Parecer Jurídico sobre Responsabilidade civil e criminal do Estado diante de inundações e alagamentos decorrentes de chuvas intensas de verão.
Autores:
Gisele Leite Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores – POA -RS.
Ramiro Luiz Pereira da Cruz. Advogado, Pós-Graduado em Direito Processual Civil. Articulista de várias revistas e sites jurídicos renomados. Vice-Presidente da Seccional Rio de Janeiro da ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional.
Os clientes questionam se existe responsabilidade civil e criminal do Estado em face de inundações e alagamentos decorrentes de chuvas intensas de verão.
A potencialização dos efeitos de precipitações pluviométricas que significaram fortes temporais atingiu a região, causando não apenas inundações e deslizamentos de terra. Além de perdas patrimoniais, há igualmente óbitos e muitas pessoas que ficaram desabrigadas.
Há o orçamento do governo federal brasileiro no sentido de promover a prevenção e a recuperação de desastres mas, infelizmente, tem sido o menor dos últimos anos. Outras tragédias que não ceifaram vidas mas como também impossibilidade o direito à moradia. Questiona-se se diante da omissão, deve-se investigar a atuação do setor público.
É escorreito informar que o Estado não poderá ser diretamente responsabilizado em face de fortes chuva. Porém, há responsabilidade em razão de omissão administrativa na realização de obras essenciais para à prevenção e a precaução, visando a minoração de efeitos decorrentes de enchentes de águas pluviais, ainda que verificadas asfortes e contínuas chuvas não podem ser descartada.
Lembremos que tais fatos caracterizam a força maior que é capaz de romper o nexo de causalidade entre o agir da Administração Pública e os danos sofridos pelas pessoas e os consulentes, o que vem a excluir a responsabilização civil e criminal do município.
Ainda diante do fato da natureza se faz necessário que a Administração Pública que por conta da omissão, deixou de utilizar-se dos princípios da prevenção e da precaução para enfrentar os riscos que podem advir das enchentes e inundações, o queenfatiza a obrigatoriedade da ação estatal.
Ademais em áreas próximas aos rios, lagos e, locais que tradicionalmente enchem em razão das chuvas, vislumbra-se o princípio da obrigatoriedade da ação estatal que leciona que o Estado deve usar de todos os meios possíveis a prevenção de ameaças à vida, à saúde e o patrimônio de sua população.
Recordemos que o Princípio da Prevenção visa impedir a produção de danos à população, concretizando-se, que é curial a adoção das devidas cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos e de perigo de vida.
A seu turno, o princípio da precaução possui âmbito de aplicação diverso, apesar de ter idêntico objetivo ao do princípio da prevenção, qual seja, o antecipar-se à ocorrência de perigo à vida, saúde, patrimônio da população.
Impõe o Princípio da Prevenção que sejam assumidas providências acautelatórias para aquelas cujos riscos são conhecidos e previsíveis, havendo terrenos hábil e fértil nas hipóteses de riscos que sejam desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública ao comportamento mais restritivo quanto à fiscalização de licenciamento de atividades potencialmente danosas à saúde humana.
Também a falta de fiscalização quanto a irregular ocupação de áreas1 próximas aos rios, lagos e em áreas que tradicionalmente sofrem com inundações e enchentes potencializa a responsabilização civil e criminal do Estado, mesmo diante da excludente da responsabilidade civil, força maior.
A excludente de responsabilização por força maior apenas se admite nas ocorrências naturais, posto que sejam imprevistas e imprevisíveis. A doutrinadora Lúcia Valle de Figueiredo ensina que não se pode cogitar da existência de força maior quando, por exemplo, ocorram as inundações na cidade, previsíveis e que demandariam obras de infraestrutura não realizadas. (In: Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006).
Ademais, as enxurradas em tais localidades ocorridas no verão, geralmente se dão nas mesmas regiões do Brasil e podem caracterizar caso fortuito ou força maior.
a questão do deslizamento aponta José Carlos de Oliveira (1995) definiu "os deslizamentos de terras como aqueles que ocorrem pela “infiltração das águas das chuvas que minam a resistência mecânica do solo, propiciando meios para que acamada superficial procure as partes mais baixas”. Enfatiza o autor que, decorrente deste deslizamento, a lama que desce leva consigo, principalmente, as casas de famílias que residem nestes locais.
Observa, ainda, que deslizamento de terra é um fenômeno geológico que inclui um largo espectro de movimentos do solo, tais como quedas de rochas, falência de encostas em profundidade e fluxos superficiais de detritos. Os maiores danos ocasionados à população em decorrência deste tipo de desastre natural se dão pelo fato de pessoas residirem nestas áreas de encostas de morros ou até no alto deles.
Outra doutrinadora, Clarissa Ferreira Jardim, em sua obra intitulada Responsabilidade Civil do Estado diante das catástrofes naturais, in: Direito & Justiça, v.36. n.1, p. 61-82, janeiro/junho de 2010) tal situação caracterizada como força maior, capaz de excluir o nexo de causalidade existente entre a conduta da Administração Pública e os danos auferidos pela população e, capaz de excluir a responsabilidade civil do município.
O inesquecível Caio Mário da Civil Pereira (1976) anunciava que o caso fortuito é o acontecimento natural, ou o evento derivado da força na natureza, ou fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto. Por sua vez, conceitua-se força maior como sendo o damnu fatale originado do fato de outrem, como a invasão de território, guerra, revolução, ato emanado de autoridade que é chamado de factum principis, a desapropriação, o furto e, etc.
Já o Roberto de Ruggiero, por meio da tradução de Ary dos Santos aduziu que quando a imputabilidade cessa, por não ser o fato danoso dependente da vontade do agente, estamos em frente do que se chama de caso fortuito e, consequentemente, da exoneração de qualquer responsabilidade.
É pois caso (fortuito) qualquer evento não imputável, isto é, qualquer fato independente da vontade humana e, mais precisamente quando o caso se considera em relação com o não cumprimento de obrigação. Qualquer fato que a torne impossível sem culpa do obrigado. Eis que confirma o pensamento doutrinário de Exner, Gert, Biermann, Baron, dentre outros, na Alemanha, e na Itália com Coviello, De Medio (Caso fortito e forza maggiore in dir. romano), dentre outros).
O vetusto Código Civil brasileiro de 1916 em seu artigo 1.058 e ainda o artigo 393 do Código Civil brasileiro de 2002, houve-se por bem reunir como causa idêntica de exoneração do devedor e prever a absoluta resolução da obrigação.
Caio Mário da Silva Pereira conceituou-os em conjunto como o fato necessário, cujos efeitos não erampossíveis evitar ou impedir, conceito que se ajusta à noção doutrinária abrangente de todo evento não imputável, que obsta no cumprimento da obrigação, sem culpa do devedor, como revelou Aurelio Candian (Nuovo digesto italiano, Caso fortuito).
A doutrina, por outro lado, sustentou que o legislador se filiou ao conceito objetivista. São esses os requisitos genéricos para tal: a) necessariedade, pois não é qualquer acontecimento grave e ponderável, bastante para liberar o devedor, porém aquele que impossibilita o cumprimento da obrigação.
Se o devedor não pode prestar por uma razão pessoal, ainda que relevante, nem por isso fica exonerado, de vez que estava adstrito ao cumprimento e tinha de tudo prever e a tudo prover, para realizar a prestação.
Se esta se dificulta ou se torna expressamente onerosa, não há força maior ou caso fortuito; b) inevitabilidade, que requer ainda que não haja meios de evitar ou de impedir os seus efeitos, e estes interfiram com a execução do obrigado.
Arnoldo Medeiros da Fonseca (Caso fortuito e teoria da imprevisão, nºs. 69 e seguintes), às vezes, a imprevisibilidade determina a inevitabilidade, e, então, compõe a etiologia desta.
De toda sorte, trata-se de um conceito meramente negativo, pois que como ele exprime apenas uma negação da culpa, se afirma que o campo próprio do caso fortuito começa onde a culpa acaba.
Mas isso, como explicou Ruggiero, é também a única coisa possível e adequada, visto que uma determinação positiva do caso supõe que o evento tenha caracteres intrínsecos e objetivos, reconhecíveis e absolutos, quando um tal evento pode considerar-se fortuito com respeito a uma dada relação jurídica e não fortuito com relação a outra.
Quando, na verdade, se recorre, para determinação positiva do conceito, à ideia da imprevisibilidade e da inevitabilidade do evento, não se enuncia uma qualidade intrínseca e objetiva do mesmo; a imprevisibilidade e a inevitabilidade são em si essencialmente relativas e apenas se podem avaliar quando se considerem em face de dada relação, do dever da previsão que nela tinha o obrigado, da possibilidade que este tinha de evitar a eventualidade.
Afirmou ainda Ruggiero que há caso fortuito, quando, em dada relação concreta, cessa a necessidade da previsão e a obrigação de um cuidado especial para o evitar, donde resulta que a sua determinação apenas pode ser negativa.
E concluiu Ruggiero:“Ora, porque no caso fortuito (como na força maior) não há imputabilidade, o devedor que não cumpre a obrigação por ter sido causa de não cumprimento o caso fortuito, fica desde logo liberto. Dispõe, finalmente, o art. 1.226 do Código Italiano de 1865: “O devedor não é obrigado a qualquer indenização por danos, quando por virtude de uma força maior ou de um caso fortuito foi impedido de dar ou de fazer aquilo a que se obrigou, ou fez aquilo que lhe era proibido” (vide art. 1218 do Código Civil Italiano de 19422).
A obrigação igualmente se dissolve e, o devedor se liberta todas as vezes que estranha causa lhe impediu de prestar, ou porque a coisa devida se destruiu ou deixou de ser comerciável, ou porque a pessoa do devedor não pode já dispender a atividade necessária para produzir o resultado esperado, ou porque já não está na sua mão aquela omissão que constituía o interesse do credor etc., mas deve tratar-se de não cumprimento absoluto, que origine uma impossibilidade objetiva de prestar; uma impossibilidade meramente relativa e subjetiva, uma simples dificuldade, posto que grave, de prestar e que seja particular do devedor, não poderia nem liberá-lo, nem exonera-lo da responsabilidade pelos danos, em virtude do princípio fundamental, que exige que a todo custo se cumpra a obrigação e se satisfaça o interesse do credor”.
Analisando a jurisprudência pátria, há o REsp 1.701.957-SP, conforme o Relator do Ministro Hérman Benjamin, que entendeu que houve imprudente postura por parte do município envolvido.
Em outro caso, em grau de apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na APL 005761 – 11.20212.8.26.0125 entendeu, em caso em que houve a ocorrência de chuvas acima dos padrões normais, que tal situação caracterizou a força maior, capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta da Administração e os danos sofridos pelo autor e excluir a responsabilidade do município.
De toda sorte, quando houver ameaça de danos sérios e irreversíveis de degradação ambiental, a Administração tem o dever de agir, de se precaver, sob pena de ter que responder pelos danos injustos causados aos lesados, desde que admitidas suas devidas excludentes.
No tocante à responsabilização do Estado, Celso Antônio Bandeira de Mello expôs que exige-se o discrímnem de três situações diferentes, a saber: (a) casos em que o próprio comportamento, a conduta positiva do Estado é que gera o dano; (b) casos em que a lesão origina-se de uma omissão do Estado, causando um dano que tinha o dever de evitar que é a hipótese da “falta do serviço”, nas modalidades em que (b.1.) o serviço não funcionou, (b.2.) o serviço funcionou tardiamente, ou (b.3.) o serviço funcionou de modo incapaz de evitar a lesão; e (c) casos em que a atividade do Estado cria a situação propiciatória do dano, porque expôs alguém a risco (seu comportamento ativo entra como causa mediata do dano).
Percebe-se que a omissão da Administração Pública não se aplica a teoria do risco. Trata-se de comprovação de culpa não se admitindo a teoria do risco integral. Nessa tese, o prejuízo suportado pelo particular é consequência do funcionamento, seja regular ou não do serviço público.
Com o fito de atenuar da responsabilidade objetiva constitucional, o notável Hely Lopes Meirelles acenou com a discriminação do conceito de risco, apesar de receber a oposição de doutrinadores como Alcino Falcão (Responsabilidade patrimonial das pessoas jurídicas de direito público, RDP 11: 45).
A teoria do risco integral faz surgir a obrigação de indenizar os danos, do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração, não se exigindo qualquer falta do serviço público, nem culpa dos seus agentes; basta a lesão, sem o concurso do lesado; baseia-se esta teoria no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais.
Nesse sentido, entendia Hely Lopes Meirelles que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral:
“Nesta a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo da vítima”; no risco administrativo embora se dispense a prova da culpa da Administração Pública, permite-se que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização.
Percebe-se, portanto, que a teoria do risco administrativo apesar de dispensar a prova de culpa da Administração Pública, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir ou atenuar a indenização, o que não aconteceria no caso de risco integral, modalidade extrema de risco administrativo, e segundo o qual a Administração fica obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima., para excluir e atenuar a indenização, o que não aconteceria no caso de risco integral, modalidade extremada do risco administrativo, e segundo o qual a Administração fica obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima.
Ressaltaram os doutrinadores Mário Marzagão e Otávio Bastos que essas teorias jamais foramacolhidas em toda sua plenitude.
A teoria do risco administrativo fora adotada doutrinariamente, sendo a que melhor se adequa à noção de responsabilidade civil do Estado, acrescentando-se que, na legislação brasileira, a Administração Pública pode ser responsabilizada na forma de risco integral apenas quando praticar dano ambiental, na forma do artigo 14 da Lei 6.938/1981 e artigo 225, terceiro parágrafo da CF/1988, ou dano nuclear, nos termos doartigo 21, XIII, alínea d da CF vigente.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estava em consonância com a doutrina majoritária, entendendo que a teoria adotada por nosso ordenamento jurídico, como regra, foi a do risco administrativo, a qual, conforme já dito, admite que o Estado demonstre, em sua defesa, a presença de causa excludente da responsabilidade (AgR no AI 577.908/GO, AgR no Ai 636.814/DF).
Data maxima vênia, no entanto, que em havendo omissão do Estado não há que cogitar na teoria objetiva. O caso é de comprovação ou não de culpa, sendo caso de aplicação da teoria subjetiva.
Outro doutrinador de escol, Sérgio Cavalieri Filho in Programa de Responsabilidade Civil conclui que a responsabilidade subjetiva do Estado não fora totalmente abolidada ordem jurídica brasileira.
A regra é a responsabilidade civil, fundada na teoria do risco administrativo, sempre que o dano for causado por agentes do Estado, nessa qualidade; sempre que houver uma relação de causa e efeito entre a atuação administrativa (comissiva ou por omissão específica) e o dano.
Há omissão específica, como diz Guilherme Couto de Castro (A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro, 1977, pág. 37), quando o Estado por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento
Salienta Sérgio Cavalieri Filho, resta, todavia, espaço para a responsabilidade subjetiva (por omissão genérica), nos fatos e fenômenos da natureza, determinando-se a responsabilidade da Administração, com base na culpa anônima ou falta de serviço, seja porque este não funcionou, quando deveria normalmente funcionar, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente.
Segundo a lição de Bandeira de Mello quando houver essas hipóteses, o Estado incorre em ilicitude, por não ter atuado para impedir dano ou por haver sido insuficiente neste objetivo, em face de comportamento inferior ao padrão legal exigível.
Portanto, se a catástrofe pluviométrica é previsível e recorrente, principalmente, em certas localidades, instaura-se um dever de agir de forma a evitar, prevenir e precaver-se.
Corrobora tal entendimento o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que já decidiu,no Recurso Especial 549.812/CE, Relator Ministro Franciulli Netto, DJ, de 31.5.2004,que no campo da responsabilidade civil do Estado, se o prejuízo se deu em face de omissão do Estado, invoca-se, então a teoria da responsabilidade subjetiva.
Outra responsabilidade identificável é a decorrente de omissão de socorro, por falta de iniciativas na remoção de moradores em áreas afetadas e de risco havendo até a vertente criminal no caso de omissão socorro, onde o Ministério Público de São Paulopode buscar acordos de não persecução penal com fixação de valores a serem revertidos para a população necessitada e sofrida. Trata-se de crime próprio.
No artigo 135 do Código Penal3 revela o egoísmo erigido em delito e pode ser realizado por qualquer pessoa, não sendo necessário que haja precedente dever jurídico de assistência ou guarda em relação ao sujeito passivo, ao contrário do tipo penal de abandono.
Há uma violação do dever moral de solidariedade e de assistência. A prestação de socorro a lesionados, sobre ser um dever moral de assistência e solidariedade, constitui um dever jurídico (JUTACRIM 49/190).
O dever de assistência é, naturalmente, limitado pela possibilidade e capacidade individual, determinando-se estas diante das circunstâncias do caso concreto. O socorro a que está obrigado o sujeito é somente aquele que, por sua capacidade e as circunstâncias vigentes, lhe foi possível prestar.
Não exige a lei que o sujeito pratique ato privativo de médico, por exemplo, pela morte se esta necessitava de tratamento especializado, impossível de ser ministrado no hospital onde trabalhava (RT 514/386). Mas o socorro há de ser imediato, pois a demora ou a dilação importa o descumprimento do dever imposto por lei (RT 541/426).
Sublinhe-se que o sujeito ativo do crime de omissão de socorro positivado no artigo 135 do Código Penal brasileiro é qualquer pessoa. Por sua vez, o sujeito passivo pode ser: criança abandonada ou extraviada (menor que não seja capaz de autodefesa), pessoa inválida ou ferida, ao desamparo; qualquer pessoa, em grave ou iminente perigo.
Pessoa inválida é a pessoa incapaz de prover à própria segurança e subsistência, em razão da idade ou ainda moléstia. Estará a vítima, nessas situações, em situação de desamparo, abandonada e sem cuidado.
Para Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III), criança é pessoa que não tem condições de autodefesa por imaturidade e pessoa inválida é aquela que “por condição pessoal, de ordem biológica, física ou psíquica, como doença, defeito orgânico, debilidade ou velhice, não dispõe de forças para dominar o perigo”.
Sendo assim é mister que a pessoa esteja ao desamparo, que “precisando de auxilio que a livre do perigo à incolumidade pessoal, é deixada entregue a si mesma, ao acaso”, ou em grave e eminente perigo, que é grave e iminente quando há ameaça à vítima de modo notável de um resultado lesivo que está para ocorrer, de risco imediato.
A conclusão sempre didática do doutrinador Damásio Evangelista de Jesus que lecionou para quem “a melhor interpretação do art. 135 do CP é aquela que indica qualquer pessoa em grave e iminente perigo como sujeito passivo de omissão de socorro, não se exigindo que seja inválida ou esteja ferida”.
Outra é a posição doutrinária é de Aníbal Bruno (Crimes contra a pessoa, 3ª edição), que pondera que “mas por mais conforme que pareça essa conclusão com o espírito que inspira a atitude do Direito, na hipótese, a redação do dispositivo legal não permite esse entendimento. Ao desamparo e em grave e iminente perigo são condições que qualificam pessoa inválida ou ferida”.
O tipo objetivo envolve deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, ou em não pedir socorro à autoridade pública, ao deparar com a vítima.
Enquanto a força maior é vista como o risco não intrínseco, sendo aquele que realmente impede o cumprimento da obrigação assumida.
Para o doutrinador Flávio Tartuce, o caso fortuito se caracteriza como evento totalmente imprevisível e a força maior como evento previsível, mas inevitável.
A distinção entre força maior e caso fortuito só teria de ser feita, só seria importante, se as regras jurídicas a respeito daquela e desse fossem diferentes, então, ter-se-ia de definir força maior e caso fortuito, conforme a comodidade da exposição. Não ocorrendo tal necessidade, é escusado estarem os juristas a atribuir significados que não têm base histórica, nem segurança em doutrina.
Lamentável é que, em vez de se fixarem conceitos, se perca tempo em critério ao sabor pessoal dos escritores (e.g. impossibilidade relativa, o caso fortuito, impossibilidade absoluta, na força maior, como em A. Colin e H. Capitant (Cours élémentaire de Droit Civil, II, 4ª. ed., 10 s.).
Por demais interessante é o posicionamento de Aguiar Dias, que elogia o critério misto encontrado na clássica lição de Arnoldo Medeiros da Fonseca, composto de inevitabilidade e da ausência de culpa. Entretanto, na frase imediatamente posterior atesta, com precisão, “Isso, para nós, pode ser simplificado ainda mais radicalmente: o que anima a causa de isenção no seu papel de dirimentes é, em última análise, a supressão da relação de causalidade.
Esta noção atende melhor ao que se pretende expressar com a noção de caso fortuito ou de força maior e prova, do mesmo passo que a ausência de culpa não satisfaz como critério capaz de caracterizar essas causas de isenção.”
Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
Sabe-se que há divergência, no Direito Brasileiro, a respeito da culpa como requisito essencial para a verificação da mora. Não se enfrentará, nos limites deste artigo, essa discussão. Entretanto, o que é absolutamente consensual é a possibilidade de a mora ser observada a partir de comportamento culposo do devedor.
Apoiando a teoria objetiva, José de Aguiar Dias, alicerçado em Fernando Pessoa Jorge, declara não estar correta a afirmação segundo a qual o caso fortuito ou de força maior começa onde a culpa termina.
A doutrina parece não atentar para uma esdrúxula consequência sistemática que adviria da adoção dessa afirmação, que vincularia um imediato e inexorável aparecimento do caso fortuito ou de força maior à ausência de culpa do indigitado responsável: a perda do principal conteúdo eficacial da teoria da responsabilidade civil objetiva.
Com efeito, a importância sistemática da responsabilidade civil objetiva concentra-se exatamente nas hipóteses em que o ato do ofensor não é caracterizado como uma conduta culposa, mas também não se observa nenhuma excludente de causalidade.
O pensamento é de fácil compreensão: se a culpa, juntamente com os demais requisitos da responsabilidade civil, for comprovada, a responsabilidade civil subjetiva é mais do que suficiente para gerar o dever de indenizar do ofensor; se o caso fortuito ou de força maior for verificado, nem mesmo a responsabilidade civil objetiva teria o condão de gerar o dever de indenizar.
Portanto, o campo normativo onde se observa a importância eficacial máxima da responsabilidade civil objetiva ocorre exatamente em hipóteses de inexistência de culpa e de caso fortuito ou de força maior, quando o dever de indenizar somente será observado pela incidência da teoria objetiva ao caso concreto.
Em algumas situações, essa noção pode parecer sedutora, como nos casos de engenharia, em que a atitude irrepreensível (isenta de culpa) do engenheiro, que mesmo assim resulta em um desmoronamento de uma barragem, poderia sugerir ao intérprete à ideia de um evento necessário e inevitável como causa para os danos observados, isto é, se não há culpa do engenheiro, o desastre somente poderia ser causado por um caso fortuito ou de força maior. Este pensamento, contudo, está eivado de mácula insanável, como será explicado no corpo do texto.
Em relação à recente pandemia da Covid-19, imagina-se que poderia ser enquadrado dentro da categoria de fortuito interno a contaminação de paciente, internado por motivos outros, em hospitalque recebe grande número de pacientes infectados com o coronavírus, ainda que todas as precauções sejam tomadas.
O mesmo poderia ser verificado em relação a funcionário de mercados que atendam ampla quantidade de pessoas, ainda que a diligência nos cuidados com a pandemia seja irrepreensível.
Mesmo que se pudesse argumentar, diante da imaculada conduta do hospital ou do mercado, que a contaminação das vítimas foi “inevitável”, não se pode admitir a alegação de existência de caso fortuito ou de força maior, pela falta do requisito da exterioridade. Nessas hipóteses, se a teoria da responsabilidade civil objetiva for aplicável, impor-se-á o dever de indenizar.
Judith Martins-Costa considera que o fortuito interno é o “fato inevitável que se liga a organização da empresa”, lembrando que o furto de um talão de cheques na saída de umestabelecimento bancário e o assalto ocorrido no estacionamento de um shopping center também podem ser considerados como fortuitos internos. Fernando Noronha parece concordar com opinião aqui transcrita, quando afirma que “Pode haver responsabilidade resultante de uma atuação não culposa, mas causal em relação ao dano, nas hipóteses de responsabilidade objetiva.”.
Aponta Arnoldo Medeiros da Fonseca, “equivocam-se aquele que pretendem existir uma categoria de acontecimentos por si mesmos constitutivos de força maior.
A concepção que aceitamos recusa-se a admitir esse critério apriorístico, exigindo, em cada caso, o exame dos fatos.”Agostinho Alvim ilustra este pensamento afirmando que o assalto a mão armada pode se constituir em caso fortuito ou de força maior, quando o assaltando surpreende o devedor no momento que este transportava o objeto da prestação.
Não ocorreria o caso fortuito se o devedor de alta soma de dinheiro mantivesse o numerário em sua casa, podendo facilmente evitar o assalto mantendo o dinheiro em instituição bancária.
Seguindo este pensamento e ratificando a lógica encontrada no art. 399 do Código Civil, o art. 6º do PL 117942, que institui o Regime Jurídico Emergencial Transitório4, impede a “construção” de impossibilidades retroativas, pois os contratos que poderiam ter sido bem cumpridos na data aprazada contratualmente não serão extintos por um caso fortuito ou de força maior somente observado em momento posterior.
A essa categoria de concausalidade, ainda podemos identificar ampla variedade de abordagens por parte dos autores nacionais. JudithMartins-Costa trata a concausalidade como gênero, apontando a coautoria e a causalidade concorrente como espécies.
Segundo a doutrinadora, a concausação se divide em dois grandes grupos: (i) o que deriva daconvergência objetiva e subjetiva, então importando em coautoria; (ii) e a que deriva da mera convergência objetiva, havendo várias ações que se conjugam, embora os seus autores tenham operado de forma independente, as causas atuando de forma paralela. Nesse último caso não há coautoria, sendo o fenômeno também denominado de “concorrência causal” ou “causalidade concorrente”, de modo que se pode falar em concausação (gênero) e coautoria e concorrência causal ou causalidade concorrente (espécies).
Há intensa discordância em relação a possibilidade do caso fortuito ou de força maior em sentido estrito possuir tal relação com a concausalidade. Entende-se que as hipóteses clássicas de caso fortuito e força maior não se prestam a dirimir responsabilidade, ou seja, somente admite-se a sua natureza de excludente.
Aguiar Dias aludiu ao Acórdão da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que - tendo como objeto ação de responsabilidade civil do Estado, suscitada pela ruína de edifício por ocasião de costumeiras chuvas torrenciais - decidiu pela concorrência de causas, a saber: culpa da administração, culpa de terceiro e força maior, caracterizada pelas chuvas torrenciais.
Como indenização, o acórdão estabeleceu que os réus deveriam pagar vinte por cento da reparação, deixando que as vítimas suportassem os oitenta por cento (80%) restantes, já que causados por força maior e, portanto, impossível de serem imputados à vítima ou aos réus.
Ao comentar a aludida decisão, Aguiar Dias afirma que: “A fundamentação do julgado flutua entre o reconhecimento e a desfiguração da força maior, de excludente, que é, para causa concorrente.
A jurisprudência francesa também conhece julgados que vão ao encontro da decisão do tribunal fluminense. É nesse sentido que a Corte de Cassação, em 10 de março de 1948, após a destruição de uma cidade por uma tempestade, resolveu repartir a responsabilidade entre os construtores responsáveis e a própria tempestade.
Na mesma linha, tem-se o caso do naufrágio do navio Lamocrière, no qual a Corte de Cassação repartiu a responsabilidade do dano, responsabilizando a empresa transportadora em apenas um quinto do prejuízo, pois o restante do dano havia sido causado por um ciclone e por defeito do carvão utilizado no barco.
Os exemplos citados explicitam a importância do tema o atual momento, pois a disseminação de um novo vírus poderia também ser considerada uma causa semelhante a eventos naturais, como a tempestade, ou aos chamados fatos do príncipe.
Entretanto, imperioso notar que esses julgados representam casos absolutamente isolados na jurisprudência francesa, que tem afastado essa hipótese de aplicação do caso fortuito e da força maior. Ainda, segundo William Prosser e W. Page Keeton, a jurisprudência americana segue o mesmo rumo dos julgados franceses.
Deste modo, ou o caso fortuito é observado e torna inexpressiva a conduta do réu dentro do processo etiológico (improcedência da ação de reparação), ou não existe prova suficiente do caso fortuito e o agente repara o dano de forma integral.
Em todos os outros casos em que várias causas conhecidas ou determinadas concorrem para a causação do mesmo dano, tem-se a incidência da regra do parágrafo único do art. 942 do Código Civil, que determina a responsabilidade solidária dos concausadores. Esta regra coloca a vítima em posição privilegiada, pois possui a prerrogativa de escolher, entre os concausadores do dano, aquele que detém as melhores condições pecuniárias para arcar com a indenização.
A responsabilidade civil advinda de atividades lícitas é raramente admitida, comprovando a eficácia da legítima defesa e do exercício regular do direito para exonerar a responsabilidade do causador do dano. Nessas hipóteses, o ato do ofensor não é contrário ao direito, pois a “a previsão hipotética do dano vem inserida em norma permissiva”, isto é, há casos de “intromissões permitidas” nos direitos alheios.
Por força do artigo 929 do Código Civil, contudo, o mesmo não ocorre com o estado de necessidade, pois “não é justo que o terceiro, em quem recai o resultado do ato necessário, sofra o prejuízo, para permitir que dele se livre aquele a quem o dano foi dirigido”.
O direito pátrio, portanto, impõe o dever de indenizar para aquele que causa danosem estado de necessidade, ainda que lhe seja permitida a ação regressiva contra o terceiro que causou a situação de perigo, nos termos do art. 930 do Código Civil vigente.
Destaque quanto as fortes chuvas, que desde novembro de 2021 vem atingindo diversos estados em regiões diferentes do país, e acabam causando enchentes e alagamentos, e com variados níveis de dano.
Nuns onze Estados da Federação brasileira em 2022 foram afetados por alagamentos e enchentes, e torna-se impossível pensar nesse fenômeno natural sem atrelá-lo ao gigantesco impacto humano e econômico. Segundo levantamento da revista Exame (2022, online), na Bahia, por exemplo, 93.646 pessoas estão desabrigadas, enquanto 26(vinte e seis) acabaram por falecer, fora as outras 518quinhentas e dezoito) feridas e 715.634 que foram prejudicadas em algum nível.
E a tragédia se repetiu em janeiro de 20245. Apesar de tanta previsibilidade meteorológica e administrativa.
Definir o conceito de responsabilidade civil nos moldes brasileiros é voltar-se para a análise do artigo186 do Código Civil, que dispõe sobre o ato ilícito, elencando que comete ato ilícito aquele que agir ou omitir-se voluntariamente, ou atuar com negligência ou imprudência, resultando em violação de direito ou em dano.
Da definição acima, tem-se a culpa como um dos elementos presentes no artigo 186 do Código Civil, o que culminou na defesa da teoria de que não haveria responsabilização do agente causador do dano sem a presença desse elemento. Contudo, no atual ordenamento jurídico brasileiro, convivem dois regimes de responsabilidade civil: a subjetiva e a objetiva.
A propósito, interpretando os conceitos civilistas pela ótica do Direito Administrativo, tem-se a responsabilidade objetiva do Estado a partir da existência de um fato administrativo que resulta em um dano, sendo necessária a prova de nexo causal entre ambos.
Conforme ensina a doutrinadora Di Pietro (2023) fato administrativo ocorre quando o fato produz efeitos no Direito Administrativo. No caso em questão, esta é a conduta do agente público, seja por ação ou omissão. A responsabilização do Estado pela teoria objetiva demanda, portanto, que se identifique a conduta relevante da administração pública, quer seja comissiva ou omissiva.
O dano é a existência de lesão a um bem jurídico pertencente à vítima, podendo ter natureza patrimonial ou extrapatrimonial. O bem material é aquele economicamente auferível, quantificável, enquanto a extrapatrimonial deriva da existência de direitos personalíssimos, como a honra e a imagem. (GONÇALVES, 2021)
Por fim, comprovar o nexo causal é demonstrar a relação entre a conduta do agente público e a existência do dano ao bem jurídico.
Apesar de os artigos 43 do Código Civil e 37§6º da Constituição Federal de1988 se complementarem no sentido de permitirem a responsabilidade civil do Estado, a doutrina diverge quanto à possibilidade desse tipo de responsabilização nos casos de omissão, por não haver previsão expressa nos dispositivos destacados.
Doutrinadores como Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello, entendem que o art.37§6º da Constituição Federal restringe a teoria objetiva às condutas comissivas, pois a omissão estatal não seria a causadora do dano, e que o descumprimento do dever de impedir o dano seria um ato ilícito culposo, o que implica na teoria subjetiva aplicada à omissão. (Di Pietro, 2023)
Existe ainda uma terceira corrente doutrinária defendida por Sergio Cavalieri Filho, Guilherme Couto de Castro e Rafael Carvalho Rezende que faz distinção entre omissão genérica e específica:"Para a doutrina que elabora tal distinção, na omissão genérica existe indagação a respeito de dolo ou culpa, e para a omissão específica basta o nexo de causalidade, equivalendo à responsabilidade por atos comissivos." (COPOLA ,2013).
Essa corrente apoia-se na interpretação de que o dispositivo constitucional em comento não faz distinção entre ação e omissão, apesar de não negar a posição de Di Pietro, que entende que a omissão não gera dano.
Contudo, o entendimento de Cavalieri Filho e Rafael Rezende é de que há distinção entre a omissão caracterizada pela inação (omissão genérica), e a omissão caracterizada por um descumprimento de dever jurídico (omissão específica). Logo, há configuração de responsabilidade objetiva por omissão nos casos em que o dano era previsível e evitável, mas o Estado permaneceu inerte. (REZENDE, 2021)
Como exemplo, o autor supracitado usa como exemplo de distinção a ocorrência de um crime.
O Estado não é responsável direto pelos crimes ocorridos em seu território. Contudo, a omissão diante de constantes notificações de crimes num mesmo local gera o dever de reparação. (REZENDE, 2021).
Portanto, aceitando a distinção entre as duas omissões, a atribuição de responsabilidade ao Estado depende da comprovação do nexo causal entre omissão estatal (fato administrativo) e o evento que resultou em dano, sendo desnecessária a aferição de dolo ou culpa.
Seguindo adiante, é chegada a hora de apontar o aparato legal que configura o nexo causal entre a ineficácia do Estado e os danos decorrentes das enchentes urbanas.
Importante destacar e definir o que seja inércia estatal diante do problema das enchentes. Mormente, leia-se por tomar apenas medidas paliativas ou emergenciais periodicamente, sem resultados definitivos que solucionem os danos causados em uma área afetada e sua respectiva população.
Ou seja, não pode o ente público se esquivar de sua responsabilidade por ter adotado medidas meramente de curto prazo, nessa situação, a inércia não significa ausência absoluta de ação, mas ineficácia de resolver o problema definitivamente.
Nesse sentido, também se apresenta a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/12) que, inclusive, dispõe em seu artigo 2º, §2º: "A incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco".
Assim, por mais remota que seja a probabilidade, o Estado tem o dever de agir, ainda mais quando o cenário encontrado não é de incertezas, mas de episódios que se repetem anualmente.
Retomando a citação do artigo 225, caput, da Constituição Federal, cumpre trazer à discussão princípio norteador da atuação estatal diante de matérias ambientais, qual seja, o princípio da prevenção, que determina ao Estado o dever de afastar riscos ecológicos com antecipação de medidas para inibir danos ao meio ambiente. (JARDIM, 2010).
Consequentemente, diante do perigo de graves danos ambientais, a exemplo de uma enchente ou inundação6, tem o Estado o dever de agir e proteger os administrados, pois estes são injustos passíveis de indenização.
Neste caso, a quebra de tal princípio gera o ônus ao Poder Público de se responsabilizar objetivamente pelos danos causados, pois, conforme Jardim (2010), "Se o dano restar ocorrido, a omissão será o nexo causal do prejuízo, efetivando, portanto, o direito à reparação patrimonial e/ou moral por parte do ente estatal".
Em muitos casos, as inundações e enchentes são resultados direitos da própria Administração Pública, como quando há falha nas tubulações de escoamento, sistema de drenagem de água ineficaz fruto de crescimento urbano sem planejamento, ou como consequência do efeito da impermeabilização indiscriminada do solo urbano, que pode ser conceituada da seguinte forma:
"[…] uso de asfalto, que fazem com que as águas, que antes eram filtradas pelo solo, passem a ser deslocadas para os rios ou córregos, que não possuem capacidade suficiente para receber tal volume de água, e acabem por transbordar, inundando as imediações, causando, portanto, danos à população." (JARDIM, 2010).
Já é pacífico na jurisprudência que nos casos de danos à particulares decorrentes das enchentes opera a responsabilidade objetiva do Estado, mais precisamente do ente municipal, competente pelas obras de escoamento de água.
Vide o julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que em sede do Recurso Inominado 0078893-48.2019.8.21.9000, julgado em 27/3/2019, considerou o standard probatório atendido em razão da ausência de obras por parte da prefeitura aptas a evitar o transbordamento da água.
Para finalizar as citações dos dispositivos legais que explicitam a responsabilidade objetiva do Estado perante os danos oriundos das enchentes e alagamentos, deve-se partir agora para a norma mais precisa nesse sentido, qual seja, a Lei do Saneamento Básico (Lei nº. 11.445/2007), definidora das diretrizes nacionais para a matéria.
Em seu artigo 2º, inciso III, estabelece como princípio fundamental a ser seguido na prestação do serviço público de saneamento básico: "abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de forma adequada à saúde pública, à conservação dos recursos naturais e à proteção do meio ambiente".
Em seguida, no inciso IV: "disponibilidade, nas áreas urbanas, de serviços de drenagem e manejo das águas pluviais, tratamento, limpeza e fiscalização preventiva das redes, adequados à saúde pública, à proteção do meio ambiente e à segurança da vida e do patrimônio público e privado".
Assim, mesmo em casos excepcionais como ocorrentes durante a pandemia de coronavírus, a obrigação do Estado em mitigar, evitar e remediar os danos é patente. Além de que, o alto teor da previsibilidade descaracteriza a excludente de responsabilização.
É o parecer: defende-se a tese de ser juridicamente possível e necessário o pagamento de indenização aos cidadãos que porventura sofram danos físicos, patrimoniais ou de qualquer natureza em razão dos efeitos da chuva no solo urbano, tal qual foi observado no Brasil.
Referências
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Yussef Said Cahali ainda aponta que, mesmo tendo esse transbordamento, e consequente inundação, ocorridos em virtude de forte chuva, a destruição das construções ribeirinhas deve ser acolhida pelo instituto da responsabilidade civil do Estado." Porém, ainda cita o autor que o fator fundamental para estes desastres está na “impermeabilização indiscriminada do solo urbano”, tais como uso de asfalto, que fazem com que as águas, que antes eram filtradas pelo solo, passem a ser deslocadas para os rios ou córregos, que não possuem capacidade suficiente para receber tal volume de água, e acabem por transbordar, inundando as imediações, causando, portanto, danos à população. Conrado Rodrigues Segalla vai mais além, e disserta que esses fatores, aliados à doutrina da responsabilidade objetiva do Estado, atribuem ao ente municipal o dever de agir com a finalidade de evitar ou atenuar os efeitos danosos deste tipo de catástrofe. Em caso negativo, demonstrada a omissão do Poder Público, deve este ressarcir os danos aos administrados, tese esta também adotada, praticamente nas mesmas palavras, por Yussef Said Cahali (Responsabilidade civil do estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007)."︎
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Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta em morte.
Curiosamente, o Código Criminal do Império brasileiro de 1830 não previa o crime de omissão de socorre, ao passo que o Código Penal republica de 1890 somente a criminalizava quando a vítima fosse recém-nascido ou menor de sete anos ex vi o artigo 293, §4º, ao contrário do Código Penal Italiano de 188, ou Código Zanarelli já contemplava essa figura delituosa.︎
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Lei 14.010, de 10 de junho de 2020.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14010.htm Acesso em 15.1.2024.︎
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Vide as manchetes dos jornaisin: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/01/14/chuvas-deixam-dois-desaparecidos-alaga-hospital-e-fecha-avenida-brasil.ghtml
https://cor.rio/municipio-do-rio-entrou-no-estagio-3-as-22h45-deste-sabado-13-01-2024/
https://iclnoticias.com.br/temporal-no-rj-enchente-invade-casas-e-cobre-carros-em-varias-cidades/ Acesso em 15.1.2024.︎
Segundo Clarissa Ferreira Jardim sobre as diversas causas da inundação "nunca semprea produção de danos ocasionados por um desastre natural está relacionada ao fato natural". Nos casos de inundações por transbordamento de córregos, compete ao Município sua canalização e conservação. Em caso de danos decorrentes das falhas de vazão das águas pluviais – tendo o Poder Público conhecimento de tais erros, sem tomar providências com o intuito de evitar ou abrandar as consequências –, vindo a ocorrer lesão ao administrado, deverá o ente municipal ser responsabilizado, principalmente pela sua falta de serviço.︎