradora, a contratada e a Administração. A seguradora acompanha a execução da obra, dado que tem responsabilidade sobre a integralidade dela. Em caso de rescisão contratual, a seguradora obriga-se a dar continuidade à obra, selecionando uma construtora para fazê-lo ou ela mesmo assumindo tal responsabilidade (NIEBUHR, 2022).
A relação entre Contratante (público) e Contratado (privado) é acrescida de um agente que converge os interesses entre os dois primeiros, com peso e pompa de, inclusive, coagir o melhor andamento possível da execução contratual para ambas as partes.
Esse novo agente, o Segurador, é o garante do equilíbrio das obrigações, vez que para Administração é importante que o contratado execute o objeto da melhor forma possível em tempo e preço, bem como é do interesse da Empresa que o ente público execute suas obrigações em tempo e número hábil para o fiel cumprimento do pactuado.
Impacto legislativo. Procedimento e uso. A mudança real.
Coube, assim, a Lei Geral de Licitações uma adaptação do que é o performance bond ou step in rights, formando a brasileiríssima Retomada.
Art. 99. Nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada prevista no art. 102 desta Lei, em percentual equivalente a até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato.
Primeiro, ponto a se tentar entender é o que é efetivamente considerado grande vulto, hipótese em que poderá ser exigida a multicitada garantia de retomada em patamar diferenciado. A própria Lei de nº. 14.133/2021 em seu glossário, no inc. XXII, do art. 6º, cuidou de suprir tal abstração ao elucidar que grande vulto são as obras, serviços e fornecimentos de valores superior a R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais). Atualizado anualmente, tal valor se encontra em R$ 239.624.058,14 (duzentos e trinta e nove milhões seiscentos e vinte e quatro mil cinquenta e oito reais e quatorze centavos) (Decreto de nº. 11.871, de 29 de dezembro de 2023).
Primeiro aparte: pela conceituação da lei, grande vulto é identificado pelo valor moeda da contratação; no entanto, em se tratando de cláusula de retomada só será utilizado o disposto no art. 99 da Lei Geral de Licitações para obras e serviços de engenharia.
Vê-se que o espírito da Lei não foi obrigar sua utilização para toda e qualquer obra ou serviço de engenharia, mas apenas aqueles em que os riscos justificam a sua exigência – interpretação que se pode extrair do inc. XXI, art. 37 da Constituição Federal de 1988. Sua razão, por mais óbvia que possa parecer, merece ser justificada pelo próprio espírito da licitação: amplitude de competidores, ausência de restrições a participação, condições isonômicas e tantas outras. A exigência da garantia constante da cláusula aumenta o valor final da proposta dos participantes, pois que o seu custo será assumido pelo licitante vencedor e transportado para o montante final ofertado, sendo pago – ao final - pela própria Administração. A garantia tem um preço, e tem um mercado pronto para ofertar.
Após, compreende-se que a garantia ofertada na cláusula de retomada não é integral e absoluta, mas quando se tratar de grande vulto limitar-se-á ao montante de 30% (trinta por cento) do valor inicial (e não recomposto) do contrato firmado. É um ponto característico da migração da cláusula praticada no exterior para o Brasil, pois no modelo internacional a praxe é a totalidade.
Assim, nas palavras do professor Joel de Menezes Niebuhr, parece que o entendimento foi que o mercado não teria condições de oferecer seguros nesse percentual, e que seria excessivamente restritivo às competições licitatórias (NIEBUHR, 2022).
O art. 99 da Lei de nº. 14.133/2021 faz remissão direta ao disposto no art. 102, da mesma lei, o que torna imprescindível a análise conjunta de seu texto. Passa-se:
Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que:
I - a seguradora deverá firmar o contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente e poderá:
a) ter livre acesso às instalações em que for executado o contrato principal;
b) acompanhar a execução do contrato principal;
c) ter acesso a auditoria técnica e contábil;
d) requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento;
II - a emissão de empenho em nome da seguradora, ou a quem ela indicar para a conclusão do contrato, será autorizada desde que demonstrada sua regularidade fiscal;
III - a seguradora poderá subcontratar a conclusão do contrato, total ou parcialmente.
Parágrafo único. Na hipótese de inadimplemento do contratado, serão observadas as seguintes disposições:
I - caso a seguradora execute e conclua o objeto do contrato, estará isenta da obrigação de pagar a importância segurada indicada na apólice;
II - caso a seguradora não assuma a execução do contrato, pagará a integralidade da importância segurada indicada na apólice.
O artigo supracitado traz o andamento procedimental e burocrático da cláusula de retomada e abre novos pontos de atenção que precisam ficar sedimentados no consciente competitivo dos licitantes e dos órgãos de processamento de licitações.
Do seu caput já se observa que a cláusula de retomada não é apenas utilizada para obras e serviços de engenharia de grande vulto, podendo ser utilizadas naquelas de menor monta de recursos. O que não se pode, por essa ocasião, é utilizar o percentual de 30% (trinta por cento), devendo seguir a regra geral das garantias trazidas no art. 98, da mesma lei.
Art. 98. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos, a garantia poderá ser de até 5% (cinco por cento) do valor inicial do contrato, autorizada a majoração desse percentual para até 10% (dez por cento), desde que justificada mediante análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos.
Parágrafo único. Nas contratações de serviços e fornecimentos contínuos com vigência superior a 1 (um) ano, assim como nas subsequentes prorrogações, será utilizado o valor anual do contrato para definição e aplicação dos percentuais previstos no caput deste artigo.
Em se tratando de obras, serviços e fornecimentos de pequeno vulto, a retomada poderá ser operada em até 5% (cinco por cento) do valor inicial do contrato, podendo ser majorada para até 10% (dez por cento) quando as justificativas assim apontarem.
Segundo aparte: pelo disposto no art. 98, da Lei Geral de Licitações, os serviços comuns e os fornecimentos foram contemplados, podendo ser exigida a retomada em tais situações e em tais percentuais.
Antes de avançar, conclui-se que a cláusula de retomada pode ser exigida no montante de até 5% para obras, serviços e fornecimentos, podendo chegar até 10% quando razões apropriadas e motivadas exigirem e, ao final, em se tratando de obras e serviços de engenharia de grande vulto, o percentual eleva-se ao limite de 30% (SARAI, 2021).
Por didática, relê-se que cláusula de retomada serve para que em sendo acionada, a seguradora assuma a execução do contrato para concluir o seu objeto (diretamente ou contratando alguém), ou paga o valor da apólice à Administração – já que agiu como garante do licitante faltoso – apontado nos incs. I e II do parágrafo único do art. 102 da lei em comento. Ainda, caso a seguradora contrate alguém para conclusão do objeto, continua como garante da obrigação não se desincumbido daí em diante do seu dever.
Enfatizado tal ponto, há de se ver que o inc. I, do art. 102 da Lei nº. 14.133/2021 (transcrito acima), dá a importância devida à seguradora, convocando-a para participar do instrumento contratual e demais aditivos na condição de interveniente anuente – além de ter sido apresentada em apólice pelo licitante vencedor da disputa. Mais do que um aval no contrato, seu efeito é de total concordância com os termos do projeto básico e executivo, regime de execução e pagamento, e ao preço ofertado. É um aceite irrestrito ao que está ali materializado, não podendo modificar as relações por ela chanceladas.
Doutra banda, a lei confere poderes de fiscalização às seguradoras, que vão muito além do seu papel de interveniente anuente, tudo em decorrência da natureza das obrigações que poderão recair sobre ela ao logo do contrato (CARVALHO, OLIVEIRA, ROCHA, 2021). Alguns pontos que ratificam o disposto pelos autores são os constantes das alíneas “a” a “d”: acesso às instalações do objeto da contratação, acesso a auditoras técnicas e contábeis e requerer esclarecimentos do responsável técnico.
Ponto controverso, mas não em igualdade de peso, é o tema da (in)obrigatoriedade de a seguradora assumir a execução do objeto. Explica-se que defensores dessa teoria dizem que a seguradora deve retomar a obra pública direta ou indiretamente e, apenas na impossibilidade de esta conseguir dar continuidade à finalidade pretendida, paga-se o valor constante da apólice (CARVALHO, OLIVEIRA, ROCHA, 2021). Assim, não seria uma faculdade da garantidora o caminho a ser tomado.
Doutra banda, entendem que se trata de opção da seguradora se investir na cláusula e promover a sua execução nos moldes avalizados ou, ao fim, indenizar a Administração (FREIRE, MELO, MENDONÇA, COSTA, 2023). Frisa-se o tratamento opcional conferido à lei ao não trazer um escalonamento claro de preferência sobre a adoção de um ou outro.
Conclusões. A esperança de um novo tempo.
Fato é que o espírito da cláusula de retomada na legislação brasileira é de garantir o escopo contratual, qual seja a entrega definitiva, funcional e tempestiva da obra ou serviço de engenharia de grande vulto, ou de menor vulto – incluindo fornecimento. A finalidade pública se materializa com a integralidade. A atecnia, talvez propositada, na definição de parâmetro preferencial permite e fortifica o seu caráter discricionário [à seguradora].
Ao cabo, na intimidade da cláusula de retomada, ou performance bond, ou step in rights, ou qualquer outra nomenclatura que se atenha a este modelo de seguro-garantia tão comentado, o intuito primeiro é de transformar a realidade das obras públicas brasileiras assegurando que – ao término de todo sofrimento burocrático – a população possa ter acesso à utilidade da destinação do recurso público.
Pode ou não ser uma visão superestimada de seu uso. Todavia, nos berços das discussões doutrinárias, nos corredores dos órgãos e entes que executam o texto idealizado e nas salas de reuniões das empresas que negociam com o governo, sobretudo as empreiteiras, é uníssono o coro do Agora, vai!
O “Agora, vai!” é uma expressão useira e vezeira do vocabulário popular brasileiro que legitima a esperança de que surge um marco temporal modificador da realidade, inaugurando um novo tempo de efetiva realização das expectativas. Estreia-se uma nova pista.
Ao transferir o risco do inadimplemento para a seguradora, a cláusula de retomada incentiva as empresas a assumirem compromissos mais realistas e adequados à sua capacidade real de execução. Isso reduz significativamente a chance de abandonos de obras, um problema que assola o país e gera prejuízos bilionários.
Na visão otimista, com a responsabilidade de finalizar o projeto em suas mãos, a seguradora é pressionada a agir tempestiva e eficientemente. Isso significa menos atrasos desnecessários, otimização do cronograma e obras entregues dentro do prazo previsto, evitando transtornos à população e garantindo o cumprimento dos objetivos previstos.
Obras paralisadas representam um enorme desperdício de recursos públicos, pois os investimentos realizados se tornam inutilizados. A cláusula de retomada, ao garantir a conclusão dos projetos, contribui para a otimização do dinheiro público, assegurando que cada centavo investido gere o retorno esperado para a sociedade.
Em dados apresentados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o Brasil tem 8.600 (oito mil e seiscentos) obras paralisadas, financiadas apenas com recurso federal. Repete-se: apenas com recurso federal. As obras custeadas com recursos estaduais e municipais despontam esse número para um montante incerto e altíssimo. Quantificar em real o prejuízo? Deixa-se para os estudiosos da economia do custo Brasil.
A população se beneficia diretamente da conclusão das obras públicas, que proporcionam acesso a serviços essenciais e infraestrutura adequada, como estradas, escolas, hospitais e outros equipamentos públicos. A cláusula de retomada, ao reduzir o risco de paralisações, contribui para a construção de um ambiente mais confiável e seguro, onde os cidadãos podem ter a esperança – ainda não se crava a certeza - de que as obras iniciadas serão concluídas e entregues à comunidade.
Sem dourar a pílula, alguns pontos considerados “contras” na balança do custo-benefício devem ser apresentados como ênfase e zelo pela coisa pública. Inicia-se a discussão por agora, com a efetiva vida prática da Lei Geral. Tantos outros pontos surgirão, bem como regulamentações diversas e controle mais que necessário da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP). É o início, apenas.
Na perspectiva de ser muito trabalhada nos editais Brasil adentro, perspectivas gerais devem ser analisadas, testadas e validadas diuturnamente para aferir se há a eficiência almejada e a que preço – não apenas financeiros.
A inclusão da cláusula de retomada nos contratos será responsável pelo aumento de custos das obras, pois a seguradora cobrará um valor adicional pelo serviço de garantir a obrigação. É um movimento muito mais complexo que envolve analistas de risco e crédito, corpo técnico de engenheiros para avaliação de projetos complexos, aporte jurídico especializado e tantos outros que participem da cadeia fidejussória.
A própria Lei de nº. 14.133/2021 precisa de melhor regulamentação sobre a utilização da cláusula de retomada, pois que muitas perguntas surgem sobre a tramitação e seu real alcance e efeito, pois que a casuística pode ser infinita sem balizamentos mais claros. Precisa-se de melhor contorno para que sedimente a relação garantidora.
A cláusula de retomada se apresenta como uma ferramenta poderosa para combater o problema das obras paralisadas no Brasil e impulsionar o desenvolvimento do país. Ao transferir o risco para as seguradoras, incentivar a responsabilidade das empresas, otimizar o uso do dinheiro público e fortalecer a confiança da sociedade, essa inovação tem o potencial de transformar o cenário das obras públicas brasileiras e garantir a entrega de projetos de qualidade para toda a população.
Pois bem. Há um avanço. Lento, mas contínuo. Frágil ainda, mas forte quando maduro. É um caminho sem volta. É um novo tempo. E que ele seja pleno.
REFERÊNCIAS
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 1247 p. ISBN 978-65-5518-330-6.
CARVALHO, Matheus; OLIVEIRA, João Paulo; ROCHA, Paulo Germano. Nova lei de licitações comentada. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. 688 p. ISBN 978-65-5680-680-8.
FREIRE, André Luiz. Direito dos contratos administrativos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 481 e MELO, Anastácia; MENDONÇA, Natally Vasconcelos de; COSTA, Rogério Pimenta de. O seguro-garantia na Lei nº 14.133/2021 In: SOLLICITA, Curitiba, 2023. Disponível em: https://portal.sollicita.com.br/Noticia/20082#_ftn18. Acesso em 02 jul. 2024.
SARAI, Leandro (org.). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021 Comentada por Advogados Públicos. São Paulo: JusPodivm, 2021.
TCU.https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/brasil-tem-8-6-mil-obras-paralisadas-financiadas-com-recursos-federais.htm. Acesso em 02 jul. 2024.