Pretendo doar uma casa para minha filha mas quero proteger seu patrimônio de possíveis "Casamentos problemáticos". É possível?

19/07/2024 às 16:52
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PROTEGER O PATRIMÔNIO é tão importante quanto formá-lo e essa preocupação deveria se fazer presente desde cedo no núcleo das famílias. Essa ideia dá tônus à nossa orientação que em sede de planejamento patrimonial sugere algumas ferramentas como a criação de uma Holding mas também a transmissão de bens via testamento e também via DOAÇÃO com a inclusão de CLÁUSULAS que podem modular de forma bem interessante a transmissão, inclusive de forma a blindar o bem recebido que pode se tornar imune a partilhas decorrentes de divórcios em casamentos ou uniões estáveis "problemáticos" ou mesmo partilhas decorrentes de um falecimento do donatário.

A doação de bens móveis e imóveis tem regras claras no Código Civil (arts. 538 a 564) que devem ser de pleno conhecimento do profissional que conduzir essa forma de planejamento patrimonial. O mestre CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA em sua emblemática obra (Instituições de Direito Civil. Vol. III. - Contratos. 2024) assim conceitua o instituto:

"Chama-se DOAÇÃO o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para os de outra, que os aceita ( Código Civil, art. 538)".

O art. 541 do Código Civil deixa claro que a doação pode ser concretizada tanto por Escritura Pública quanto por Instrumento Particular. Acompanhando a melhor doutrina, o parâmetro, quando se tratar de bens imóveis, será o art. 108 do mesmo Código que diz que a Escritura Pública será obrigatória para a validade dos negócios quando o imóvel objeto tiver valor superior a trinta salários mínimos vigentes no País:

"Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País".

Desse modo, diferentemente do que muitos ainda afirmam, haverá hipóteses em que a doação de imóveis por instrumento particular será válida dispensando-se a ESCRITURA PÚBLICA, sendo oportuno lembrar que a transferência da propriedade mesmo nesses casos só se alcançará com o registro no Cartório do Registro de Imóveis a teor do art. 1.245 do Código Civil. A recente jurisprudência do TJSP espanca as dúvidas:

"TJSP. 1007965-91.2023.8.26.0297. J. em: 17/06/2024. APELAÇÃO. Ação declaratória de anulação de Doação. (...). Doação realizada por meio de instrumento particular. (...). Validade do negócio jurídico que depende do preenchimento dos requisitos legais. Inteligência do art. 104 do CC. Doação que deve se dar por meio de escritura pública quando o imóvel tenha valor superior a 30 salários-mínimos. Requisito formal não cumprido. Invalidade da doação que deve ser reconhecida. Atribuição de valor inferior a 30 salários-mínimos no instrumento particular que não é suficiente para validar a doação. Imóvel que tem valor de mercado em torno de 200 mil reais, o qual deve ser considerado para aferição do requisito formal. (...). RECURSO DESPROVIDO".

Resta óbvio que não basta a atribuição de valor menor ao bem para encaixá-lo no permissivo legal mas sim o valor efetivo do imóvel, conforme avaliação do Poder Público naturalmente impugnável, se for o caso.

Para fins de proteção patrimonial, utilizando-se a DOAÇÃO (que inclusive pode ser feita em favor de filhos menores ou mesmo que nem nasceram ainda, se for o caso - arts. 542 e 543) duas importantes cláusulas podem ser inseridas no ato. São elas: CLÁUSULA DE REVERSÃO e CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE.

A cláusula de reversão tem base no art. 547 do Código Civil:

"Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário".

Efetuada a doação com essa cláusula haverá o retorno dos bens ao DOADOR caso o falecimento do DONATÁRIO se dê antes do falecimento do DOADOR - ou seja, os pais doando para o filho um bem com essa cláusula, se esse, casado, vier a falecer antes de seus pais doadores, o bem não se torna herança e por isso não deverá ser inventariado e partilhado com herdeiros já que antes disso, com o passamento do filho, retornou para o patrimônio dos pais (desde que vivos ainda estejam).

Os ilustres juristas KÜMPEL e FERRARI (Tratado Notarial e Registral. 2021) explicam também:

"A ocorrência da reversão consignada na Escritura depende necessariamente do falecimento do donatário anterior ao do doador, que repercute no retorno do bem ao patrimônio do doador. O donatário é um proprietário RESOLÚVEL, podendo usar e fruir do bem, questionando-se do seu poder de dispor, por ocasião da possível ocorrência da condição resolutiva, incidindo, outrossim, o disposto no art. 1.359 do Código Civil" .

Em outras palavras (e MUITO CUIDADO pois isso é importante ao se tratar com bens gravados com essa cláusula já que o proprietário resolúvel pode inclusive VENDER o imóvel que seguirá marcado com a essa característica singular) no momento do implemento da condição resolutiva o atual "proprietário" perderá o imóvel em favor daquele originário doador que estipulou com o donatário a cláusula de reversão. Pode-se pensar aqui em impedir alienações com a implementação de outra cláusula, se for o caso, que é a cláusula de inalienabilidade.

Por sua vez, a cláusula de incomunicabilidade acoplada à doação fará com que o imóvel se torne imune à comunicação oriunda do regime de bens sob o qual o donatário esteja vinculado ou venha a se vincular, desimportando se esse regime de bens seja egresso de casamento ou união estável e mesmo que seja o mais grave deles: o da comunhão UNIVERSAL de bens. Simplesmente o bem se torna insuscetível de partilha via divórcio ou dissolução de união estável, não sendo abocanhado pela "meação". A confirmação disso é expressa no art. 1.668 do atual Código Civil:

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"Art. 1.668. São excluídos da comunhão:

I - os bens doados ou herdados com a cláusula de INCOMUNICABILIDADE e os sub-rogados em seu lugar;"

Pensar nessas duas cláusulas no momento da doação é uma excelente recomendação para fins de proteção e blindagem patrimonial, sendo certo que outras cláusulas podem ser consideradas a depender dos detalhes de cada situação concreta, como recomenda a cautela apontada pelo mestre CARLOS ALBERTO DABUS MALUF (Das Cláusulas de Inalienabilidade, Incomunicabilidade e Impenhorabilidade. 2018) que assevera:

"(...) deve ficar esclarecido que a cláusula de incomunicabilidade não priva o cônjuge do direito hereditário que lhe cabe (art. 1.829, I a III, CC/2002). Como se verá em maiores detalhes ao final, a jurisprudência dominante afirma que a cláusula de incomunicabilidade só produz efeitos enquanto viver o beneficiário, podendo o cônjuge supérstite habilitar-se como herdeiro do bem clausulado".

Com toda razão o brilhante professor, como inclusive confirma a decisão do STJ em caso onde o bem recebido estava gravado apenas com a inalienabilidade (que importa em incomunicabilidade também, nos termos do art. 1.911) e não com a cláusula de reversão, infelizmente:

"STJ. REsp: 1552553/RJ. J. em: 24/11/2015. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. BEM GRAVADO COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. CÔNJUGE QUE NÃO PERDE A CONDIÇÃO DE HERDEIRO. 1. O art. 1829 do Código Civil enumera os chamados a suceder e define a ordem em que a sucessão é deferida. O dispositivo preceitua que o cônjuge é também herdeiro e nessa qualidade concorre com descendentes (inciso I) e ascendentes (inciso II). Na falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge herda sozinho (inciso III). Só no inciso IV é que são contemplados os colaterais. 2. A cláusula de incomunicabilidade imposta a um bem NÃO SE RELACIONA com a vocação hereditária. Assim, se o indivíduo recebeu por doação ou testamento bem imóvel com a referida cláusula, sua morte não impede que seu herdeiro receba o mesmo bem. 3. Recurso especial provido".

Sobre o autor
Julio Martins

Advogado (OAB/RJ 197.250) com extensa experiência em Direito Notarial, Registral, Imobiliário, Sucessório e Família. Atualmente é Presidente da COMISSÃO DE PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS da 8ª Subseção da OAB/RJ - OAB São Gonçalo/RJ. É ex-Escrevente e ex-Substituto em Serventias Extrajudiciais no Rio de Janeiro, com mais de 21 anos de experiência profissional (1998-2019) e atualmente Advogado atuante tanto no âmbito Judicial quanto no Extrajudicial especialmente em questões solucionadas na esfera extrajudicial (Divórcio e Partilha, União Estável, Escrituras, Inventário, Usucapião etc), assim como em causas Previdenciárias.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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