Litigância climática transnacional

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As mudanças climáticas decorrentes dos processos antrópicos têm, dia a dia, intensificado os debates globais que decorrem dos princípios internacionais de Direito Ambiental, dentre eles, o da responsabilidade intergeracional. O campo científico tem apontado para o risco de um colapso climático, com alterações nos regimes naturais – incluindo aumento do nível dos oceanos, chuvas e calor extremos e mudanças nos comportamentos animais. Assim, o debate acerca do futuro para as próximas gerações tornam o cenário jurídico propício para alterações e inovações.

De um lado, os espaços de decisão internacional são amplamente utilizados para debates climáticos, sobretudo sob a ótica dos Direitos Humanos. De outro lado, está se consolidando a tendência da transnacionalização da litigância judicial ambiental. Significa dizer que partes de países distintos buscam nas conexões jurídicas interestatais a solução de dilemas ambientais utilizando-se do direito doméstico aplicado em razão de conduta praticada em outro Estado.

Importante caso, decisivo para o fortalecimento da tendência transnacional, foi o de Lliuya vs RWE AG. Na oportunidade, o Sr. Luciano Lliuya, fazendeiro peruano, apresentou à Corte Alemã reclamação relacionada à atuação da RWE e os supostos impactos proporcionais das atividades da empresa nas mudanças climáticas – com o consequente derretimento de glaciares e aumento do nível da água do lago Palcacocha que poderia prejudicar sua fazenda.

Além do pedido indenizatório, Lliuya também solicitou recursos da RWE para adoção de medidas de proteção da fazenda, como a construção de diques. A parcela indenizatória e de contribuição solicitada à RWE foi de 0,47% do valor total do suposto dano, o que seria equivalente à sua porcentagem de contribuição na emissão industrial de gases de efeito estufa desde o início dos processos de industrialização.

Inicialmente, a corte alemã recusou o pedido de Lliuya por entender que eventual condenação não representaria reparação para o interesse pretendido, bem como em razão das dificuldades para valoração das contribuições das emissões de GEE – que não ocorrem em uma perspectiva linear de causalidade.

Todavia, em 2017 o Tribunal Superior Alemão admitiu a denúncia, autorizando a abertura da fase probatória, oportunidade em que será verificado se, de fato, existe o risco noticiado por Lliuya e como as emissões da RWE contribuem para o risco e para as alterações do lago glacial. Em 2023, justificado o atraso em razão da pandemia do coronavírus, os próprios juízes e peritos alemães realizaram vistoria in loco para verificar as condições do Palcacocha e da casa de Lliuya, com o agendamento de audiências para discussão dos laudos periciais – o que ainda não foi finalizado.

A admissão do processo, portanto, representou importante precedente na possibilidade de debates transnacionais e, principalmente, na possibilidade de responsabilização proporcional de empresas por eventuais contribuições nas mudanças climáticas. Mais ainda, a realização de vistoria pela Corte consolidou a possibilidade de uma atuação que, de fato, ultrapassa as barreiras domésticas dos Tribunais – a partir de uma percepção transfronteiriça dos comportamentos ambientais.

Outro caso relevante para a tendência transnacional da litigância climática foi empreendido por associações em face do Grupo Casino, sob alegação de envolvimento da rede francesa de supermercados na indústria pecuária no Brasil e Colômbia. Na oportunidade, foi alegado que, apesar da assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta em que se fixou que “todos os agentes da cadeia produtiva são responsáveis pelos danos ambientais causados com o seu consentimento”, as subsidiárias brasileira e colombiana do Grupo Casino estariam sendo abastecidos por gado proveniente de territórios indígenas e áreas desmatadas.

Em razão disso, onze demandantes pleitearam perante o Tribunal de Saint-Étienne, na França, que o grupo publique e execute plano de vigilância que identifique os riscos causados pela atividade empreendedora, bem como que compense os grupos indígenas por eventuais danos.

Em ambos os casos, e nos demais que podem se consolidar a partir da dinâmica dos litígios transnacionais, a sensibilidade preponderante reside na operacionalização de decisões de Tribunais de outros países no nível doméstico. Isto é, os desafios para compatibilização dos Direitos nacionais e resguardo da soberania ainda são uma lacuna para esse tipo de demanda – o que se soma à complexidade das discussões acerca das mudanças climáticas e dificuldades na valoração do percentual de contribuição de atividades.

Sobre o autor
Pedro Henrique Moreira da Silva

PAdvogado e professor de Direito Ambiental e Indigenista. Doutorando em Administração pela PUC-Minas, com pesquisa na área de conflitos ambientais. Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Pós-graduado em Direito Constitucional e Valoração do Dano Ambiental. 

Informações sobre o texto

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