Regularização fundiária urbana.

Análise da sua importância como instrumento assecuratório dos direitos à propriedade e à moradia

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Resumo: Diante do número vultoso de imóveis informais existentes no Brasil, surge a necessidade de compreender acerca do assunto de regularização imobiliária. Assim, problematiza-se: qual é a importância da Regularização Fundiária Urbana como ferramenta utilizada pelo Poder Público para garantir os direitos à propriedade e à moradia? Para tanto, o objetivo central será percorrer os ditames da Lei n° 13.465/2017, sendo que os objetivos específicos ramificar-se-ão quanto à análise conceitual e histórica sobre esse aparato regulador; o conceito dos direitos fundamentais abordados e, por último, a relação entre tais objetos de estudo. A hipótese sustentada é que a implementação efetiva desta legislação não apenas assegura direitos fundamentais, mas reverbera no âmbito econômico, facilitando a inserção desses bens no mercado imobiliário formal e, por conseguinte, ampliando o acesso ao crédito. A metodologia utilizada será bibliográfica e documental, por intermédio dos métodos dedutivo e qualitativo. O artigo justifica-se jurídica e socialmente posto sua capacidade contributiva em evidenciar a importância da Regularização Fundiária Urbana na garantia dos direitos à propriedade e à moradia, inclusive, para que os cidadãos tenham ciência de suas garantias legais.

Palavras-chave: Regularização Fundiária Urbana. Propriedade. Moradia. Dignidade Humana.


INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 proclama o direito inalienável de todo cidadão à propriedade, consagrando-o como um dos pilares fundamentais da sociedade. Em paralelo, a garantia universal do direito à moradia emerge como um alicerce para a dignidade da pessoa humana.

É nesse contexto que a Regularização Fundiária Urbana se revela como um instrumento transformador na relação entre o Estado e aqueles que habitam áreas irregulares, na medida em que viabiliza o alcance da dignidade da pessoa humana.

A complexa teia de disparidades sociais, enraizada desde os tempos coloniais, encontra na Regularização Fundiária Urbana não apenas um mecanismo de reparação, mas uma via promissora para a construção de um futuro mais equitativo.

Surge, então, a indagação central que guiará esta pesquisa: qual é a verdadeira importância da Regularização Fundiária Urbana como ferramenta utilizada pelo Poder Público para garantir os direitos à propriedade e à moradia.

Neste viés, importa salientar que esse instrumento atua como intermediador na relação entre o Governo e aqueles com habitações irregulares, uma vez que, por meio desse aparato, os indivíduos terão um título de propriedade, bem como uma moradia digna, uma vez que o Estado terá o dever de tutelar os bairros regularizados, principalmente com obras de infraestrutura, ações de segurança pública, dentre outras políticas governamentais.

Ao desvendar essa questão, pretende-se não apenas analisar a legislação vigente, notadamente a Lei 13.465/2017, que instituiu a REURB, mas também explorar a flexibilização dos princípios registrários, refletindo a dinâmica contemporânea dos cartórios.

A hipótese sustentada é que a implementação efetiva desta legislação não apenas assegura direitos fundamentais, mas reverbera no âmbito econômico, facilitando a inserção desses bens no mercado imobiliário formal e, por conseguinte, ampliando o acesso ao crédito.

Dessa forma, já é possível introduzir que tal instrumento se enquadra até mesmo como um mecanismo de reparação das disparidades sociais advindas desde o período colonizador! Logo, de forma geral, a utilização ampliada desse mecanismo será capaz de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos como um todo.

Quando esses moradores irregulares possuem a propriedade de uma unidade habitacional e se enquadram nos requisitos necessários, existe a possibilidade de obter a posse legal, o que, do ponto de vista econômico estrutural, servirá de garantia de que tal propriedade existe de fato.

O objetivo geral do presente estudo consistirá em perquirir a Regularização Fundiária Urbana, inclusive a forma como é disposta legalmente pela norma 13.465/2017, a qual implementou a REURB, observando que, atualmente, existe certa flexibilização dos princípios registrários, podendo ser citada até a formalização existente nos cartórios.

Já os objetivos específicos ramificar-se-ão em três: primeiro, explanar os vieses conceitual e histórico acerca do aparato aqui estudado; em segundo lugar, precisa-se compreender a concepção principiológica dos direitos à propriedade e à moradia; e, por fim, correlacionar o entendimento acerca do papel assecuratório da Regularização Fundiária Urbana em face das garantias fundamentais supramencionadas.

Nesse cenário, a justificativa social desse instrumento transcende a mera regularização documental, configurando-se como um agente transformador, capaz de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos como um todo. Ao conferir propriedade legal e promover segurança jurídica, esse mecanismo não apenas cumpre sua função pragmática, mas também desempenha um papel crucial na reparação de disparidades sociais historicamente perpetradas.

Especialmente levando-se em consideração o fato de que na sociedade urbana os imóveis são ainda mais disputados em relação à melhor localização e infraestrutura, fazendo com que o caso se torne mais complexo. Isso porque a terra é um bem essencial à vida, sendo que todos merecem acesso a ela, como fonte de moradia, segurança, economia e dignidade da pessoa humana.

O motivo social se consolida ainda mais pela necessidade da formalização de propriedade principalmente à população de baixa renda, a fim de que a prestação do governo com infraestrutura básica seja estendida à íntegra populacional.

No que se refere a justificativa jurídica, esta pesquisa se propõe a aprofundar a compreensão normativa atinente ao tema, especialmente nas esferas cível e constitucional, enquanto simultaneamente visa informar e capacitar os cidadãos que, muitas vezes, possuem apenas um "contrato de gaveta", desprotegidos quanto a sua real propriedade. Em meio à complexidade do tema, este estudo busca lançar luz sobre a essencialidade da REURB para diversas áreas sociais.

Como metodologia adota-se o tipo bibliográfico e documental, arcabouçado em artigos científicos, dispositivos legais, cartilhas públicas, dados oficiais e referências online. Nesta senda, nota-se diversificação de fontes primária e secundária, bem como a interdisciplinaridade de matérias como História, Direito e Economia, conferindo, assim, elevado grau de confiabilidade nas informações aqui trazidas.

Ademais, a análise será estruturada sob o método dedutivo e qualitativo, pois a Lei nº 13.465/2017 servirá como panorama geral para constatação de um caso específico/particular, qual seja: como a Regularização Fundiária Urbana configura-se como um instrumento assecuratório dos direitos fundamentais.

Partindo da perspectiva abordada, conclui-se que introduzir esse tema em poucos parágrafos revela-se árduo, tendo em vista a essencialidade da matéria para tantas áreas sociais! Motivo pelo qual revela-se necessário percorrer detalhadamente cada um dos objetivos específicos deste Trabalho, conforme segue adiante.

1. NOÇÕES GERAIS SOBRE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA

1.1 Conceito de regularização fundiária urbana

A Regularização Fundiária Urbana, em suma, objetiva a integração formal de ocupações clandestinas, bem como que seus ocupantes sejam titularizados como proprietários. Dessa forma, esse instituto busca dissipar a clandestinidade das ocupações dentro de uma cidade.

Nesse sentido, segundo a Oficiala de Registro de Imóveis em Minas Gerais, Ilma. Michely Freire Fonseca Cunha, afirma que

A Lei nº 13.465/2017 define a Regularização Fundiária de Imóveis Urbanos (REURB) como um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. (CUNHA, 2023, p. 496)

De mais a mais, verifica-se que a clandestinidade ocupacional não atrapalha apenas a formalização de uma propriedade e, consequentemente, sua existência na esfera jurídica e econômica, mas obsta também o papel do Estado em garantir direitos básicos, como a infraestrutura do local, a exemplo: água, luz, asfalto, calçamento e assim por diante.

Nessa perspectiva, impera ressaltar que a vigente Constituição Federal em seu artigo 182 positiva o fato de que a política de desenvolvimento urbano possui justamente a finalidade de garantir o bem-estar de seus habitantes, ordenando, assim, a função social para a qual as cidades foram instituídas.

Art. 182, da CF/88.  A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Tal entendimento também está presente na Lei nº 13.465/2017, mais especificamente em seu artigo 10, inciso VIII, com vistas a corroborar a essencialidade de regularizar os terrenos urbanos como forma de assegurar os direitos fundamentais das populações.

Art. 10. Constituem objetivos da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

VIII- ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes

Outrossim, a realização da REURB em determinada cidade não exige, como condição ‘sine qua non’, que seja publicada lei municipal determinando esse instrumento. A própria Lei n° 13.465/2017, em seu artigo 2°, já se intitula como autoaplicável em todo o território nacional.

Nesse sentido, é analisado que compete a cada município a função de realizar essa regularização, encontrando soluções para incentivar os moradores a regularizarem seus imóveis, a fim de que seja propiciada a função social da cidade aliado ao fato de sustentar aos habitantes maior bem-estar, incluindo o ponto atinente à infraestrutura básica citada anteriormente.

Partindo de uma perspectiva ainda mais detida da norma, percebe-se que o “bem-estar” desse indivíduo, que vivencia o processo de Regularização Fundiária Urbana, surge após conseguir o título de propriedade do bem, pois terá a satisfação não apenas em relação à formalização de sua ocupação, mas, especialmente, por um viés psicológico, ou seja, de se sentir mais pertencente à sociedade capitalista, através da detenção de um título.

Dessa forma, conceituar a Regularização Fundiária Urbana não é apenas afirmar ser uma intervenção estatal com o intuito de regularizar assentamentos. Afinal, a partir de um estudo mais apurado, depreende-se ser até mesmo um mecanismo capaz de proporcionar e garantir princípios constitucionais importantes para os seres humanos em sua individualidade e coletividade.

Além de contribuir para a cadeia econômica quando inspira nos recém-proprietários um espírito capitalista e detentor de posse, bem como ao formalizar um novo imóvel no mercado imobiliário, o qual poderá ser transacionado em negociações jurídicas, comerciais e creditícias.

De maneira contínua, há que se destacar a existência da regularização voltada para o interesse social, denominada como REURB-S e destinando-se aos indivíduos de baixa renda, que por isso são isentos de custas e emolumentos decorrentes do procedimento, assim como a regularização de bens específicos, configurando a REURB-E. Isto posto, a Lei n° 13.465/2017 elucida nitidamente ambas as modalidades:

Art. 13. A Reurb compreende duas modalidades:

I - Reurb de Interesse Social (Reurb-S) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal; e

II - Reurb de Interesse Específico (Reurb-E) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na hipótese de que trata o inciso I deste artigo.

Nesse contexto, apenas à guisa de informação, em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou dados de que mais de 5 milhões (5.127.747) de domicílios no Brasil estão localizados em assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades ilegais, mocambos e palafitas. Portanto, depreende-se que a REURB é um instrumento a ser viabilizado em vários tipos de ocupações, apto a alcançar inúmeros moradores.

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1.2 Histórico latifundiário e monocultor do Brasil

O doutrinador Antonino Moura Borges esclarece que o Brasil fora colônia de exploração por Portugal do período de 1530 a 1822. Sendo que, quando do desembarque das primeiras expedições colonizadoras no país, os colonizadores verificaram que a área era demasiadamente extensa.

Conforme Borges, nessa época, todas as terras do Brasil eram públicas e pertencentes ao Reino de Portugal por direito de conquista.

Tudo aqui no Brasil foi considerado propriedade da Coroa Portuguesa pelo direito de conquista. [...] Ditas terras deixaram de ser consideradas res nullius para passar a propriedade do Reino de Portugal e consequentemente, surgiu a necessidade de ocupação e colonização. (BORGES, 2005, p. 101)

Esse mesmo doutrinador assevera que, por conta da extensão territorial, a Metrópole decidiu dividir o território em grandes faixas de terras denominadas Capitanias Hereditárias, as quais foram doadas aos donatários, que eram integrantes da classe nobre e/ou militares e, em sua totalidade, homens de confiança da Coroa Portuguesa.

Aliás, segundo o escritor Leandro Ribeiro da Silva (DA SILVA, 2008, p. 69), fora a partir dessa modalidade das capitanias hereditárias que surgiu a propriedade privada no Brasil.

Outrossim, na linha de seu estudo, denota-se que os donatários tinham autonomia para cederem frações de suas capitanias para que outros indivíduos pudessem explorar economicamente a terra, lotes esses chamados de sesmarias. Diante disso, não bastava apenas o apreço nobre do indivíduo, como também deveria ter capacidade financeira para explorar a terra, recorrendo à mão de obra escrava, estando a terra, mais uma vez, concentrada e restrita a poucos indivíduos.

Em 1822, a Lei das Sesmarias fora revogada e, alguns anos depois, em 1850, entra em vigor a Lei de Terras, disciplinando acerca da necessidade de aquisição financeira de tais áreas, fazendo com que, novamente, o problema da distribuição justa não fosse resolvido, já que as porções agriculturáveis continuaram se fixando nas elites agrárias.

Isso porque somente esses tinham condições para pagar pelo local, excluindo, assim, a maioria da população que não tinha recursos para tanto, não possuindo outra alternativa a não ser venderem sua mão de obra.

O sociólogo e historiador Raymundo Faoro tece observação de suma importância sobre como a organização estrutural das sesmarias refletiu na dinâmica de ocupação de terras dos dias atuais, já que, mesmo com o declínio do referido sistema, as propriedades somente circulavam entre os detentores de elevado capital econômico, seja pela compra e venda ou pela sucessão hereditária.

O regime das sesmarias gera, ao contrário de seus propósitos iniciais, a grande propriedade. [...] muito se deve ao influxo da escravidão e ao aproveitamento extensivo da pecuária, fatores que se aliam ao fato de que, para requerer e obter sesmaria, era necessário o prévio prestígio político, confiada a terra, não ao cultivador eventual, mas ao senhor de cabedais ou titular de serviços públicos. [...] Tantas foram as liberalidades nas concessões de sesmarias [...] que, em 1822, não havia mais terras a distribuir. [...] O fim do regime das sesmarias estava, mesmo antes da Resolução de 17 de julho de 1822, decretado pelos fatos – a exaustão dos bens a distribuir fecha um período histórico. Daí por diante, em lugar dos favores do poder público, a terra se adquire pela herança, pela doação, pela compra e, sobretudo, pela ocupação – a posse, transmissível por sucessão e alienável pela compra e venda. (FAORO, 2012, p. 464/465)

Ainda percorrendo a linha cronológica do Brasil, Faoro nota que a partir do século XX ocorreu a Revolução Industrial no país, configurando-se como uma nação de industrialização tardia, tendo em vista que as nações europeias já tinham iniciado a ruptura com o sistema feudal desde o século XVIII.

Assim sendo, o historiador aponta que a transição da manufatura para o trabalho industrial oportunizou que os trabalhadores do meio rural, que estavam servindo aos grandes latifundiários, pudessem se deslocar até as cidades a procura de emprego nas novas indústrias, a fim de conseguirem melhores condições de vida no meio urbano. Esse translado em massa recebeu a nomenclatura histórica de “êxodo rural”, que serviu de mola propulsora ao processo de urbanização brasileiro.

Não obstante, em face do deslocamento em grupo numeroso e da falta de preparação das urbes para receber tantos moradores, os historiadores e geógrafos asseveram ter havido a formação de uma “macrocefalia urbana”. Sobre o tema, o antropólogo James Holston cita que:

Com a elevação da urbanização e o surgimento das periferias urbanas, os brasileiros não só se mudaram em massa para as cidades como também uma grande parte do povo urbano ganhou pela primeira vez o acesso à terra como proprietários. (...) a posse em geral resulta de um complexo processo de legitimação, no qual a ocupação ilegal é ao mesmo tempo o único meio de acesso à terra para a maioria dos cidadãos e, paradoxalmente, uma ilegalidade que inicia a legalização de reinvindicações de propriedade. (HOLSTON, 2013, p. 158/203)

A fim de corroborar esse ponto de vista, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que o índice de urbanização no Brasil, em 1940, era um pouco mais de 26%. Enquanto, em 1980, alcançou 70%.

Isso já revela o quanto as cidades recém-formadas ficaram superlotadas e com má administração de espaços, tendo em vista a rapidez de deslocamento das pessoas da área rural para a urbana e a falta de estrutura para recebê-las. Nesse sentido, o geógrafo Milton Santos explica que

A macrocefalia urbana é a massiva concentração das atividades econômicas em algumas metrópoles que propicia o desencadeamento de processos descompassados: redirecionamento e convergência de fluxos migratórios, déficit no número de empregos, ocupação desordenada de determinadas regiões da cidade e estigmatização de estratos sociais, que comprometem substancialmente a segurança pública urbana. (SANTOS, 1979)

Isto é, muitas cidades brasileiras não foram planejadas e, por conta disso, apresentam ruas apertadas, calçadas irregulares e, consequentemente, as moradias da classe de baixa renda foram construídas em encostas de morros, afastadas da região central e com pouca (ou nenhuma) infraestrutura.

Facilmente pode-se detectar que as diversas formas de assentamentos precários, como favelas, cortiços, loteamentos clandestinos e moradias irregulares são produtos das assimetrias e distorções do desenvolvimento urbano brasileiro, o qual, como visto, caracteriza-se como reflexo do histórico agrário colonial.

Por muito anos não houve atenção governamental voltada à acomodação dos segmentos pobres da população, tornando esse povo reiteradamente vilipendiado e explorado por sua mão de obra como insumo do progresso da sociedade capitalista industrial.

O romancista Aluisio Azevedo, através de sua obra “O Cortiço” e, utilizando-se de sua licença naturalista, escola literária da época, retrata a realidade das moradias brasileiras há mais de um século, com foco nas condições precárias existentes na modalidade habitacional de um cortiço, que é marcado pela concentração excessiva de moradores, com menor disponibilidade de espaço e instalações sanitárias comuns.

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (AZEVEDO, 1997, p. 12)

Indubitavelmente é uma triste realidade até os dias de hoje, não sendo o que o legislador constituinte imaginou para a efetivação da dignidade da pessoa humana aos seus legislados. Como visto inicialmente, o desenvolvimento da nação brasileira ocorreu a partir de uma estrutura latifundiária e monocultora, acumulando o poder de grandes áreas nas mãos de poucos detentores.

Neste diapasão, a dinâmica quanto ao início da ocupação nacional torna-se relevante para demonstrar que a divisão de propriedades no meio rural tornou-se um reflexo para a distribuição de assentamentos no meio urbano, justamente por ter havido fomentação quanto à desigualdade social.

Construindo, assim, grandes desafios a serem enfrentados hodiernamente, tendo em vista a crescente necessidade de efetivação dos direitos e garantias fundamentais aos cidadãos brasileiros.

1.3 O desempenho da regularização fundiária a fim de reparar raízes históricas advindas do sistema de capitanias hereditárias e sesmarias

Nesse ponto é que surge a Regularização Fundiária Urbana como aparato hábil a integrar socialmente os indivíduos historicamente relegados e ocupantes de áreas informais, imbróglio tido por herança do sistema latifundiário que remonta ao período colonizador.

Indubitavelmente é possível concluir pela necessidade histórica de reparar as disparidades sociais advindas desde a época do sistema de Capitanias Hereditárias e Sesmarias, os quais foram implementados, inicialmente, pela Coroa Portuguesa.

Isso ocorre porque nenhum espaço, e/ou forma de exploração dele, desaparece por completo. Na realidade, ficam os vestígios relativos à ocupação, conforme pensamento do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre:

Nenhum espaço chega a desaparecer por completo; nenhum espaço é abolido sem deixar rastros. Mesmo Troia, Susa ou Leptis Magna persistem como espaços superpostos, ocupados pelas sucessivas cidades. (LEFEBVRE, 2013 [1974], p. 63)

Diante desse cenário, a REURB desempenha papel essencial na regularização e redistribuição da terra urbana, pois muito se fala dos conflitos de posse existentes nas áreas rurais, mas há que se ressaltar a problemática existente nas cidades, as quais são produto da concentração de propriedades agrárias.

Ademais, a formalização dos assentamentos assegura os direitos fundamentais à propriedade e à moradia, fornecendo acesso a serviços e infraestrutura adequados, melhorando a qualidade de vida dos habitantes.

O instrumento também auxilia na redução da especulação imobiliária, uma vez que esse fenômeno ocorre, na maioria das vezes, diante da ausência de regularização, o que acarreta o aumento dos preços dos lotes/imóveis. Sendo assim, a formalização e, consequente, redução dessa prática comercial exploratória, torna a moradia mais acessível à população em geral.

De mais a mais, há que ser acrescido o desenvolvimento urbano sustentável, uma vez que existirá o incentivo à utilização efetiva da terra e a integração de políticas públicas de planejamento urbano, habitação social e preservação ambiental, evitando construções em encostas de morros e demais localizações que tragam prejuízos tanto para os indivíduos quanto para a natureza, o que resulta em cidades mais compactas, acessíveis, inclusivas e ambientalmente responsáveis, em que todos terão um espaço urbano de qualidade!

Ainda mais, fortalece a participação cidadã dos moradores, posto que aqueles legalmente reconhecidos adquirem mais voz nas decisões que afetam suas comunidades e podem se envolver mais ativamente no planejamento e na gestão urbana.

2. DO ESTUDO CONCEITUAL DOS DIRETOS FUNDAMENTAIS APLICADOS AO TEMA

2.1 Direito individual à propriedade e seus reflexos na economia

O próprio fato de existirem ocupações irregulares já revela afronta ao conteúdo consagrado na Constituição Federal de 1988, justamente porque o legislador constituinte elegeu a dignidade da pessoa humana como princípio basilar.

Nesse sentido, o direito individual à propriedade configura-se como uma garantia relevante já que não se encontra consagrada apenas no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal de 1988, como também no artigo 17 da Declaração Universal de Direitos Humanos.

Art. 5°, CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade.

Art. 17, DUDH. Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Do ponto de vista conceitual, o Código Civil, nos termos do artigo 1.228, dispõe que o proprietário possui poderes de usar, gozar, dispor e reaver sua propriedade. Ademais, o diploma civilista de 2002 atribui à propriedade noções sociais e solidárias, posto sua interação com os demais indivíduos e com a própria urbe em que o imóvel se encontra localizado.

Analisando sob uma perspectiva histórica, ter uma propriedade é condição natural do homem, remontando desde os primórdios em que tal “título” referia-se a frutos, árvores, animais caçados e ferramentas, até hodiernamente em que ser proprietário de um bem, principalmente imóvel, gratifica o labor do indivíduo, concedendo-lhe reputação social e segurança.

No que tange à maneira com que a efetivação da propriedade acarreta reflexos no cenário econômico do país, há que se salientar destaque feito pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis de Belo Horizonte- MG, Ilmo. Fernando Pereira do Nascimento:

A regularização fundiária traz benefícios múltiplos, pois promove o desenvolvimento urbano e social da área atingida, incrementa a arrecadação do município e permite a geração de crédito lastreado em garantia real, com menores taxas de juros, ou seja, movimenta toda a economia do município.

Outrossim, de acordo com a explicação de Rodrigo Gonçalves, Membro da Comissão de Direito Imobiliário da Barra da Tijuca – OAB/RJ, a partir do momento em que esses bens forem incorporados formalmente aos proprietários e ao município, tem-se que haverá a formação do fato gerador para que o Fisco seja credor de impostos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto de Renda (IR).

Partindo-se dessa perspectiva, considerando atuação proba, de boa-fé e melhor gestão dos recursos públicos, evidencia-se o retorno da verba dos impostos em forma de melhorias para a própria comunidade.

Analisando as garantias para o cidadão “recém-proprietário”, denota- se maior segurança, na medida em que evita possíveis disputas acerca do imóvel; valorização do seu patrimônio; melhor qualidade de vida; e, nos casos em que era ausente, haverá presença dos serviços básicos de infraestrutura.

Com frequência essa consolidação da propriedade acarreta incentivo ao indivíduo para reformar sua casa, promovendo a movimentação da economia regional, na medida em que gera oportunidades de trabalho aliado à compra de materiais, fato esse que também gerará créditos tributários para o Fisco, tendo em vista o necessário recolhimento do Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISS-QN), no caso do prestador de serviço contratado, e Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), no caso das empresas do ramo de construção civil.

2.2 Direito social à moradia e sua relação com a urbe

O espaço é uma mercadoria! E esse produto social é capaz de demonstrar, na prática, quais são os movimentos de opressão que vigoraram em determinado momento histórico, conforme visto inicialmente, no caso do Brasil, fruto de colonização de exploração, concentração de terras, industrialização tardia, êxodo rural, entre vários outros acontecimentos.

Atinente à dialética espacial, filósofo e sociólogo Henri Lefebvre aduz que:

O Espaço! Não faz muitos anos que esse termo tão somente evocava um conceito geométrico, o de um meio vazio. Nos círculos instruídos, era acompanhado por algum epíteto culto, como ‘euclidiano’, ‘isotrópico’ ou ‘infinito’. Em geral, pensava-se que o conceito de espaço englobava a matemática —e somente ela. (LEFEBVRE, 2013 [1974])

Fato é que a moradia digna deve ser assegurada a todo ser humano, constituindo-se como garantia fundamental consagrada no artigo 6° da Constituição Federal da República de 1988.

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Pressupõe uma postura proativa por parte do Estado em efetivá-la, ou seja, não deve ser vista apenas formalmente e sim, sua aplicação e garantia na prática, por isso, caracteriza-se como pertencente aos direitos humanos de segunda geração.

Aliás, o artigo 23, inciso IX, da CF/88 assevera ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção de construção de moradias, em consonância com a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Logo, a moradia a ser assegurada pelo Estado deve constituir as condições para uma habitação digna, oferecendo-se serviços de infraestrutura, acessibilidade, ambiente equilibradamente sustentável, segurança e demais qualificações para existência e desenvolvimento sadio dos habitantes.

3. DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA COMO INSTRUMENTO ASSECURATÓRIO DOS DIREITOS À PROPRIEDADE E À MORADIA

O filósofo grego Aristóteles caracterizou o ser humano como um “animal racional”, composto de razão, mas também de desejos. Sendo que, para esse pensador clássico, a cidade é o melhor local em que o indivíduo pode aprimorar e atender a esses seus dois lados.

Isso porque a finalidade precípua da cidade consiste na convivência harmônica e no bem-estar de todos, visando distanciar-se da selvageria e dos atos estúpidos típicos de sociedades primitivas e nômades.

Essa teoria aristotélica ganha ainda mais sentido ao longo dos anos, já que na urbe visualiza-se acesso aos serviços de saúde, educação, segurança, oportunidades de trabalho e lazer, os quais, ao menos formalmente, são garantias aptas a trazer felicidade aos moradores.

Como visto, o grande impasse relacionado à efetivação dos direitos fundamentais à propriedade e à moradia concentram-se justamente perquirindo a história de colonização, sistema latifundiário e industrialização tardia ocorridos no Brasil.

Nesse viés, nota-se que a regularização fundiária é um importante instrumento jurídico para garantir a todos o direito fundamental a uma moradia digna, para que possam de fato fruir do seu direito à cidade, a qual, nos termos aristotélicos, seria a única forma de o ser humano alcançar sua felicidade. As autoras Claudia Mansani de Toledo e Carolina Mokarzel acrescentam que

No intuito de alcançar o efetivo exercício social à moradia e o cumprimento da função social da propriedade em todos os seus aspectos, o legislador conferiu a função social ao imóvel, de onde o Estado há de tutelar, oferecendo parâmetros, aquele que dá uma destinação adequada ao imóvel urbano. (DE TOLEDO e MOKARZEL, 2015, p. 17)

Portanto, urge mencionar que o conjunto de peculiaridades relacionadas à propriedade e à moradia necessitam de um instrumento jurídico específico para implementá-las de forma eficaz e especializada, como se revela o instituto da REURB.

Neste diapasão, para finalizar tal raciocínio, a juíza auxiliar da Corregedoria do TJCE, Dra, Juliana Sampaio de Araújo, afirma que

Seria necessária uma regularização da situação fundiária, ou seja, da posse (dessas unidades habitacionais), num primeiro momento, para que inclusive esses proprietários possam ter acesso ao crédito. São imóveis que existem, que são transacionados na base da informalidade. E se essas pessoas precisarem de um financiamento para obter um crédito para iniciar um negócio, por exemplo, elas precisam dar aquele imóvel como garantia.

É essencial relacionar e ressaltar a importância da implementação da Lei nº 13.465/2017, tornando mais desburocratizada e acessível o processo de regularizar um imóvel urbano, posto ser um excelente instrumento para assegurar os direitos fundamentais vistos anteriormente, quais sejam: propriedade e moradia.

Ao longo do presente estudo, fora possível confirmar o problema e hipóteses apresentados a título de introdução, posto que, através de embasamentos jurídicos e doutrinários, conclui-se que a legitimação fundiária assegura os direitos fundamentais à propriedade e à moradia, por facilitar a conversão de um local precário em uma habitação digna, além de atender ao princípio basilar já mencionado: a dignidade da pessoa humana.

4. CONCLUSÃO

Diante da análise minuciosa dos tópicos discorridos ao longo deste trabalho, torna-se evidente a relevância da Regularização Fundiária Urbana como instrumento fundamental para assegurar os direitos à propriedade e à moradia, além de promover o desenvolvimento social e econômico das áreas urbanas.

Inicialmente, foi explorado o conceito da REURB, destacando sua importância na integração formal de ocupações clandestinas e na titulação dos ocupantes como proprietários legítimos. A clandestinidade das ocupações não apenas dificulta a formalização da propriedade, mas também impede o acesso a serviços básicos e infraestrutura adequada, prejudicando o bem-estar dos habitantes e a função social das cidades.

Ao revisitar o histórico latifundiário e monocultor do Brasil, foi compreendido como a distribuição desigual de terras e a concentração de propriedades nas mãos de poucos contribuíram para a formação de áreas urbanas precárias e informalidades habitacionais.

Nesse sentido, surge a regularização fundiária como um instrumento para reparar essas raízes históricas de desigualdade e exclusão social, buscando integrar socialmente os indivíduos historicamente marginalizados.

No estudo conceitual dos direitos fundamentais aplicados ao tema, foi ressaltada a importância do direito individual à propriedade e do direito social à moradia, ambos consagrados constitucionalmente, com relação ao acesso à propriedade formal e ao direito à moradia digna, condições adequadas de habitação e infraestrutura urbana.

A análise dos reflexos econômicos do aparato em epígrafe demonstrou como esse processo pode impulsionar o desenvolvimento urbano e social, gerando arrecadação para o Município, incentivando o investimento privado, e promovendo a geração de empregos e o crescimento econômico local.

Por fim, foi enfatizada a importância da regularização fundiária como instrumento assecuratório dos direitos à propriedade e à moradia, possibilitando a conversão de áreas precárias em espaços urbanos dignos e inclusivos. Sendo que a implementação eficaz da Lei nº 13.465/2017 torna-se essencial para desburocratizar e facilitar o processo de formalização.

Diante do exposto, conclui-se que a Regularização Fundiária Urbana é um elemento crucial para a construção de cidades mais justas, inclusivas e sustentáveis, onde todos os cidadãos possam desfrutar plenamente de seus direitos e viver com dignidade.

Logo, é um instrumento de avanço e garantia dos direitos fundamentais à propriedade e à moradia, bem como revela-se importante para múltiplas áreas: reparação das disparidades sociais, redução da especulação imobiliária, desenvolvimento urbano sustentável, fortalecimento da participação cidadã nos recém-proprietários e movimentação da economia.

5. REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Leonardo Pereira Martins

Advogado associado “Martins Pereira Advogados” e Professor no Instituto Luterano de Ensino Superior de Itumbiara, orientador na disciplina de TCC2, Mestre em Ciência e Tecnologia de Biocombustíveis na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Assessor do Tribunal de Justiça de Goiás

Larissa Palma Pacheco

Graduanda em Direito pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA︎. Atuante em escritório de advocacia. Apaixonada pela área de Direito Imobiliário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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