Direito, Direitos humanos e Educação

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1             INTRODUÇÃO

 

 

A proposta apresentada é a de que à escola cabe o trabalho com os conhecimentos científicos e também com a formação ética de crianças e jovens, para que sejam capazes de construir relações sociais mais justas e solidárias, contemplando o que chamamos de educação em valores. Acreditamos que as questões aqui apresentadas – oriundas da realidade por nós vivida no dia-a-dia escolar – podem contribuir para o debate acerca dos desafios da escola na sociedade contemporânea. Diante disso, nossa preocupação é a de buscar caminhos para que a formação em valores ocorra nas práticas pedagógicas cotidianas. Esperamos que o presente texto seja mais um passo rumo a uma escola pública de qualidade, que desenvolva tanto as potencialidades cognitivas quanto as afetivas, sociais e morais de alunos e alunas; uma escola aberta à práticas democráticas, que priorize a formação de crianças e jovens autônomos, críticos e que almejem uma sociedade mais justa e solidária.

A Educação em Direitos Humanos parte de três pontos: primeiro, é uma educação permanente, continuada e global. Segundo, está voltada para a mudança cultural. Terceiro, é educação em valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, ou seja, não se trata de mera transmissão de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, que deve abranger, igualmente, educadores e educandos, como sempre afirmou Paulo Freire. É a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Isso significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.

 

 


 

2       OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA

 

 

Para iniciar o presente trabalho, apresentaremos os objetivos da educação de acordo com nosso desejo de transformar a escola em um espaço de aprendizagem significativa. Por acreditarmos que o papel da escola é ajudar na formação ética de cidadãos(ãs) críticos(as) e conscientes de seu papel na sociedade, consideramos que a escola deve se preocupar com a instrução das futuras gerações e também com a formação em valores, condição para o desenvolvimento intelectual, moral e para o pleno exercício da cidadania. Tais questões nortearão a discussão apresentada e nosso objetivo será o de discutir o papel da escola atualmente. Para tanto, partimos do pressuposto de que a escola é uma instituição criada pela sociedade para educar as futuras gerações. Mas o que entendemos por educação? Qual o papel da escola na sociedade contemporânea? De acordo com Araújo (2003), os dois objetivos centrais da educação atualmente são a instrução e a formação ética. Vale ressaltar que esses objetivos são indissociáveis e corroboram para a formação de cidadãos e cidadãs. A instrução é o trabalho com os conhecimentos construídos historicamente pela humanidade, relacionados às áreas disciplinares como Língua, História, Artes, Matemática, Geografia etc. Já a formação ética é [...] a busca pelo desenvolvimento de aspectos que dêem aos jovens e às crianças as condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais necessárias para uma vida pessoal digna e saudável e para poderem exercer e participar efetivamente da vida política e da vida pública da sociedade, de forma crítica e autônoma. (ARAÚJO, 2003, p. 31)

Em paralelo à instrução, portanto, um dos objetivos da educação é desenvolver condições para que crianças e jovens participem da vida em sociedade de forma crítica e autônoma, o que chamaremos de condições para o exercício da cidadania. São esses os elementos que a escola deve desenvolver para que, de maneira crítica, alunos(as) sejam capazes de se indignarem com as injustiças sociais e almejarem uma vida digna para si próprios e para a sociedade. Observando os projetos político-pedagógicos das escolas atualmente é comum encontrar os dois objetivos citados por Araújo.

De acordo com o PPP do Colégio Estadual Dom Bosco, de Campo Mourão – PR: Deparamo-nos com um Brasil que enfrenta profundas desigualdades sociais, econômicas e culturais. [...] Diante deste quadro encontra-se a escola pública que tem por função social formar o cidadão, isto é, construir conhecimentos, atitudes e valores que o tornem um “homem” solidário, crítico, ético e participativo. (PPP Colégio Estadual Dom Bosco, 2010, p.62)

De maneira geral, os documentos relacionados ao ensino apontam a relevância de se adotar tanto a instrução quanto a formação para a cidadania como objetivos da educação. Recorrendo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, encontramos alguns artigos que fazem menção a esses dois objetivos (BRASIL, 1996):

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho;

 [...] Art. 9º A União incumbir-se-á de: [...] IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum;

[...] Art. 27º. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática.

Nos trechos da LDBEN 9394/96 citados anteriormente podemos perceber o destaque que é dado aos dois objetivos considerados como finalidades da educação: a instrução – a necessidade de um currículo que assegure conteúdos mínimos e uma formação básica comum – e também a formação para o exercício da cidadania, o que Araújo (2003) denomina como formação ética dos futuros cidadãos e cidadãs.

As mesmas preocupações podem ser encontradas no Plano Estadual de Educação do Paraná (2005, p.19), quando o documento destaca os objetivos e metas da escola: Garantir aos alunos do Ensino Fundamental o acesso e a participação efetiva em projetos ou atividades que favoreçam o exercício da cidadania, bem como uma perspectiva de ampliação de tempos e espaços de aprendizagem. [...] Proporcionar ao aluno do Ensino Fundamental, por meio das diferentes áreas do conhecimento, a apropriação de saberes que favoreçam o exercício da cidadania e a continuidade de seu processo de escolarização.

Mais uma vez, percebe-se a ênfase na instrução das futuras gerações, ou seja, o trabalho com a apropriação de saberes das diferentes áreas do conhecimento – e também no desenvolvimento de atividades que favoreçam o exercício da cidadania.

Diante do exposto, constatamos que os objetivos centrais da educação citados por Araújo (2003) estão presentes em vários documentos relacionados à educação. Contudo, o que frequentemente ocorre no cotidiano escolar é uma preocupação maior com a instrução. A formação para o desenvolvimento da cidadania acaba relegada a segundo plano. Partimos do pressuposto de que os dois objetivos centrais da educação – a instrução e a formação para a cidadania – são indissociáveis. A partir disso, consideramos que o papel da escola não implica somente no aprendizado dos conteúdos curriculares, mas também no desenvolvimento das condições físicas, psíquicas, cognitivas e culturais imprescindíveis para que crianças e jovens tenham uma vida digna e saudável. Enfim, consideramos que a discussão acerca dos objetivos da educação é importante para os profissionais da educação que têm interesse em transformar a escola e a sociedade de maneira geral. Entendemos que a escola precisa desenvolver práticas que levem alunos(as) a analisar e atuar criticamente diante da realidade. Por conseguinte, trazer o trabalho com a formação ética para o espaço escolar significa enfrentar o desafio de incorporar nas práticas pedagógicas cotidianas alguns princípios e valores muito conhecidos, mas pouco praticados de maneira geral. Contudo, antes de abordarmos quais medidas concretas poderíamos adotar na escola para incorporar nas práticas pedagógicas tais princípios e valores, consideramos importante compreender brevemente o que são valores e suas relações com a educação, como veremos a seguir.

 

 

2.1      Valores, Cidadania e Direitos Humanos

 

É comum surgirem dúvidas quando se aborda o trabalho com valores na escola. Comumente associado unicamente à família, o processo de formação dos valores é complexo e demanda o desenvolvimento de aspectos sociais, culturais, psíquicos, políticos, afetivos, entre outros. Por isso, acreditamos que a escola tem muito a ajudar no processo de formação em valores das futuras gerações. Em tempos difíceis, de violência, indisciplina e falta de perspectiva para a juventude, a noção de valores adquire proporções crescentes nos debates entre a escola e a sociedade em geral. Diante disso, consideramos que é necessário voltarmos nossos olhares para a educação em valores, tarefa que julgamos indispensável para a construção da personalidade dos futuros cidadãos e cidadãs, comprometidos com a justiça, igualdade e valorização dos direitos humanos.

Ao abordarmos o tema da educação em valores, no entanto, não fazemos referência a um possível retorno aos antigos modelos de educação e de valores tradicionais, “idealizados como eficientes tanto como em relação aos conteúdos enfocados quanto em relação à transmissão de determinados valores alicerçados nos postulados religiosos.” (ARAÚJO, 2001, p.9). Essa educação em valores que aqui destacamos – e consequentemente o processo de formação de cidadãos e cidadãs – solicitam da escola a formação de sujeitos críticos, conscientes de seus direitos e deveres. Diante disso, passamos a considerar que à escola cabe uma nova postura, diferente da idealizada nos modelos tradicionais de educação. Acreditamos que a função da instituição escolar, hoje, deve contemplar os dois objetivos básicos discutidos anteriormente: a instrução e também a formação ética. Isso deve ocorrer a partir não somente do trabalho sistematizado com o conhecimento historicamente construído pela humanidade como também mediante a formação ética do cidadão e da cidadã. Essa formação ética, por sua vez, visa o desenvolvimento de condições necessárias para uma vida digna que possibilite a participação em sociedade de forma crítica e autônoma, como destaca Araújo (2003).

Com base nesses ideais, acreditamos que a escola possa formar sujeitos capazes de construir relações sociais mais justas e solidárias, contemplando o que chamamos de educação em valores. Para que isso ocorra, vários autores (ARAÚJO, 2001, 2003; ARANTES, ARAÚJO e PUIG, 2007; CANDAU, 1995; DALLARI, 1998; FESTER, 1989; MOSCA e AGUIRRE, 1985; PÁTARO, 2008) apontam o caminho indicado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que traz consigo uma série de princípios e valores relacionados à justiça, igualdade, equidade e solidariedade. Tais princípios podem se revelar como um caminho frutífero para a elaboração de programas educacionais que objetivem a educação em valores no mundo contemporâneo, já que os artigos da DUDH estão baseados em contextos e problemáticas reais vividas pela sociedade contemporânea. Partindo de tais considerações e de nossas vivências frequentes com a indisciplina, violência e apatia dentro de sala de aula, consideramos que o trabalho com a DUDH pode subsidiar a prática docente daqueles que lutam contra as desigualdades da sociedade. Apoiados na ideia de que os objetivos da escola giram em torno da instrução e também da formação para o exercício da cidadania, entendemos que a escola precisa desenvolver práticas pedagógicas que levem alunos e alunas a analisar e atuar criticamente diante da realidade. Por conseguinte, trazer o trabalho com a formação ética para o espaço escolar significa enfrentar o desafio de incorporar nas práticas pedagógicas cotidianas

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alguns princípios e valores muito conhecidos, mas pouco praticados de maneira geral. É nesse ponto que recorremos à Declaração Universal dos Direitos Humanos, como documento que busca reconhecer a dignidade de direto a todos os seres humanos. Acreditamos que o trabalho com a DUDH na escola é necessário tanto para difundir tal documento quanto para implementar, por meio da educação, algumas medidas concretas que assegurem o reconhecimento dos princípios e valores nele contidos.

 

 

2.2      O que são valores?

 

Mas, afinal, o que vem a ser educação em valores? O que a escola pode fazer para intervir na formação dos futuros cidadãos e cidadãs? Como participar desse processo, normalmente tido como responsabilidade dos pais? Essas e outras preocupações, como afirma Arantes, devem estar presentes entre os educadores:

Compreender o que são valores e como cada um e todos os seres humanos se apropriam da cultura e se inserem eticamente no mundo faz parte do rol de preocupações daqueles interessados em estudar o citado binômio [educação e valores] e suas possíveis relações. Afinal, os valores seriam inatos, herdados geneticamente, transmitidos pela cultura ou resultariam de interações complexas entre as pessoas e o mundo/cultura em que elas vivem? (ARANTES, 2007, p. 9)

Para a autora, a escola precisa reconhecer que a educação em valores é um processo complexo constituído de diferentes aspectos – sociais, culturais, psíquicos, políticos etc. – e suas relações mútuas. Isso quer dizer que para educar em valores precisamos levar em consideração não apenas a cultura e a sociedade, mas também os aspectos concernentes ao sujeito, como sentimentos e convicções, por exemplo. Para Jean Piaget, da mesma forma, os valores pessoais referem-se a uma troca afetiva que um determinado sujeito realiza com o exterior, ou seja, com objetos ou pessoas. Assim, os valores estão relacionados à dimensão geral da afetividade e às projeções afetivas que o sujeito faz sobre objetos ou pessoas. Isso nos leva a afirmar que Piaget “recusa tanto as teses aprioristas de que os valores são inatos quanto as teses empiristas de que eles são resultantes das pressões do meio social sobre as pessoas.” (ARAÚJO, 2007, p.20). Diante disso, adotamos a concepção de que os valores não estão predeterminados geneticamente na pessoa ao nascer e nem são internalizados de fora para dentro, mas são o resultado das ações do sujeito no mundo em que vive, e por isso podem ser exercitadas na escola. Dessa forma, como afirma Araújo:(...) uma ideia ou uma pessoa tornar-se-ão um valor para o sujeito se ele projetar sobre ela sentimentos positivos. Na direção contrária, as pessoas também projetam sentimentos negativos sobre objetos e/ou pessoas e/ou relações e/ou sobre si mesmas. (ARAÚJO, 2007, p. 21). Puig (ARANTES, 2007, p.110) também pode nos ajudar a entender o que são valores e sua importância para os processos de formação crítica do sujeito: Ter valores significa possuir um conjunto de hábitos de reflexão. Significa estar disposto a repetir comportamentos desejáveis, algo próximo das virtudes, mas, além disso, comportamentos desejáveis que assumimos não apenas por tê-los aprendido, que seria apenas um hábito mecânico, mas porque temos a convicção de que devemos manifestá-los. Uma convicção de emoções que surge da consideração reflexiva de emoções e de razões que avalizam os hábitos de valor. Portanto, os valores são hábitos que aprendemos – comportamentos que podemos repetir –, mas que, além disso, tornamos nossos, considerando e avaliando – refletindo – as motivações que nos são oferecidas pelas emoções e pelas razões.

Puig segue refletindo sobre como são adquiridos tais hábitos de reflexão e cita um exemplo que nos é particularmente importante, as práticas socioculturais, categoria em que estão inseridas as práticas escolares. Diante disso e de tudo o que vimos discutindo no presente texto acreditamos que a escola é um espaço adequado para a prática de formação para a cidadania e para a formação em valores das crianças e jovens. Por outro lado, também nos preocupamos com questões mais práticas relacionadas a como trabalhar com a educação em valores na escola? Como fazê-lo sem deixar de lado o trabalho com os conteúdos historicamente construídos pela humanidade? Essas inquietações nos levam a questionamentos e propostas importantes para nosso trabalho, já que a educação em valores, comumente associada a práticas exclusivamente familiares, não pode ficar relacionada a antigos modelos de educação ou de valores tradicionais que enfocam a transmissão de postulados relacionados exclusivamente a questões religiosas. Para além dessa maneira de pensar, a educação em valores a qual destacamos no presente texto relaciona-se ao processo de formação de cidadãos e cidadãs e solicitam da escola a formação de sujeitos críticos, conscientes de seus direitos e deveres.

Para isso, a educação em valores precisa ser encarada como um processo, ou seja, os valores não nascem com as pessoas – não são predeterminados geneticamente – e nem são internalizados de fora para dentro do sujeito; não são apenas fruto das pressões do meio. Assim, caso a escola deseje formar eticamente crianças e jovens, é preciso entender que uma ideia torna-se um valor para alguém quando se projeta sentimentos positivos sobre essa ideia. Consequentemente, os sentimentos positivos projetados despertam a disposição de repetir os comportamentos desejáveis, não como um hábito mecânico, mas como algo que aprendemos e que, além disso, refletimos e avaliamos segundo as motivações que nos são apresentadas pelas emoções e razões (ARANTES, 2007). Acreditamos que é sobre esse processo que a escola pode intervir intencionalmente, com o objetivo de formar pessoas capazes de almejarem uma vida mais digna para todos os seres humanos. A partir disso, nosso próximo passo é buscar investigar como formar sujeitos capazes de se indignarem com as injustiças e atuarem rumo à transformação do modelo de sociedade em que vivemos? Isso é o que abordaremos a seguir.

 

 

2.3      A declaração universal dos Direitos humanos – um breve histórico

 

Após a II Guerra Mundial, foram estabelecidas, na Conferência de Yalta (Ucrânia, 1945), as bases para a construção do documento hoje conhecido como Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou DUDH, como a chamaremos daqui por diante. Nessa época, ocorreu a criação de uma organização para gerenciar as negociações relacionadas a conflitos internacionais, a Organização das Nações Unidas – ONU. O objetivo era evitar guerras, promover negociações pacíficas entre os povos e fortalecer os Direitos Humanos. Foi essa organização, a ONU, que elaborou e aprovou a DUDH em 1948 com o objetivo de apresentar “[...] uma referência moral, entre todos os países signatários, no que diz respeito ao desenvolvimento e fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos, sem nenhuma exceção.” (ARAÚJO, 2001, p.22). Do ponto de vista formal a DUDH contém, além do preâmbulo, trinta artigos, contemplando direitos fundamentais. De forma breve, pode-se dividir o documento em quatro partes. A primeira (artigos I e II) apresenta os direitos fundamentais que dão a base para todos os outros. A segunda parte (artigos IV a XV) elenca os direitos civis e políticos. Já a terceira parte (artigos XVI a XXVII) reúne os direitos econômicos, sociais e culturais. Por fim, a quarta parte (do artigo XXVII até o XXX) cita os mecanismos de manutenção dos direitos promulgados pela DUDH. Acreditando na importância desses artigos desejamos uma educação voltada para a dignidade. Para isso, almejamos a transformação das práticas escolares, para que permitam o trabalho com os direitos humanos contidos na DUDH. Contudo, antes de abordarmos a utilização da DUDH em sala de aula, é importante delimitar mais um princípio que embasa nossa proposta. Tal princípio nos ajudará a entender como se trabalhar com os conteúdos curriculares e formar eticamente as futuras gerações. É o conceito de transversalidade, como veremos a seguir.

 

 

2.4      Os princípios da transversalidade

 

O pressuposto por nós adotado de que à escola cabe o trabalho com a instrução e formação em valores das futuras gerações nos leva, consequentemente, à proposta de transversalidade de Montserrat Moreno (1998). Para a autora, os conteúdos curriculares – representantes da instrução escolar – devem ser meio para atingir a formação em valores de crianças e jovens e alcançar a melhoria da sociedade e da humanidade. Ao se perguntar sobre como podemos trabalhar com os conteúdos escolares sem ignorar as problemáticas mais atuais que visam à formação para a cidadania, a autora propõe: Uma solução viável para esse conflito é a integração dos saberes. É preciso retirar as disciplinas científicas de suas torres de marfim e deixá -las impregnar-se de vida cotidiana, sem que isto pressuponha, de forma alguma, renunciar às elaborações teóricas imprescindíveis para o avanço da ciência. Se considerarmos que estas duas coisas se contrapõem, estaremos participando de uma visão limitada, que nos impede contemplar a realidade de múltiplos pontos de vista. (MORENO, 1998, p.35)

Assim, vemos que a integração de saberes proposta por Moreno indica uma possível articulação entre as dimensões do científico e do cotidiano, no sentido de aproximar as matérias disciplinares aos temas da realidade social vivida por alunos(as). Uma das ideias centrais dessa integração é a de que, para aprender, é preciso que exista compreensão do significado do objeto estudado. A articulação entre os temas do cotidiano e os conteúdos científicos é feita, portanto, para atribuir significado às aprendizagens escolares. Com a proposta de inserção de temáticas transversais na escola, as duas dimensões do conhecimento escolar (disciplinar/científico e temas transversais/cotidiano) são consideradas complementares, pois são trabalhadas de forma entrecruzada e levam em consideração os dois objetivos da educação: a instrução e a formação. A partir disso, as aprendizagens escolares assumem como ponto de partida tais temas, chamados de transversais e baseados em contextos reais vividos pela sociedade. É nesse ponto que acreditamos ser possível lançar mão dos artigos presentes na DUDH, por serem baseados em contextos reais vividos pela sociedade atualmente. Em resumo, a proposta de um ensino transversal traz para a sala de aula o trabalho com temáticas contextualizadas nos interesses e necessidades da maioria das pessoas e expressas nos artigos da DUDH. São preocupações sociais – que podemos chamar de saberes não-disciplinares – e que estão intimamente ligadas a questões éticas de melhoria da sociedade e não a conteúdos de interesse de pequenas parcelas da população. Quando se propõe o estudo de um tema transversal que está relacionado à realidade dos estudantes, disciplinas como matemática, língua, história, artes – que continuam presentes no contexto escolar e são fundamentais ao ensino – podem adquirir maior significado. Assim, as aprendizagens escolares deixam de acontecer em um contexto distante e passam a ter relações com o que acontece cotidianamente na vida de alunos e alunas fora da instituição escolar. Em outras palavras, as disciplinas curriculares passam a ajudar no estudo de temáticas relacionadas à educação em valores, com ajuda da DUDH. As disciplinas adquirem sentido quando são estudadas para ajudar a entender as temáticas transversais retiradas do mundo em que vivem crianças e jovens em idade escolar. Portanto, o que propomos é uma contextualização dos conhecimentos escolares. Acreditamos que tal contextualização deve existir como princípio fundamental para o desenvolvimento integral de alunos e alunas. Nesse sentido, os princípios da transversalidade abrem as portas para pensarmos nossos alunos e a alunas como pessoas que interagem com o seu meio social a partir de suas vivências e do conhecimento adquirido na escola, contribuindo para a construção e desenvolvimento da sociedade.

Acreditamos que essa é uma das maneiras de contemplar o que consideramos os dois objetivos da educação: a instrução e a formação ética. A seguir, apresentaremos uma proposta possível de trabalho a partir dos princípios de transversalidade que destacamos, é o trabalho com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em sala de aula.

 

 

2.5      Educação e Direitos Humanos

 

Como já destacado, a DUDH é um documento internacionalmente reconhecido que reúne princípios relativos aos direitos fundamentais dos seres humanos. Acreditamos que o trabalho com tais princípios no cotidiano escolar pode ajudar a pensar na importância de garantir a dignidade da pessoa humana frente a situações do cotidiano que ferem tais princípios. Essa seria uma maneira de formar sujeitos éticos capazes de se indignarem com as desigualdades e injustiças que presenciamos cotidianamente em nossa sociedade. Em nossa forma de ver, abordar na escola as questões referentes aos diretos humanos é uma alternativa possível para o trabalho com a formação em valores na medida em que a prática educativa do pedagogo volta-se para a necessidade de respeito à dignidade humana. Essa é uma possibilidade de concretizar a preocupação com a função da escola na sociedade contemporânea, diante do potencial da DUDH para a discussão acerca de questões polêmicas e dilemáticas relativas a direitos e deveres do ser humano. Como colocado anteriormente, se o papel da escola não é só propiciar o conhecimento intelectual que faz parte de sua grade curricular e se a intenção é construir uma sociedade mais justa, deve-se preparar o(a) estudante para tal tarefa. Assim, acreditamos que se queremos que alunos(as) passem a agir como verdadeiros cidadãos(ãs), é necessário fazer com que a cidadania e os direitos humanos sejam vivenciados no cotidiano escolar.

Diante de tal proposta, o trabalho com os artigos da DUDH em sala de aula é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e vivência dos valores da liberdade, da cooperação, da tolerância e da paz. A vivência de tais valores acontece mediante o uso de metodologias diversificadas, que ajudem a levar alunos e alunas a se depararem com as problemáticas vividas por eles mesmos no cotidiano. É neste aspecto que consideramos importante buscar apoio nos princípios da DUDH, que trazem questões e preocupações atuais e que podem ser estudadas de forma transversal, ou seja, junto aos conteúdos curriculares. O que sugerimos é, portanto, um novo olhar sobre o papel da escola. A formação ética é considerada um dos grandes desafios da escola contemporânea. Educar não é apenas instruir, mas oferecer experiências significativas que preparem crianças e jovens para a vida em sociedade. Diante disso, o espaço escolar não pode apenas preocupar-se com a formação intelectual do educando, mas também com a sua formação enquanto ser humano autônomo e participante da vida pública da sociedade. Dessa forma, configura-se uma proposta possível de concretização da formação ética que pode ajudar a proporcionar às futuras gerações as condições para o desenvolvimento da autonomia – entendida aqui como capacidade de posicionar-se diante da realidade, fazendo escolhas, estabelecendo critérios e participação de ações coletivas. Assim, o desenvolvimento da autonomia e formação do cidadão e da cidadã tornam-se objetivos comuns a todas as áreas do conhecimento trabalhadas na escola e, para alcançar tais objetivos, é preciso que elas se articulem transversalmente. A seguir, apresentamos um exemplo de trabalho com a DUDH em sala de aula.

 

 

2.6      A DUDH em sala de aula

 

A proposta de atividade a seguir encontra-se no livro “Os Direitos Humanos na sala de Aula: a ética como Tema Transversal” (ARAÚJO e AQUINO, 2001, p. 29-33) e baseia-se no Artigo I da DUDH: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem proceder uns em relação aos outros com espírito de fraternidade.

Orientações didáticas (Com a colaboração de Marta Fuentes Rojas) Artigo: I Direito aludido: à liberdade e à igualdade Metodologia empregada: clarificação de valores Conteúdo trabalhado: discriminação racial Para o desenvolvimento da atividade sugerimos a utilização da técnica "clarificação de valores", proposta por Puig (1998). Objetivamos, com isso, que: ao se exercitarem no processo de valoração, descoberta e tomada de consciência daqueles aspectos que são importantes na sua vida, alunos e alunas tomem consciência de seus próprios valores, crenças e sentimentos, favorecendo, assim, a coerência de seus pensamentos e condutas. Iniciar a atividade solicitando que alunos e alunas relatem situações de racismo que tenham experienciado e/ou de que tenham conhecimento. Pode-se, também, apresentar um texto curto retirado de jornais ou revistas. Como exemplo de texto abordando o racismo no Brasil, apontamos um artigo publicado na Folha de São Paulo (23/8/98, p. 3-2):

 

Para "boy", racismo acontece todo dia

 

O Office-boy Gilberto Aparecido Ribeiro, 22, sorriu quando ouviu a pergunta se já havia sido vítima de preconceito racial alguma vez na vida. "Na vida? Esse negócio acontece todo dia, várias vezes por dia, cara." Sem ter que parar para pensar; Ribeiro listou rapidamente as diversas situações de discriminação que vieram à memória. "No banco, na minha rua, em qualquer loja que eu entre, na fila do ônibus, a caminho do trabalho. Tá bom, já?" Nunca pensou em ir à polícia para prestar queixa. "Para quê? Muitas vezes são os homens (policiais militares) que te tratam mal só porque você é preto." Uma das vezes foi em um ponto de ônibus, A fila, diz Ribeiro, era grande. Mas o policial que parou o carro de polícia do outro lado da rua veio em sua direção. "Ele me tirou da fila e passou a maior revista, na frente de todo mundo. Eu não tinha feito nada de errado, mas ele me humilhou grandão, mesmo assim", disse. [...] Nem em seu local mais frequente de trabalho, o banco, Ribeiro está livre do preconceito, diz. A armadilha, agora, está nas portas giratórias instaladas na entrada das agências. "Jáaconteceu um montão de vezes. Todo mundo vai entrando, vai entrando, chega na sua vez, trava. Aí é aquele negócio de tirar tudo do bolso. 'Não tem mais uma moeda? Uma chave? E todo mundo atrás, achando que você vai tirar é um trabucão do bolso. Só falta pedir para você tirar a roupa."

 

Com o texto selecionado em mãos, ou a partir dos relatos feitos, convidar os alunos e as alunas para que pensem e reflitam livremente sobre a temática abordada, Para motivar a reflexão, pode-se apresentar algumas perguntas, tais como: O que acham da situação? Alguém já experienciou situações semelhantes? Como avaliam situações como essas? Após, aproximadamente, 15 minutos de discussão, solicitar que cada aluno/a redija uma dissertação curta, de cerca de 10 linhas, expondo sua opinião sobre a discriminação relatada no texto e/ou relatos, tendo como objetivo a clarificação de seus próprios pensamentos. Em seguida, formar um círculo na sala de aula para a realização de uma plenária pelo grupoclasse. Apresentar na lousa o artigo I da DUDH e pedir ao grupo que estabeleça relações entre o artigo e a discussão anterior. Durante o debate, levar os/as estudantes a relacionarem o tema da discussão com o seu cotidiano, para que compreendam o significado que a igualdade de direitos deve ter para a vida deles e das demais pessoas. Antes de concluir esta primeira aula, pode-se dividir a turma em pequenos grupos, que se encarregarão de trazer para a aula seguinte materiais jornalísticos que retratem, por exemplo, situações de discriminação de que determinadas pessoas e/ou grupos minoritários foram vítimas, no Brasil ou no mundo. Uma possibilidade é solicitar que alguns dos grupos tragam materiais jornalísticos em que o direito de igualdade entre os seres humanos é defendido na mídia, ou que caracterizem o espírito de fraternidade que deve guiar as condutas humanas. Na segunda aula, além da apresentação do material trazido pelos grupos, é importante garantir uma discussão centrada nos três princípios presentes no artigo I da DUDH: liberdade, igualdade e fraternidade. Uma ideia interessante para enriquecer o debate é convidar uma pessoa pertencente a grupos minoritários que sofrem constantes discriminações para relatar a realidade que impera no cotidiano da sociedade.

A proposta configura-se como o início de uma atividade que deve continuar a ser desenvolvida. Percebemos que possibilita tanto o trabalho com questões éticas relacionadas ao preconceito racial no Brasil, quanto um trabalho com os conteúdos curriculares relacionados à Língua Portuguesa, na medida em que possibilita a escrita e correção de pequenos textos, além do trabalho com textos jornalísticos Assim são contemplados, de forma transversal, os dois objetivos da educação. Se continuarmos a analisar as potencialidades da proposta, veremos que é possível trabalhar ainda com o conteúdo de matemática a partir de dados estatísticos oriundos de pesquisas realizadas por alunos(as) ou também história, ao abordar questões relacionadas à formação do povo brasileiro. Enfim, assim como a proposta apresentada anteriormente, inúmeras outras aulas podem ser elaboradas a partir dos artigos presentes na DUDH, dada a riqueza de temas de relevância social contidos nesse documento. Vale à pena destacar, mais uma vez, que a proposta visa à formação de sujeitos aptos a perceberem as injustiças sociais e utilizarem os conhecimentos tradicionalmente trabalhados na escola para buscarem um entendimento de questões mais amplas, formando-se assim cidadãos e cidadãs capazes de transformar a realidade e lutar pela construção de um modelo de sociedade baseado em princípios de justiça, igualdade, equidade e solidariedade.

3       CONCLUSÃO

 

 

A formação ética de crianças e jovens pode ser promovida pela escola através da vivência de valores como a liberdade, a cooperação, a tolerância, o que pode acontecer mediante o uso dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em sala de aula. Além do uso de metodologias diversificadas – que levem estudantes a se depararem com as problemáticas vividas por eles mesmos em seu cotidiano – o que sugerimos é um novo olhar sobre o papel da escola. A formação ética para a cidadania é um dos desafios da escola contemporânea, visto que educar não é apenas instruir, mas também oferecer experiências significativas que preparem crianças e jovens para a vida em sociedade. Diante disso, a escola precisa se preocupar com a instrução intelectual do educando e também com a sua formação enquanto ser humano autônomo e participante da vida pública da sociedade. Acreditamos que, ao mesmo tempo em que instrui, é papel da escola desenvolver uma formação ética que proporcione às futuras gerações as condições para o desenvolvimento da autonomia, entendida aqui como capacidade de posicionar-se diante da realidade, fazendo escolhas, estabelecendo critérios e participação de ações coletivas. Para que esse ideal de escola seja possível, lançamos mão dos princípios da transversalidade, que nos permitem encarar os dois objetivos da escola ao mesmo tempo. Se à escola cabe o trabalho com os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade (a instrução) e também o trabalho com a formação ética das futuras gerações, não podemos deixar de lado nenhum desses dois objetivos. Assim, trabalhando transversalmente com assuntos escolhidos por sua relevância social (momento em que a DUDH tem participação essencial), podemos realizar esses dois objetivos: instruir e formar crianças e jovens, que tornam-se conhecedores da herança cultural presente nos conhecimentos científicos e também cidadãos e cidadãs aptos a exercerem sua cidadania e desejosos de uma sociedade mais justa e igualitária.

Assim, a partir do que apresentamos, o desenvolvimento da autonomia e formação do(a) cidadão(ã) torna-se o objetivo comum a todas as áreas do conhecimento trabalhadas na escola, e para alcançar tal objetivo é preciso que essas diferentes áreas se articulem transversalmente, em prol da formação para a cidadania.

Enfim, esperamos que tais idéias frutifiquem em práticas pedagógicas que busquem a formação de cidadãos(ãs) que valorizem o diálogo, a justiça, o respeito mútuo, a solidariedade, a tolerância, e lutem por uma vida digna para todos os seres humanos.

REFERÊNCIAS

 

 

•              ARAÚJO, Ulisses F.; AQUINO, Júlio Groppa. Os Direitos Humanos na Sala de Aula: A Ética Como Tema Transversal - São Paulo: Moderna, 2001.

•              BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em Preto e Branco: discutindo as relações sociais - São Paulo: Ática, 2002.

•              CANDAU, Vera Maria, et al. Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos - Petrópolis: Vozes, 1995. ;

•              SACAVINO, Susana (org.). Educação em Direitos Humanos: temas, questões e propostas - Rio de Janeiro: DP&Alli, 2008.

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