Os ordálios de ontem e a justiça de hoje.

26/07/2024 às 17:52
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1- INTRODUÇÃO

Os Ordálios são práticas antigas utilizadas para determinar a culpa ou inocência de um indivíduo. A história é antiga e obscura: provavelmente chegaram da índia à Europa central onde foram adotados pelos povos germânicos1.

Quando os povos germânicos invadiram o resto da Europa e criaram seus reinos, o sistema germânico dos Ordálios difundiu-se para todo o continente. Tornou-se, assim, o mais comum “sistema probatório” tanto para questões penais quanto para questões civis.2

Os Ordálio eram rituais baseados na crença de que a justiça divina iria intervir e revelar a verdade sobre a culpa ou inocência de uma pessoa. Assumiam diferentes formas: imersão em água fervente; caminhar sobre brasas, duelo judicial; a prova d’agua, a prova do caldeirão fervente.

A sua adoção estava ligada à várias razões. Em primeiro lugar, a falta de recursos investigativos e técnicas jurídicas adequadas tornava difícil a obtenção de provas concretas. Nesse contexto, eram vistos como uma forma de obter uma resposta divina infalível. Além disso, a crença na justiça divina e a busca pela verdade eram valores fundamentais nas sociedades antigas, e os Ordálios eram vistos como uma forma de alcançar essa justiça.

Com o avanço do conhecimento científico e a evolução do pensamento jurídico, os Ordálios gradualmente perderam sua relevância nos sistemas de justiça. A demanda por evidências concretas e a valorização da lógica e do raciocínio lógico no processo judicial levaram ao declínio e, eventualmente, ao fim da dita prática.

É importante reconhecer o papel histórico dos Ordálios na formação dos sistemas jurídicos e compreender as razões que levaram à sua adoção. Embora essas práticas possam parecer estranhas e arcaicas aos nossos olhos modernos, elas refletem uma época em que a busca pela justiça divina era uma parte essencial da vida jurídica. O fim da prática marca um importante marco na evolução do direito, à medida que nos aproximamos de um sistema baseado em evidências sólidas e raciocínio lógico.

2-RAZÕES PARA A ADOÇÃO DOS ORDÁLIOS NAS SOCIEDADES ANTIGAS.

Apresentamos quatro razões para a adoção dos Ordálios: Falta de recursos investigativos; crença na justiça divina; valorização da decisão imparcial; tradição e costumes.

As sociedades antigas tinham recursos limitados quando se tratava de coletar provas. A falta de métodos científicos e adequadas dificultava a obtenção de evidências substanciais. Nesse contexto, os Ordálios eram vistos como uma forma de obter uma resposta divina infalível já que se acreditava que a justiça divina iria intervir e revelar a verdade sobre a culpa ou inocência de uma pessoa.

A crença em uma justiça divina era uma parte fundamental das sociedades antigas. A busca pela verdade e pela justiça era vista como uma responsabilidade divina. Os Ordálios eram considerados uma forma de alcançar essa justiça, porque se acreditava que a intervenção divina iria determinar a culpa ou inocência de um indivíduo.

Os Ordálios eram vistos como uma maneira imparcial de resolver disputas. Ao confiar na intervenção divina, acredita-se que a decisão seria imune a influências humanas e interesses pessoais. Isso ajudava a evitar favoritismos e a garantir uma decisão justa e imparcial.

Os Ordálios também eram adotados devido à sua longa tradição e significado cultural para as sociedades antigas. Esses rituais eram vistos como uma parte intrínseca da vida jurídica e refletiam os valores e crenças profundamente enraizados nas comunidades.

Ressalta-se que, embora essas razões tenham sido relevantes nas sociedades antigas, a prática foi gradualmente abandonados à medida que a racionalidade e a busca por evidências concretas se tornaram mais valorizadas nos sistemas jurídicos.

3-ORDÁLIOS COMO CULTARALMENTE RACIONAIS PARA O CONTEXTO DA ÉPOCA.

O professor Michele Tarufo entende que os Ordálios eram coerentes com a cultura da época, vejamos: “ podem parecer culturalmente racionais, no sentido de que eram coerentes com a cultura dos contextos sociais circundantes”.3 No período dos Ordálios, a vida das pessoas era circundada em um mundo místico permeado de milagres, santos, demônios, bruxas e magos. Assim, “a convicção de que o divino pudesse desempenhar um papel importante na determinação da vida dos seres humanos podia parecer profundamente justificada”4.

Nesse contexto cultural, era justificável crer que Deus intervisse na determinação do êxito de eventos importantes como as controvérsias judiciárias. E os Ordálios eram vistos como “ liturgie d`un miracle judiciare” (liturgia de um milagre judicial), que se realizava através da superação de uma prova, e não da produção probatória moderna.

Taruffo defende que os Ordálios eram funcionalmente racionais. Para corroborar o entendimento aduz que historiadores do direito medieval analisaram e discutiram diversos aspectos da racionalidade funcional dos Ordálios na sociedade e nos sistemas políticos e institucionais da época. Ressaltaram sua utilidade como instrumentos de poder coercitivo. Havia, ainda, o caráter sacramental dos Ordálios já que até 1215 os sacerdotes da igreja católica consagravam os Ordálios.

4-DA RACIONALIDADE FUNCIONAL DOS ORDÁLIOS.

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Pois bem, as partes expunham suas demandas e suas defesas à corte. Essa determinava o objeto da controvérsia e decidia quais provas deveriam ser apresentadas por qual parte. Essa sentença encerrava o trabalho dos juízes e era definitiva. Após, o Ordálio deveria ser executado de acordo com os procedimentos com o escopo de decidir qual das partes vencera. Logo o Ordálio era sempre decisivo eis que o resultado era claro: a parte que se submetia ao Ordálio devia pugnar-se da acusação que lhe fora dirigida; e as consequências positivas ou negativas da prova eram claras a quem quer que fosse.

Taruffo leciona que a prova não era dirigia aos julgadores, mas sim a outra parte: “ Em realidade, a prova não era nem mesmo dirigida à corte, sendo, pelo contrário, dirigida à parte adversa.5

Por conseguinte, havia clara funcionalidade dos Ordálios como meios para resolver as controvérsias de forma célere, simples e definitiva. E, ainda, asseguravam a aceitação do resultado da controvérsia por parte do meio social circundantes.

5-ORDÁLIOS COMO MEIO RESIDUAL

Tarufo leciona que no curso do procedimento outros meios de prova eram apresentados à corte antes que fosse pronunciada a Beweisurteil (sentença que punha fim ao trabalho da corte e determinada o cumprimento do Ordálio).

Inquirição de testemunhas, apresentação de documentos, as partes podiam apresentar juramentos sobre fato que estivessem à base da controvérsia. “ somente quando esses meios de prova não produziam um resultado claro em relação a esses fatos é que a corte emanava a Beweisurteil, por pôr fim ao procedimento através do instrumento do Ordálio- que, portanto, tinha um papel residual”6

Quando as provas permitiam a apuração da verdade dos fatos, a corte formulava decisão com base naquilo que as provas haviam sido demonstrado. Portanto, o Ordálio não era necessário.

6-PARA FINALIZAR: O QUE OS ORDÁLIOS ENSINAM À JUSTIÇA DE HOJE?

Olhar para um passado distante e ver a prática dos Ordálios, uma prática de solucionar o litígio adotada por quase toda a Europa, nos faz pensar no nosso sistema atual de resolução de conflitos.

O aumento de demandas; a demora na resolução de litígios e a cultura do litígio presente em nossa sociedade nos faz ponderar que nosso sistema de Resolução de Conflitos precisa ser aperfeiçoado.

Para aquela sociedade que adotava os Ordálios, os conflitos deveriam ser solucionados o quanto antes; e a solução deveria ser a mais justa possível. Se os meios de prova não produziam um resultado claro, então passava-se ao Ordálio.

No Brasil, prevalece a cultura do litígio, isto é, de resolver conflitos por meio do sistema judicial. Grande parte da sociedade enxerga os Tribunais como a única forma de obter justiça, o que contribui para a litigiosidade.

Pois bem, a sociedade atual deve caminhar para a cultura da pacificação, isto é, deixar paulatinamente de recorrer ao Poder Judiciário para solucionar os conflitos e adotar outros meios de resolução.

Tal orientação deve ser seguida por toda a sociedade: cidadãos, empresas, órgãos públicos, enfim, todos orientados a buscar métodos de prevenção e resolução de litígios que não envolvam o Poder Judiciário, já um tanto assoberbado com milhões de ações a gerir.

Da prática dos Ordálios podemos reter dois pontos: celeridade na solução do litígio e que a solução seja a mais justa possível. Estamos bem distantes da época dos Ordálios, mas também distantes do implemento da desejada celeridade e, talvez, distantes de decisões mais justas.


  1. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. 1ª ed: São Paulo. Marcial Pons. Pág. 19.

  2. Idem. Pág 19.

  3. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. 1ª ed: São Paulo. Marcial Pons. Pág. 20.

  4. Idem. Pág. 20.

  5. Idem ibdem pág. 22.

  6. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. 1ª ed: São Paulo. Marcial Pons. Pág. 22.

Sobre o autor
Gustavo Januário

Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil pela USP. Pós-graduando em Advocacia Pública pela Escola Superior da AGU. Aluno do curso especializado em Defensa Del Estado: curso ministrado pela ALAP:La Asociación Latino americana de Abogacías y Procuradurías de Estado. Atuação no contencioso previdenciário.

Informações sobre o texto

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