Jorge Américo Pereira de Lira
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco – TJPE. Diretor-Geral da Escola Judicial de Pernambuco (ESMAPE). Ex-Promotor de Justiça do Estado de Pernambuco.
No cenário jurídico, o poder regulamentar se manifesta como uma ferramenta essencial para a Administração Pública concretizar a legislação, conferindo-se efetividade às leis, viabilizando, portanto, a sua aplicação no mundo fático.
Consoante leciona José dos Santos Carvalho Filho, poder regulamentar: “é a prerrogativa conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação”1.
Impende ressaltar que o poder regulamentar não se confunde com a delegação legislativa, ainda que ambos sejam expressões do poder normativo da Administração Pública.
Com efeito, a delegação legislativa, instituto de caráter excepcional e previsto em numerus clausus na Constituição Federal, consiste na autorização conferida pelo Legislativo ao Executivo para a edição de normas primárias, com força de lei, em matérias específicas e sob parâmetros previamente estabelecidos, a exemplo das leis delegadas, cuja previsão se acha assentada no art. 68 da CF.
O poder regulamentar, por sua vez, traduz-se na prerrogativa da Administração Pública de editar atos normativos secundários, visando à fiel execução das leis.
Em análise da legislação pátria, é comum encontrarmos leis que, em seu texto, preveem a necessidade de regulamentação para a sua aplicação. Diante disso, surge a problemática acerca da executoriedade da referida lei antes da expedição do ato regulamentar.
Nesse contexto, as leis que necessitam de regulamentação não podem ser aplicadas antes da expedição do decreto regulamentar, pois este ato é considerado conditio juris para que a norma se torne exequível.
A propósito, dignas de nota são as lições de Hely Lopes Meirelles, segundo as quais:
As leis que trazem a recomendação de serem regulamentadas, não são exequíveis antes da expedição do decreto regulamentar, porque esse ato é conditio juris da atuação normativa da lei. Em tal caso, o regulamento opera como condição suspensiva da execução da norma legal, deixando os seus efeitos pendentes até a expedição do ato do Executivo2.
Nesse sentido, o c. Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento, em sede de Recurso Repetitivo (Tema 974), de que a Lei Federal nº 12.855/2013, que confere indenização em favor de servidores públicos federais em exercício em localidades estratégicas, vinculadas à prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos transfronteiriços, possui eficácia limitada e depende de regulamentação para definir tais localidades.
A tese jurídica firmada no Tema 974, restou assentada nos seguintes termos:
Tema 974: A Lei 12.855/2013, que instituiu a Indenização por Trabalho em Localidade Estratégica, é norma de eficácia condicionada à prévia regulamentação, para definição das localidades consideradas estratégicas, para fins de pagamento da referida vantagem3.
A Corte de Uniformização da Jurisprudência em Matéria Infraconstitucional - STJ, em diversos julgados, reforçou a necessidade de ato normativo regulamentador para a aplicação da Lei 12.855/2013, evidenciando o seu caráter de norma de eficácia limitada, sendo ressaltado que: "não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, fixar o rol de servidores que a ela farão jus nem atribuir-lhes vantagem ou indenização correlatas"4 e 5.
Portanto, leis que demandam regulamentação, por serem normas de eficácia limitada, dependem da expedição do ato regulamentar para produzir efeitos. A ausência de regulamentação obsta a sua aplicação imediata, sendo defeso ao Poder Judiciário, no exercício da atividade jurisdicional, promover a regulamentação.
Nesse mesmo contexto, imaginemos a seguinte situação: uma lei que concede uma gratificação em favor de servidores públicos que atuem em projetos de relevante interesse social é aprovada, mas depende de regulamentação para definir os critérios e procedimento para obtenção do benefício. A lei, no entanto, fixa prazo para que a Administração Pública promova a sua regulamentação.
Nesse contexto, ainda que o exercício do Poder Regulamentar tenha ocorrido após o prazo legalmente previsto, não é possível aplicar a norma retroativamente, concedendo direitos em favor dos servidores em período que precede a regulamentação da lei.
Aliás, em semelhante contexto, o c. STJ assentou que:
A percepção da Gratificação de Titulação necessitaria de regulamento próprio, a ser editado, no prazo de até sessenta dias após a publicação desta Lei, pela Secretaria de Estado de Gestão Administrativa, no âmbito do Poder Executivo; e, no âmbito do Poder Legislativo, por ato próprio da Câmara Legislativa do Distrito Federal e do Tribunal de Contas do Distrito Federal, respectivamente, no que concerne aos seus servidores ou empregados públicos(art. 38, § 3º, da Lei Distrital n. 3.824/06). (...) Tratava-se, pois, de norma de eficácia limitada, dependendo de outra norma para sua aplicação. Não havendo, contudo, tal norma, direito líquido e certo também não há6. (Original sem os grifos)
Para além disso, é firme o entendimento no âmbito do Pretório Excelso de que é defeso ao legislador ordinário impor prazo para o exercício do poder regulamentar, sob pena de vilipêndio ao Princípio da Separação dos Poderes.
Nesse cenário, o Pretório Excelso prescreve que:
A Constituição, ao estabelecer as competências de cada um dos Poderes constituídos, atribuiu ao Chefe do Poder Executivo a função de chefe de governo e de direção superior da Administração Pública ( CF, art. 84, II), o que significa, ao fim e ao cabo, a definição, por meio de critérios de conveniência e oportunidade, de metas e modos de execução dos objetivos legalmente traçados e em observância às limitações financeiras do Estado. Por esse motivo, a tentativa do Poder Legislativo de impor prazo ao Poder Executivo quanto ao dever regulamentar que lhe é originalmente atribuído pelo texto constitucional sem qualquer restrição temporal, viola o art. 2º da Constituição7.
Dessa forma, a problemática em torno da aplicabilidade de leis com eficácia limitada acentua a relevância do poder regulamentar, a ser exercido no âmbito da Administração Pública, sem o qual os efeitos da lei ficam sobrestados, restando elidida a possibilidade da concessão de direitos com base em lei pendente de regulamentação, sendo certo, ademais, que o exercício do poder regulamentar, função tipicamente atribuída ao Poder Executivo, oblitera a fixação de prazo pelo Poder Legislativo para o seu exercício, bem como limita a atividade jurisdicional que vise a promover tal regulamentação, sob pena de malferimento ao Princípio da Separação dos Poderes insculpido no art. 2º da Constituição Federal.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 12.855, de 20 de agosto de 2013. Institui a indenização devida a ocupante de cargo efetivo das Carreiras e Planos Especiais de Cargos que especifica, em exercício nas unidades situadas em localidades estratégicas vinculadas à prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos transfronteiriços.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1.020.717/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 02/05/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RMS: 46142 DF 2014/0194419-1, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 09/06/2015, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/06/2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.495.287/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 07/05/2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1617086/PR, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/11/2018, DJe 01/02/2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI: 4727 DF, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/02/2023, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-04-2023, DJe 28/04/2023.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31ª edição. Rio de Janeiro: Atlas, 2017.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1989.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31ª edição. Rio de Janeiro: Atlas, 2017, p. 71.︎
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.14.ed., p. 108.︎
STJ - REsp 1617086/PR, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Primeira Seção, julgado em 28.11.2018, DJe 01.02.2019︎
STJ, AgInt no AREsp 1.020.717/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 02/05/2017.︎
Ainda no mesmos sentido, confira-se: STJ, REsp 1.495.287/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 07/05/2015.︎
STJ - AgRg no RMS: 46142 DF 2014/0194419-1, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, Data de Julgamento: 09/06/2015, T2 - Segunda Turma, Data de Publicação: DJe 16/06/2015.︎
STF - ADI: 4727 DF, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 23/02/2023, Tribunal Pleno, Data de Publicação: Processo Eletrônico, DJe-s/n DIVULG 27-04-2023 PUBLIC 28-04-2023︎