Recentemente foi publicado o Marco Regulatório do Fomento à Cultura do Brasil, a Lei nº 14.903/2024, e, pessoalmente, é uma satisfação imensa ver esse projeto de lei, no qual tive a oportunidade de colaborar, se tornar realidade. Há tempos venho falando [1] acerca da necessidade de uma norma geral sobre fomento à cultura, bem como dos prejuízos que a sua ausência causa no setor e na gestão pública de cultura.
Neste artigo, citado na justificação do projeto de lei, chamei atenção para o fato de que “a aplicação de instrumentos jurídicos, mecanismos de repasse e normas inadequadas para o fomento ao setor artístico e cultural é, a meu ver e ao lado da escassez de recursos, o maior problema da gestão pública de cultura em nosso país” [2].
Escassez de recursos já não é uma questão, ao menos por agora. Lei Aldir Blanc, Lei Paulo Gustavo e os cinco anos de Política Nacional Aldir Blanc mudaram (e mudarão) o cenário do fomento à cultura no país, com a injeção de mais de R$ 21 bilhões no setor artístico e cultural, bem como na reestruturação da gestão pública de cultura.
Temos recursos, mas como executá-los? Faltava o operacional, o “como fazer”. Para tentar resolver essa falta, foi criado o Decreto nº 11.453/2023, com regras muito parecidas com as dispostas na lei do Marco Regulatório do Fomento recém aprovada. O Decreto, não obstante os questionamentos pertinentes acerca de sua regularidade jurídica, serviu ao que se propôs, dando o mínimo de segurança jurídica ao gestor na execução da LPG e, agora, da PNAB.
Mas era necessário ir além, consolidar as regras do fomento em uma base legal. Era preciso institucionalizar, tornar oficial o denominado “Regime Próprio do Fomento à Cultura”, com regras, instrumentos e procedimentos específicos adequados à realidade do setor artístico e cultural. E é exatamente isso que a Lei nº 14.903/2024 visa ser, um verdadeiro Direito Administrativo do Fomento à Cultura.
Logo em seu artigo primeiro, a norma declara o seu fundamento de existência no artigo 24, IX da Constituição Federal, qual seja, na competência legislativa concorrente sobre cultura. Isso significa dizer que a Lei nº 14.903/2024 tem caráter de norma geral, já que, criada pela União, tem por isso o condão de estabelecer as diretrizes do fomento à cultura para todo o país. O próprio artigo 1º ressalta esse ponto, estabelecendo expressamente que a norma é válida tanto para União quanto para Estados, Distrito Federal e para os Municípios.
E quais são essas diretrizes? Bom, a mais importante delas é o afastamento total da Lei nº 14.133/2021, a lei de licitações, na operacionalização do fomento à cultura no país. De forma precisa e corajosa, a lei deixa claro o óbvio: o fomento não é licitação e, por isso, não pode ser regulamentado pela referida legislação, absolutamente inadequada à atividade de fomento estatal.
Assim, União, Estados, DF e Municípios estão proibidos de utilizar as regras da Lei nº 14.133/2021 para realizar os seus editais de cultura. O que usar, então? Aqui, a norma, a meu ver, disse menos do que poderia. Em seu artigo 2º, §1º, a lei afirma que a União deve se utilizar do Regime Próprio de Fomento à Cultura estabelecido no Capítulo II da norma, mas que, para Estados, DF e Municípios, a aplicação deste regime é opcional, podendo estes criarem “regimes jurídicos próprios no âmbito de sua autonomia”.
Apesar de não impor o Regime Próprio a todos os entes, o que, na minha opinião, seria possível, tendo em vista a sua natureza de norma geral, a lei dá as orientações sobre como esses regimes próprios a serem criados por Estados, DF e Municípios deverão ser. De acordo com a norma, as regras desse regime devem visar alcançar as metas dos Planos de Cultura, bem como devem respeitar a eficiência administrativa e a razoável duração do processo (art. 2º, §2º, II). Além de, é claro, não repetir os procedimentos da lei de licitações, de aplicação vedada ao fomento cultural.
Na prática, a tendência é que os entes federados utilizem, ao menos como inspiração para criação de seus regimes locais, o Regime Próprio de Fomento à Cultura estabelecido pela Lei nº 14.903/2024 para realizar o fomento ao setor artístico e cultural, visto que ele é, sem dúvida, o conjunto de regras e procedimentos mais adequado existente no país, gerando uma maior segurança jurídica tanto para o gestor quanto para os agentes culturais.
Ganha a política pública de cultura, a gestão pública de cultura e a sociedade civil. Seja bem-vindo Marco Regulatório do Fomento à Cultura do Brasil! Que traga a segurança jurídica necessária para um fomento público eficiente, democrático e efetivador dos direitos culturais.
Cecilia Rabelo, Advogada, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult. Mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais
Notas:
[1] Disponível em:
https://www.ibdcult.org/post/a-necess%C3%A1ria-autonomia-do-fomento-p%C3%BAblico-%C3%A0-cultura
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/rabelo-fomento-cultura-desafios-praticos-quando-norma-nao-alcanca-realidade/