Resumo.
A Lavagem de Bens e Capitais é um dos crimes mais sofisticados e complexos do Direito Penal Econômico, essencialmente relacionado à ocultação da origem ilícita de ativos financeiros. A teoria da cegueira deliberada se avulta como uma admirável ferramenta para responsabilizar penalmente aqueles que, embora não tenham conhecimento direto sobre a origem ilícita dos recursos, escolhem conscientemente permanecer ignorantes. Este artigo minudencia a Lavagem de Capitais e a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no contexto jurídico criminal brasileiro.
Palavras-chave: Direito Penal Econômico. Lavagem de Bens e Capitais. Teoria da Cegueira Deliberada. Responsabilidade Penal.
1. Introdução
A criminalidade econômica contemporânea tem evoluído, demonstrando maior sofisticação e complexidade, especialmente no que tange à Lavagem de Bens e Capitais. Esse crime, que visa disfarçar a origem ilícita de recursos financeiros, representa uma séria ameaça à integridade dos sistemas financeiros globais. O desafio para as autoridades é não apenas identificar e apreender esses ativos, mas também responsabilizar os indivíduos envolvidos, incluindo aqueles que escolhem ignorar sinais evidentes de ilicitude. A Teoria da Cegueira Deliberada, oriunda do direito Anglo-Saxão, oferta uma resolução jurídica para tais casos. Este artigo explora a fundo a lavagem de capitais e a aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil, analisando sua evolução, aplicação prática e impacto no combate ao crime.
2. Conceito e Caracterização da Lavagem de Bens e Capitais
O crime de lavagem de dinheiro, ou lavagem de bens e capitais, reconhecido mundialmente, teve origem em Chicago, nos Estados Unidos, na década de 1920. Durante esse período, os gangsters usaram lavanderias para esconder dinheiro obtido por meios ilegais.
Com o tempo, as atividades de lavagem de dinheiro cresceram em complexidade e escala. A infração consiste numa série de atos destinados a ocultar ou disfarçar a natureza, a origem e o valor de uma infração penal, a fim de fazer com que os bens pareçam ter uma origem legítima. Em outras palavras, é a introdução de bens e valores ilegais na economia de forma legal (RICARDO, 2016).
A Força-Tarefa de Ação Financeira – GAFI (ou Força-Tarefa de Ação Financeira – GAFI) decompõe o delito de lavagem de capitais em três fases diferentes: colocação, estratificação e integração (RICARDO, Lucas Nacur. 2016, p. 241). Durante o passo denominado colocação, recursos provenientes de fontes ilícitas são inseridos no sistema financeiro, estorvando sua rastreabilidade. Uma vez fincado, ocorrem diversas transações financeiras, tornando o rastreamento mais complicado. Por fim, o dinheiro é reintegrado aos bens legítimos do criminoso, completando o ciclo.
Em palavras diversas, a lavagem de dinheiro pode ser definida como uma série de operações que visam converter recursos oriundos de atividades criminosas em recursos legais regulares no sistema financeiro. Esta prática engana o Estado e a sociedade, levando em última análise à aparente legalização de bens.
O delito em questão é tipificado pela Lei nº 9.613/1998, sendo definido como "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal". A lavagem de dinheiro é, portanto, um crime acessório, dependente de uma infração penal antecedente que gere os ativos ilícitos – como, por exemplo, tráfico de drogas, organização criminosa, corrupção, fraude, crimes contra a administração pública, crimes financeiros, crimes contra a ordem tributária, e etc.
No Brasil, a criminalização da lavagem de dinheiro foi estabelecida pela aludida legislação, que delineou uma série de atos que caracterizam esse crime, incluindo a imputação do delito àqueles que utilizam bens, direitos e valores oriundos de atividades ilegais no contexto econômico ou financeiro. A redação da Lei nº 9.613 de 1998 foi alterada pela Lei nº 12.683 de 2012, eliminando o rol taxativo anteriormente existente, e abrangendo qualquer infração penal para a configuração do crime de lavagem de dinheiro.
Ademais, a modificação no art. 1º, § 2º, inciso I, fez com que o crime de lavagem de dinheiro passasse a ser imputado também a quem utilizasse, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, independentemente do conhecimento sobre a origem ilícita desses ativos (BRASIL, 1998).
Desta forma, exclui-se a necessidade de saber explicitamente que os bens ou valores são provenientes de atividades ilegais, admitindo-se a criminalização mesmo sem esse conhecimento prévio. A redação anterior apenas permitia a imputação do crime em casos de dolo direto; a nova redação também admite a presença de dolo eventual na conduta do agente, eliminando a exigência de dolo direto.
Diversas teorias jurídicas ajudam a entender e combater a lavagem de dinheiro. A teoria da cegueira deliberada, Exempli gratia, sugere que a ignorância intencional sobre a origem ilícita dos valores pode configurar o dolo necessário para o crime – conforme será explicitado em momento oportuno. Essa teoria foi aplicada pela primeira vez no Brasil em um caso julgado pela Justiça Federal da 5ª região, envolvendo empresários do ramo de compra e venda de automóveis (Jusbrasil, 2023).
Outro aspecto relevante é a autolavagem, que ocorre quando o autor do crime antecedente é o mesmo que realiza a lavagem dos valores. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do HC 111840, reconheceu a possibilidade de autolavagem, permitindo a responsabilização do agente por ambos os crimes (Jusbrasil, 2023).
Segundo Gustavo Henrique Badaró, a autolavagem deve ser entendida como "a prática de atos de ocultação e dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal pelo próprio autor da infração antecedente" (BADARÓ, 2016). Ele argumenta que a distinção entre o crime antecedente e a lavagem de dinheiro é crucial para evitar o fenômeno da consunção, onde um crime absorve o outro.
De acordo com a doutrina de Luiz Flávio Gomes, a autolavagem de dinheiro é punível independentemente do conhecimento sobre a origem ilícita dos bens, pois o que se pune é a intenção de dar aparência de licitude a esses valores. Gomes enfatiza que "a incriminação da autolavagem pressupõe a prática de atos de ocultação com a finalidade de integrar os valores na economia legal" (GOMES, 2017).
Casos famosos no Brasil incluem o esquema da JMG Participações e as contas CC5, que ilustram a diversidade e a sofisticação das operações de lavagem de dinheiro. O esquema da JMG envolveu a aquisição fraudulenta de uma empresa de assistência médica, enquanto as contas CC5 permitiam a transferência de grandes quantias de dinheiro para o exterior, convertendo-se em dólares e retornando ao Brasil como recursos aparentemente legais (Canal Ciências Criminais, 2023).
Doutrinadores como Moro (2010) e De Carli (2006) destacam que a legislação de diversos países aborda a lavagem de dinheiro de formas distintas, mas com objetivos semelhantes de combater essa prática criminosa. A jurisprudência internacional varia, mas todos os países reconhecem as três fases fundamentais do processo de lavagem: ocultar, dissimular e integrar (Jus Navigandi, 2023).
Ademais, mister citar-se que o processo de lavagem de dinheiro pode ser dividido em três etapas principais:
Colocação: A introdução dos ativos ilícitos no sistema financeiro. Nesta fase, os criminosos buscam converter o dinheiro sujo em uma forma que possa ser mais facilmente manipulada e menos suspeita.
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Dissimulação: Na fase de ocultação (ou dissimulação), os fundos são submetidos a uma série de transações complexas e muitas vezes internacionais. O objetivo é obscurecer a trilha do dinheiro ilícito, tornando difícil ou impossível rastrear sua origem. Isso pode envolver transferências entre contas bancárias em diferentes jurisdições, uso de paraísos fiscais, compra e venda de ativos múltiplos, e até mesmo transações fictícias entre empresas controladas pelo criminoso. Esta fase visa criar uma camada de complexidade que desencoraja investigações e dificulta a identificação da origem criminosa dos recursos.
Integração: Finalmente, na fase de integração, os recursos lavados são reinseridos na economia legal de maneira que pareçam legítimos. Isso pode incluir a compra de negócios legítimos, investimentos em mercados financeiros, ou até mesmo a criação de empresas de fachada que aparentam operar de forma legal. O objetivo é consolidar os fundos ilícitos de forma que possam ser utilizados livremente sem levantar suspeitas adicionais. Esta fase completa o ciclo de lavagem de dinheiro, transformando ativos inicialmente criminosos em recursos que podem ser livremente utilizados sem risco de detecção.
As lições de Carla de Carli asseveram que:
“exemplo de lavagem de dinheiro na modalidade ocultação é o simples depósito de valores recebidos em paga de corrupção em conta de terceiro – oculta-se a origem, a localização e a propriedade dos valores ilicitamente havidos. A chave, aqui, é ser a conta bancária de terceiro. Caso estivesse em nome do autor do delito de corrupção não haveria lavagem, porque ele não estaria ocultando a verdadeira propriedade desses valores” (Lavagem de dinheiro, Prevenção e controle penal, p. 240).
Ainda, de acordo com o magistério de Luiz Flávio Gomes:
"A lavagem de dinheiro é um processo complexo que envolve três fases distintas: colocação, ocultação e integração dos recursos provenientes de atividades ilícitas no sistema financeiro." (Fonte: GOMES, Luiz Flávio. Crimes financeiros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.)
Logo, a compreensão do crime de lavagem de dinheiro, suas fases, teorias aplicáveis e exemplos concretos é essencial para enfrentar eficazmente essa prática delituosa. A legislação brasileira, adaptada e reforçada ao longo dos anos, busca coibir a lavagem de dinheiro, promovendo maior transparência e responsabilidade no sistema financeiro e jurídico do país.
3. Impacto Econômico e Social da Lavagem de Capitais
A lavagem de dinheiro não é apenas uma questão de criminalidade financeira, mas também um fenômeno que distorce significativamente a economia legal e social. Segundo Zaffaroni (2011), o processo de lavagem de capitais não apenas facilita a continuidade de atividades criminosas, mas também introduz um influxo de dinheiro ilícito que pode inflacionar setores específicos da economia, como o mercado imobiliário. Este fenômeno não só distorce os preços e dificulta o acesso à habitação para muitos cidadãos, mas também compromete a integridade e a competitividade das empresas que operam dentro da legalidade (Friedman, 2008).
A associação da lavagem de dinheiro com crimes graves como tráfico de drogas, corrupção e financiamento do terrorismo é bem documentada na literatura jurídica internacional (von Lampe, 2007). Autores como Levi (2015) enfatizam que a lavagem de capitais não é um crime isolado, mas um componente crucial de redes criminosas transnacionais que buscam legitimar os lucros de atividades ilícitas. Essa interconexão entre lavagem de dinheiro e crimes mais severos ressalta a importância de abordagens integradas e globais para combater essas práticas.
Do ponto de vista social, a lavagem de dinheiro mina a confiança nas instituições financeiras e nos mecanismos de controle estatais (Pieth, 2000). A percepção de impunidade associada à lavagem de capitais pode desencorajar o cumprimento da lei por parte dos cidadãos e das empresas, perpetuando um ciclo de desigualdade e injustiça social. Conforme observado por Ricoy (2018), a falta de eficácia na aplicação da lei contra a lavagem de dinheiro pode erodir o tecido social ao alimentar a percepção de que os poderosos podem escapar das consequências de suas ações, enquanto os menos privilegiados enfrentam penalidades severas por delitos menores.
No contexto brasileiro, a jurisprudência tem se consolidado na interpretação rigorosa das leis anti-lavagem, buscando não apenas punir os responsáveis, mas também desmantelar as estruturas organizadas que facilitam essas práticas criminosas (Brasil, STF, HC 104.702/SP). Decisões judiciais recentes, como no caso paradigmático do Mensalão, destacam a importância de investigações robustas e colaborações internacionais para desmantelar esquemas complexos de lavagem de dinheiro que impactam negativamente a estabilidade econômica e social do país (Brasil, STF, AP 470).
Portanto, a lavagem de dinheiro não pode ser subestimada como um mero crime financeiro. Ela transcende as fronteiras econômicas e sociais, alimentando a criminalidade organizada, corroendo instituições democráticas e perpetuando a desigualdade. Combater eficazmente a lavagem de capitais exige não apenas uma abordagem legal robusta, mas também um compromisso global para fortalecer os mecanismos de controle, promover a transparência financeira e restaurar a confiança na justiça e na equidade social.
4. Teoria da Cegueira Deliberada
A teoria da cegueira deliberada, também conhecida como "Willful Blindness" ou "ignorância deliberada", representa um avanço significativo no direito penal ao permitir que indivíduos sejam responsabilizados criminalmente mesmo sem terem conhecimento direto da origem criminosa dos ativos com os quais lidam. Originada no direito anglo-saxão, essa teoria ganhou destaque globalmente como uma ferramenta crucial na persecução de crimes financeiros complexos, como a lavagem de dinheiro.
Segundo Simester e Sullivan (2007), a cegueira deliberada ocorre quando uma pessoa, consciente da possibilidade de ilegalidade, opta por ignorar ou evitar deliberadamente informações que poderiam confirmar suas suspeitas. Esse comportamento é equiparado, perante a lei, ao conhecimento efetivo da ilegalidade, permitindo que a pessoa seja responsabilizada criminalmente como se tivesse conhecimento direto dos fatos. Essa abordagem reflete a necessidade de responsabilizar não apenas os participantes diretos de crimes financeiros, mas também aqueles que contribuem indiretamente para sua perpetuação através da negligência deliberada.
No âmbito da lavagem de dinheiro, a aplicação da teoria da cegueira deliberada é particularmente relevante em casos envolvendo profissionais financeiros e empresariais que, conscientes de indicativos de atividades criminosas, optam por não investigar ou reportar suspeitas às autoridades competentes. Pieth (2016) destaca que essa omissão deliberada pode facilitar significativamente a integração de recursos ilícitos ao sistema financeiro global, comprometendo a integridade do mercado e dificultando esforços para combater eficazmente o crime organizado.
Jurisprudencialmente, a teoria da cegueira deliberada tem sido aplicada de maneira variada ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, casos como United States v. Jewell (1976) estabeleceram que a ignorância deliberada pode ser suficiente para estabelecer a culpabilidade em conspirações para cometer crimes financeiros. No Brasil, decisões do Supremo Tribunal Federal, como no caso do Mensalão (Brasil, STF, AP 470), têm reconhecido a importância de considerar a cegueira deliberada na atribuição de responsabilidade penal em casos complexos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Além das implicações jurídicas, a cegueira deliberada também suscita importantes questões éticas e de responsabilidade corporativa. Hopt et al. (2015) argumentam que a promoção de uma cultura organizacional de conformidade e transparência é fundamental para mitigar o risco de envolvimento involuntário ou intencional em atividades criminosas. A implementação de políticas robustas de compliance não apenas protege as instituições contra sanções legais, mas também fortalece a confiança dos investidores e do público na integridade do sistema financeiro global.
Todavia, é importante ressaltar que a aplicação da teoria da cegueira deliberada não está isenta de críticas. Críticos argumentam que ela pode ser interpretada de maneira excessivamente ampla, levando à criminalização de condutas negligentes que não necessariamente refletem conhecimento efetivo da ilegalidade. Portanto, sua aplicação deve ser cuidadosamente ponderada pelos tribunais para garantir justiça e equidade em cada caso específico, evitando injustiças e preservando os direitos fundamentais dos acusados.
Por exemplo, Luis Greco (2013, p. 74-75) avulta alguns cuidados na coerência da hipótese, asseverando que, ao avaliar o comportamento antecedente do indivíduo como reprovável nos arquétipos dolosos, o desconhecimento de uma circunstância de fato coloca o agente em uma conjuntura de reprovabilidade demasiada. Tal fato ocorre, pois, sua ação poderia provocar a inculpação de múltiplas delinquências. Exempli gratia, um sujeito que negligentemente deixasse de verificar os compartimentos de um veículo poderia ser responsabilizado por uma variedade de crimes, desde tráfico de drogas até tráfico de armas ou receptação.
Em suma, a teoria da cegueira deliberada desempenha um papel fundamental na responsabilização de indivíduos e instituições envolvidos em atividades criminosas complexas, como a lavagem de dinheiro. Ao promover uma abordagem ampla de responsabilidade, ela contribui para um ambiente jurídico mais justo e ético, fortalecendo os mecanismos de prevenção e detecção de crimes financeiros em escala global. Esta abordagem não apenas reforça a responsabilidade individual por condutas negligentes, mas também promove a integridade e a transparência nos mercados globais, contribuindo para um ambiente mais seguro e ético para todas as partes envolvidas.
5. A Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Âmbito do Direito Penal Brasileiro
A teoria da cegueira deliberada tem encontrado espaço significativo no direito brasileiro, principalmente através de sua aplicação pela jurisprudência. Originária do direito anglo-saxão, essa teoria visa responsabilizar agentes que, embora não possuam conhecimento direto de uma atividade ilícita, deliberadamente se mantêm ignorantes sobre os fatos para evitar responsabilidades penais. No Brasil, tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm reconhecido e aplicado essa teoria em casos onde a prova do conhecimento direto é difícil, mas há evidências de que o agente optou por não saber.
No HC 259.416/SP, um caso emblemático julgado pelo STJ, a Corte afirmou que "a adoção da cegueira deliberada permite a condenação do agente que, deliberadamente, se mantém em estado de ignorância para não descobrir a ilicitude dos atos que pratica". Este entendimento jurisprudencial sublinha a necessidade de diligência por parte dos agentes econômicos e financeiros na identificação de operações suspeitas, destacando a importância de um comportamento proativo na prevenção de crimes.
A aplicação da teoria da cegueira deliberada no direito penal brasileiro encontra respaldo em diversos precedentes. Por exemplo, no julgamento do HC 89.838/PR, o STF reforçou que a ignorância deliberada não pode ser usada como escudo para a impunidade, enfatizando que a omissão intencional de investigar a origem de recursos financeiros suspeitos configura uma forma de dolo eventual. Este posicionamento é essencial para a responsabilização de crimes de colarinho branco, onde a sofisticação das operações pode dificultar a prova direta do conhecimento.
Além da jurisprudência, a doutrina também tem se debruçado sobre a teoria da cegueira deliberada. Autores como Rogério Greco e Guilherme de Souza Nucci defendem que essa teoria preenche uma lacuna na responsabilização penal, especialmente em crimes econômicos e financeiros. Greco (2017) argumenta que a cegueira deliberada é uma resposta à complexidade das estruturas criminosas modernas, onde a compartimentalização das tarefas visa diluir a responsabilidade. Nucci (2020), por sua vez, destaca que a teoria não viola o princípio da culpabilidade, pois o agente escolhe conscientemente permanecer ignorante.
A utilização da cegueira deliberada no Brasil também encontra apoio no direito comparado. Nos Estados Unidos, por exemplo, a teoria é amplamente utilizada para responsabilizar dirigentes empresariais e executivos financeiros. O caso Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, consolidou a teoria ao afirmar que a cegueira deliberada equivale ao conhecimento real no contexto de responsabilidade penal.
No Brasil, a cegueira deliberada se alinha com princípios fundamentais do direito penal, como o princípio da legalidade e o princípio da culpabilidade. Ao exigir que os agentes adotem uma postura ativa na verificação da licitude de suas atividades, a teoria reforça a proteção dos bens jurídicos e a efetividade do sistema penal. A cegueira deliberada, portanto, atua como um instrumento de prevenção e repressão de crimes complexos, promovendo a responsabilidade individual em um cenário de crescente sofisticação criminal.
Um ponto crucial na aplicação da cegueira deliberada é a necessidade de evidências claras de que o agente optou por não saber. Não basta a simples negligência ou imprudência; é imprescindível demonstrar que o agente tinha razões suficientes para suspeitar da ilicitude e, ainda assim, escolheu não investigar. Este critério garante que a teoria não seja aplicada de forma arbitrária, preservando os direitos dos acusados.
A jurisprudência brasileira tem sido cuidadosa ao delimitar os contornos da cegueira deliberada, evitando sua aplicação indiscriminada. O STJ, no REsp 1.175.315/SP, destacou que a adoção da cegueira deliberada deve ser excepcional e fundamentada em provas concretas que demonstrem a escolha consciente pela ignorância. Este rigor é fundamental para manter a legitimidade e a justiça no sistema penal.
Logo, a teoria da cegueira deliberada se consolidou como um importante mecanismo de responsabilização penal no Brasil, especialmente em crimes econômicos e financeiros. Sua aplicação pela jurisprudência do STF e do STJ demonstra um compromisso com a efetividade da justiça penal, ao mesmo tempo em que respeita os princípios fundamentais do direito. A doutrina e o direito comparado reforçam a importância dessa teoria como uma resposta à complexidade e sofisticação das atividades criminosas contemporâneas, promovendo uma cultura de diligência e responsabilidade.
6 - Conclusão
A Lavagem de Capitais e a Teoria da Cegueira Deliberada representam desafios e soluções interligadas no combate ao Crime Econômico. A aplicação da referida teoria permite responsabilizar aqueles que optam por ignorar a ilicitude dos recursos com os quais lidam, preenchendo uma lacuna crítica na persecução penal desses delitos. Ao punir a inação deliberada, a teoria promove uma maior responsabilização e vigilância, incentivando os agentes econômicos a adotarem práticas mais rigorosas de verificação e conformidade.
Entretanto, a implementação efetiva dessa teoria exige uma combinação de legislação robusta, doutrina esclarecedora e jurisprudência assertiva. A legislação precisa ser clara e abrangente, fornecendo bases legais sólidas para a imputação de responsabilidade. A doutrina deve continuar a desenvolver e refinar os conceitos e critérios que orientam a aplicação da cegueira deliberada, garantindo que sejam justos e proporcionais. A jurisprudência, por sua vez, deve aplicar esses princípios de maneira consistente e coerente, oferecendo precedentes que balizem futuras decisões e forneçam segurança jurídica.
Portanto, enfrentar a lavagem de capitais requer um esforço integrado e multifacetado. A teoria da cegueira deliberada, quando bem aplicada, é uma ferramenta poderosa nesse combate, complementando outras medidas e estratégias. Com um marco jurídico bem estruturado, uma doutrina sólida e uma jurisprudência consistente, é possível proteger a integridade dos sistemas financeiros e econômicos, garantindo que aqueles que optam por ignorar a ilicitude dos recursos sejam devidamente responsabilizados.
Referências
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