Feiras do Rolo e o Crime de Receptação: Uma Análise Jurídica e Social

Resumo:

- O artigo aborda a relação entre as "feiras do rolo" e o crime de receptação, destacando como esses locais se transformaram em mercados para produtos ilícitos, facilitando a circulação de bens roubados.
- A receptação é definida no artigo 180 do Código Penal Brasileiro, abrangendo tanto a receptação dolosa quanto a receptação culposa, e está intrinsecamente ligada à existência de um crime antecedente.
- Os impactos sociais e econômicos da receptação são profundos, afetando a economia formal, prejudicando comerciantes legais e contribuindo para a perpetuação da criminalidade, sendo fundamental um esforço conjunto para reprimir e prevenir essa prática ilícita.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: Este artigo faz uma abordagem sobre o crime de receptação no contexto das “feiras do rolo”, um fenômeno comum em diversas cidades brasileiras, examinamos como esses pontos de comércio popular foram, ao longo do tempo, ressignificados como lugares para a comercialização de produtos de origem criminosa. Além de analisar o dispositivo 180 do Código Penal e seus desdobramentos dentro desse contexto. As feiras do rolo, inicialmente concebidas como espaços de venda de produtos usados e troca de mercadorias, transformaram-se em mercados onde bens provenientes de atividades ilícitas encontram fácil circulação. Esta mudança de função social das “feiras do rolo” reflete um problema complexo que envolve aspectos jurídicos, desafios na repressão policial e profundas implicações sociais e econômicas.

O artigo está dividido em quatro partes principais para facilitar o entendimento. Primeiramente, apresentamos uma breve história das feiras do rolo, contextualizando seu surgimento e evolução. Em seguida, discutimos a tipificação do crime de receptação conforme previsto no artigo 180 do Código Penal Brasileiro. Na terceira parte, analisamos os dados sobre o crime de receptação no Brasil, destacando tendências e desafios enfrentados pelas autoridades. Finalmente, concluímos dando contorno as implicações entre as feiras do rolo e o crime de receptação, abordando os impactos sociais e econômicos, bem como as dificuldades na repressão dessa prática ilícita.

Palavras-chaves: Código Penal, Criminalidade, Feiras do Rolo, Informalidade, Receptação.

1.Introdução

As chamadas “feiras do rolo” são mercados populares informais que se diferenciam de outras “feiras livres” pela comercialização de uma vasta gama de produtos a preço bem abaixo do preço de mercado e, em sua maioria, sem possuir comprovação de origem. Com o passar do tempo, essas feiras, que inicialmente serviam como espaços para escambo, troca e venda de produtos usados, tornaram-se pontos críticos para a receptação de bens roubados. A relação entre as feiras do rolo e o crime de receptação é intrínseca e multifacetada, evidenciando-se através da dinâmica de compra e venda que ocorre nesses ambientes.

Desde o início, é importante esclarecer que a intenção deste texto não é criminalizar as chamadas feiras de troca, feiras da sulanca, feiras do rolo, entre outras denominações que possam ter dependendo da região, mas sim destacar como esses mercados podem ser usados para comercializar produtos provenientes de atividades criminosas. Além disso, pretendemos alertar os consumidores sobre os riscos envolvidos na compra de mercadorias nesses locais, pelos motivos que serão discutidos ao longo do artigo.

Neste diapasão, é inegável que a informalidade das “feiras do rolo” cria um cenário propício para a circulação de mercadorias de origem ilícita. A ausência de fiscalização rigorosa e a dificuldade de rastrear a procedência dos produtos comercializados facilitam a venda de itens roubados, conforme vinculado na impressa (DIA, 2017). Segundo relatórios policiais e estudos acadêmicos, uma parte significativa dos produtos oferecidos nessas feiras, como eletrônicos, ferramentas e bicicletas, provém de furtos e roubos. Este ambiente informal e desregulado atrai tanto os pequenos receptadores, como também as redes do crime organizado, que encontram nesses espaços uma via eficiente para escoar seus produtos ilegais. (PÚBLICA, 2023).

Além disso, a cultura das “feiras do rolo” está profundamente enraizada em várias comunidades urbanas brasileiras, onde a prática é vista como uma forma legítima de comércio. Esta aceitação social dificulta a repressão policial, pois a compra de produtos baratos e de segunda mão é comum e socialmente tolerada. Muitas vezes, os consumidores não questionam a origem dos bens adquiridos, contribuindo, mesmo que indiretamente, para a perpetuação do ciclo criminoso.

Para além dos outros desdobramentos, a relação entre as feiras do rolo e o crime de receptação também tem implicações econômicas e sociais significativas. Do ponto de vista econômico, a circulação de produtos roubados afeta negativamente o mercado formal, prejudicando comerciantes que operam dentro da legalidade e pagando impostos. Socialmente, a presença dessas feiras pode aumentar a sensação de insegurança nas comunidades, uma vez que a venda de produtos roubados incentiva novos roubos e furtos, criando um ciclo vicioso de criminalidade.

Para as autoridades, o desafio tem se mostrado duplo: combater a receptação requer ações repressivas, mas também fomentar iniciativas de conscientização pública sobre os riscos e as consequências de comprar produtos de origem criminosa. Não podemos estigmatizar esses ambientes como sendo exclusivamente criminosos. Contudo, já, de há muito, é sabida a relação entre as feiras do rolo e o crime de receptação. Para enfrentar esse problema de maneira eficaz, é necessário um esforço coordenado entre autoridades, comerciantes e a comunidade, visando tanto à repressão quanto à prevenção dessa prática ilícita (BARROSO; SILVA, 2020).

2.Desenvolvimento

2.2. Fenômeno das feiras do rolo

As chamadas “feiras do rolo” é um fenômeno social presente em diversas cidades brasileiras, desde as capitais, até cidades interioranas, como é o caso do município de Caicó-RN, onde a feira do rolo recebe o vulgo “Beco da Troca”. É preciso ratificar o que já foi pontuado anteriormente – É de suma importância não generalizar como criminosas as feriras que se destinam ao comercio informal de produtos, como também não criminalizar as pessoas que lá compram ou vendem. Estes pontos de comercialização tem um relevante valor social, cultural e econômico, deve-se considerar o fato que muitas famílias granjeiam o sustento, dignamente, dos produtos vendidos ou trocados nesses ambientes, vejam, nem todos, e não necessariamente, os objetos vendidos nessa conjuntura são de origem criminosa.

A população, sobretudo as camadas mais pobres, prestigiam esse modelo de comercio buscando uma grande variedade de produtos com um preço acessível se cotejado com os valores do comercio formal. O que distingue esse tipo de feira das outras é justamente a prática do rolo, que deve ser vista como uma forma de economia que incorpora um comerciante/consumidor, inicialmente, num negócio de troca e venda de mercadorias - semelhante ao escambo, onde circulam desde sacos de laranja até notebooks. Não obstante, o discurso que vincula a feira a atividades ilegais, como a receptação de produtos roubados, o tráfico de drogas e armas, entre outros tipos de comércio ilícito, deve ser esclarecido, para não gerar injustiças e tensão nas interações entre seus participantes.

2.3.A origem das feiras

Essa característica de ocupação informal, feiras, pelo comércio ambulante é bem representada pelo próprio vernáculo, que tem origem na palavra latina "feria", significando "dia de festa". Durante a Alta Idade Média, a influência da Igreja levou à adoção do termo "feira" para nomear os dias da semana, exceto sábado e domingo. Das línguas românicas, o português foi a única a adotar essas designações (segunda-feira, terça-feira, etc.) desde sua formação. Na liturgia, "feria" em latim refere-se a um "dia de festa" ou "dia de repouso". Com o tempo, mercadores passaram a vender suas mercadorias em praças públicas durante festividades religiosas, e as expressões "secunda feria", "tertia feria", etc., passaram a designar os dias da semana. Assim, a noção original de "dia de repouso" se perdeu em função da predominância das feiras comerciais sobre as férias litúrgicas. (TAVARES, 2005)

As feiras livres surgiram na história como uma resposta às necessidades econômicas e sociais das comunidades, pontua Tavares (2005). Durante a Alta Idade Média, com a crescente urbanização e o desenvolvimento de novas rotas comerciais, as feiras começaram a se estabelecer como eventos regulares onde mercadores de diferentes regiões se reuniam para trocar bens e mercadorias. Essas feiras eram frequentemente realizadas em dias específicos, muitas vezes alinhadas com festividades religiosas, facilitando a congregação de um grande número de pessoas e a troca de produtos. Assim, além de funcionarem como centros comerciais, as feiras também desempenhavam um papel crucial na coesão social e na disseminação de culturas e ideias​.

A institucionalização das feiras livres pode ser atribuída à influência da Igreja e do Estado na regulamentação dessas atividades. Na Europa medieval, a Igreja frequentemente organizava feiras durante festivais religiosos, aproveitando a grande concentração de fiéis. Por outro lado, os governantes locais viam as feiras como uma oportunidade de estimular a economia e aumentar a arrecadação de impostos através de taxas cobradas dos comerciantes. Isso levou à criação de leis específicas que regulavam onde e quando as feiras poderiam ocorrer, quais tipos de mercadorias poderiam ser vendidas, e as taxas aplicáveis, garantindo uma certa ordem e previsibilidade no comércio local. Com o passar dos séculos, as feiras livres se espalharam por todo o mundo, adaptando-se às culturas e necessidades locais. No Brasil, por exemplo, as feiras livres se tornaram uma característica marcante das cidades, oferecendo uma ampla variedade de produtos frescos e artesanais diretamente dos produtores aos consumidores. Essas feiras não apenas suportam a economia local, mas também mantêm viva a tradição cultural e social de compra e venda em espaços públicos. Ao longo do tempo, as feiras livres evoluíram, mas continuam a ser um ponto central na dinâmica econômica e social das comunidades​. (GUIMARÃES, 2010)

2.4. As feiras do rolo

O surgimento das “feiras do rolo” espalhadas em várias cidades do Brasil, mormente, carrega consigo a oportunidade de preservação da cultura popular associada a esse modelo de comércio e, noutra perspectiva, abre uma possibilidade econômica mais viável para as camadas sociais mais pobres. Todavia, a ausência de fiscalização, a informalidade e a facilidade de comercialização ensejaram uma oportunidade também para o crime. Como já dito antes, essas feiras, com seus adornos festivos – violeiros, comida, bebida, viajantes, enorme variedade de produtos e preços baixos – atraíram também criminosos. Veja o que diz Breitner Luiz Tavares, em sua dissertação de doutorado, sobre a feira do rolo em Ceilândia, que, embora localizada em Brasília, é um reflexo das “feiras do rolo” disseminadas por todo o país.

Há relatos de que eventualmente, surgiam tumultos em meio aos que circulavam com seus produtos. Surgiam pessoas que se diziam “vítimas” de furto ou roubo e que afirmavam ter encontrado seus produtos ali, muitos chegavam a brigar e levar o caso à polícia, a qual estava eventualmente, nas imediações, mas, normalmente, sem qualquer intervenção. As pessoas que estavam próximas normalmente se afastavam; não se envolviam na situação, às vezes gritavam quando a situação se tornava mais dramática. É difícil precisar se tais situações chegavam a ser uma constante, mas isso colaborou para a difusão de uma imagem negativa da feira que passou a ser até chamada de Feira do Roubo. É interessante ressaltar que tudo isso acontecia em praça pública, exatamente no centro de Ceilândia. (TAVARES, 2005)

É nesta perspectiva que o termo "rolo" passa por uma ressignificação, no contexto das feiras de troca, como a Feira do Rolo. Essa nova maneira de ver revela uma transformação significativa na percepção social e cultural dessas práticas, que originalmente estavam associadas às tradições de escambo da cultura popular e rural. O "rolo" passou a ser visto de forma pejorativa, sendo relacionado a atividades contraventoras em ambientes suburbanos. Esse cenário é caracterizado por uma regulação insuficiente por parte de instituições estatais, como a polícia e a Administração Pública, resultando em um estigma social. Essa estereotipização contribui para a imagem policial de regiões como Ceilândia, que são percebidas como áreas marcadas por precariedade institucional e violência. A transição de uma prática cultural tradicional para um símbolo de ilegalidade reflete as complexas dinâmicas sociais e políticas envolvidas na urbanização e marginalização de certas comunidades.

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3.O crime de Receptação

O tipo penal da receptação está insculpido no artigo 180 do Código Penal Brasileiro e consiste em adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, coisa que se sabe ser produto de crime. Este delito abrange tanto a receptação dolosa, quando o agente tem a intenção clara de obter vantagem, quanto a receptação culposa, quando o agente adquire o bem sem verificar sua procedência. (DF, 2014)

Vamos ver mais detalhadamente as características do crime de receptação segundo a legislação brasileira.

Como já dito, a legislação penal distingue duas modalidades de receptação: a receptação dolosa, que ocorre quando há a intenção deliberada de cometer o crime, e a receptação culposa, caracterizada pela ausência de intenção consciente de praticar a infração.

Galvão & Silva Advocacia (2023) destacam que nem todas as coisas de natureza ilícita resultam em crime de receptação. Por exemplo, imagine um policial que, legalmente, possui uma arma e entrega essa arma a você, que a partir desse momento passa a portá-la sem estar devidamente autorizado. Nesse caso, você cometeria o crime de porte ilegal de arma, mas a arma em si não é de origem criminosa, portanto, isso não configuraria receptação. O crime de receptação ocorre tão somente quando o bem ou objeto tem origem ilícita e é adquirido por terceiros.

Noutro giro, para que esse tipo penal seja configurado, é necessário que haja um crime antecedente, como furto, roubo, latrocínio, extorsão, entre outros. É a partir desse crime anterior que surge o bem ou objeto que será adquirido por outra pessoa posteriormente. É o que a doutrina define como um crime parasitário, acessório ou de difusão, haja vista que não é possível que a receptação exista por si só. É imprescindível que haja um crime anterior ao crime de receptação do qual este se originará. Conforme descreve o texto de lei, a coisa deve ser produto de crime, ou seja, é preciso que exista um crime que dê origem à coisa, objeto da receptação. Também é importante destacar que não é qualquer coisa ou objeto de origem ilícita que dará origem ao crime de receptação, mas apenas aquela coisa que tenha nascido de um crime.

Marson (2018) ainda elenca dois aspetos relacionado a autonomia do crime de receptação. Quais sejam:

1° -A receptação é punível ainda que desconhecido o autor do crime antecedente: A existência do crime anterior já é isso é o bastante para a receptação, sendo irrelevante se o indivíduo acusado pela sua prática não era seu autor, se o autor não foi identificado, ou se, mesmo o sendo, era ele impunível ou não existiam provas suficientes para sua segura condenação.

2° - O receptador pode ser punido ainda que isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa: É o que se dá nas causas de exclusão da culpabilidade, também conhecidas como dirimentes, 431 e nas escusas absolutórias (exemplo: CP, art. 181). (MASSON, 2018).

Já o sujeito que pratica o crime antecedente ao da receptação não incorre no crime de receptação. Somente será responsabilizado por receptar produto roubado, obviamente, aquele que adquire a coisa ou bem de origem criminosa, sujeito este que também não pode ter participado do crime anterior.

3.1. Receptação Dolosa

A receptação dolosa ocorre quando o agente, com pleno conhecimento da origem ilícita do bem, decide adquiri-lo, recebê-lo, transportá-lo, ou de qualquer forma o utilizar. Neste caso, há a intenção deliberada de obter vantagem a partir de um bem que se sabe ser produto de crime. A pena para a receptação dolosa, conforme previsto no artigo 180 do Código Penal, é de reclusão de um a quatro anos, além de multa.

Exemplo: imagine que João vai até uma “feira do rolo” e compra um celular a um preço muito abaixo do mercado, sabendo que ele foi roubado. A ciência da origem criminosa do bem e a intenção de obter vantagem caracterizam a receptação dolosa.

3.2. Receptação Culposa

A receptação culposa, por outro lado, ocorre quando o agente adquire, recebe, transporta ou utiliza um bem sem saber que ele é fruto de crime, mas que, pela situação, deveria ter suspeitado da sua procedência ilícita. A culpa está na negligência, imprudência ou imperícia do agente em verificar a origem do bem. A pena para a receptação culposa é de detenção de um mês a um ano, ou multa.

Exemplo: Maria compra uma televisão a um preço muito baixo em uma “feira do rolo” que acontece em sua cidade, sem verificar a procedência. Posteriormente, descobre-se que a televisão foi furtada. Maria não tinha intenção criminosa, mas foi negligente ao não investigar a origem do produto.

3.3.Receptação Simples

A receptação simples é uma forma básica do crime, onde o agente pratica o delito em condições que não envolvem a atividade comercial ou industrial. Tanto a receptação dolosa quanto a culposa podem ser classificadas como simples quando não há circunstâncias agravantes. (NUCCI, 2017)

Exemplo: Pedro compra uma bicicleta de um conhecido sem pedir recibo ou verificar a procedência. A bicicleta havia sido furtada. Neste caso, Pedro pode responder por receptação simples, dependendo de ter ou não conhecimento da origem ilícita.

3.4. Receptação Qualificada

A receptação qualificada se configura quando um indivíduo utiliza produtos de origem criminosa em atividades comerciais ou industriais, transformando esses itens em mercadoria ou incorporando-os ao processo produtivo. Esse tipo de crime é punido com reclusão de 3 a 8 anos, além de multa.

O Código Penal, em seu artigo 180, parágrafo 2º, dispõe que qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, bem como a realização dessas atividades em âmbito residencial, é equiparada à atividade comercial. Dessa forma, essas práticas também estão sujeitas à pena prevista no parágrafo 1º, garantindo que brechas técnicas não sejam usadas como defesa para evitar a responsabilização penal. (NUCCI, 2017)

3.5. Receptação de Receptação

A questão da possibilidade de receptação de receptação é frequentemente levantada e, segundo a legislação vigente, a resposta é afirmativa. Para que se configure o delito tipificado no artigo 180 do Código Penal, é necessário que a coisa seja "produto de crime", independentemente da natureza do crime original, inclusive a própria receptação.

Um exemplo ilustrativo pode esclarecer: suponhamos que "A" adquira um celular de um desconhecido, sabendo que se tratava de produto de crime. Passados alguns dias usando o celular, "A" o vende para "B", informando-o que aquele objeto tem origem criminosa.

Nesse cenário, "A" cometeu o crime de receptação ao adquirir o celular com conhecimento de sua origem ilícita. Por sua vez, "B" comete o que se denomina receptação de receptação, também conhecida como receptação em cadeia. Isso demonstra que todos os envolvidos em negociações subsequentes do mesmo bem material, com conhecimento de sua origem criminosa, são responsáveis pelo crime acessório.  (MASSON, 2018, p. 631)

Em outras palavras, qualquer indivíduo que, consciente da origem ilícita do bem, realiza uma das condutas típicas descritas no caput do artigo 180 do Código Penal, será responsabilizado pelo crime de receptação. Isso se aplica mesmo que a pessoa que transferiu o objeto não tivesse conhecimento dessa circunstância. A lei, portanto, assegura que a responsabilidade pela receptação recai sobre todos que participem da cadeia de negociações com plena ciência da procedência criminosa do bem.

A receptação dolosa, em sua forma mais grave, pode resultar em uma pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa. Por sua vez, a receptação culposa é punida com detenção de um mês a um ano, ou multa. A diferenciação entre essas duas formas se dá pela presença ou não de dolo na conduta do agente. A modalidade qualificada da receptação ocorre quando o agente exerce atividade comercial ou industrial, ou é praticada de forma reiterada, resultando em penas mais severas, que podem alcançar até oito anos de reclusão.

3.6. Receptação e favorecimento real

O crime de favorecimento real está descrito no art. 349 do Código Penal: “Art. 349 – Prestar a criminoso, fora dos casos de coautoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa”. Este tipo penal especifica que o favorecimento real só ocorre quando a conduta não constitui o crime de receptação. Mas quais são as principais nuances entre os artigos 180 e 349 do CP? Existem duas principais diferenças. Primeiramente, a receptação é considerada um crime contra o patrimônio, enquanto o favorecimento real é um crime contra a Administração da Justiça.

Em segundo lugar, a receptação envolve a intenção de lucro (animus lucrandi), caracterizada pelo propósito de agir “em proveito próprio ou alheio”, ou seja, o indivíduo age em benefício próprio ou de uma terceira pessoa, diferente do autor do crime original. No favorecimento real, por outro lado, a ação do agente não visa lucro próprio ou de terceiros, sendo realizada apenas para ajudar o autor do crime anterior a garantir o proveito do delito. (MASSON, 2018, p. 637)

Bem, é preciso lembrar que esse artigo não tem por objetivo esvaziar o tema: receptação. Se o leitor quiser se aprofundar sobre o tema, recomendo a leitura da dogmática, doutrina e jurisprudência que vastamente discorre sobre os por menores do crime de receptação.

5.Contexto Social e Econômico da receptação

O crime de receptação está intimamente ligado ao fenômeno da criminalidade patrimonial. Ele é essencial para a manutenção de mercados ilícitos, como o de produtos roubados ou furtados. É nesse cenário que os criminosos encontram um habitat favorável nas feiras do rolo, vide a facilidade com que os produtos oriundos de furto e roubo, por exemplo, podem ser transacionados longe dos olhos do Estado-Policial.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, os casos de receptação registraram um aumento de 12% em relação ao ano anterior. Esse crescimento pode ser atribuído a uma combinação de fatores. A intensificação das operações policiais focadas especificamente na receptação, bem como o aumento das atividades criminosas em determinadas regiões, são elementos que contribuem para elevação desse número. Além disso, a melhoria nos mecanismos de registro e fiscalização também pode ter influenciado no aumento das estatísticas, refletindo uma maior eficácia na identificação e registro desses crimes. (PÚBLICA, 2023)

Os dados regionais revelam variações significativas na incidência de receptação. Estados como São Paulo e Rio de Janeiro apresentam os maiores índices, refletindo o intenso dinamismo econômico e populacional dessas áreas, que facilita tanto a ocorrência de roubos quanto a posterior receptação. Em contraste, estados menos populosos ou com menor atividade econômica apresentam índices relativamente mais baixos, embora não estejam isentos desse problema.

Os crimes que desaguam na receptação, como por exemplo o roubo de carga, tiveram cifras expressivas nas últimas pesquisas. Em matéria divulgada pelo Sindicato das Empresas de Seguro e Resseguros, houve um aumento no roubo de carga. Em 2022, conforme o dado mais recente, o prejuízo causado na economia brasileira por esse crime chegou a R$ 1,2 bilhão, segundo o Fórum dos Gerenciadores de Risco, conforme apontado por Saulo Chaves, diretor de Negócios da ICTS Security.

Na mesma linha, um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) demostrou que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil poderia ter um acréscimo de 0,6 ponto percentual caso a criminalidade fosse reduzida ao nível médio mundial, conforme reportado pelo Estadão. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que as empresas brasileiras gastam cerca de R$ 171 bilhões por ano em segurança, o que representa 1,7% do PIB de 2022. (RESSEGUROS, 2024).

Noutro giro, O celular é arrolado como item mais citado por vitimas de roubos e furtos no Brasil, os indicadores apontam que 83,7% dos roubos cometidos fora do domicilio são dos telefones moveis (GONSALVES, 2024). Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 investigou a incidência de roubos e furtos em cinco categorias: carros, motos, bicicletas, domicílios e fora de domicílios. De acordo com as estimativas, em 2022, foram furtados 342 mil veículos e roubados mais 222 mil. Comparativamente, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que em 2021 foram registrados quase 189 mil boletins de ocorrência de furto e 142 mil de roubo de veículos, evidenciando uma subnotificação desses crimes às autoridades policiais.

Os indicadores mostraram que a busca pela polícia civil para registrar ocorrências de furto não foi predominante, ocorrendo em apenas 52,8% dos casos de furto de carros e 50,8% dos de motos. No entanto, quando se considera a procura geral pelas polícias ou guardas, esses números aumentam para 80,3% nos furtos de carros e 84,9% nos de motos. A principal razão citada para a ausência de registro junto à polícia foi a falta de provas.  (MARQUES, 2022).

Em casos de roubo, onde há uso de violência ou grave ameaça, a subnotificação é menor. A procura pela polícia ou guarda municipal foi registrada em 91% dos roubos de carros e 82,5% dos de motos. A justificativa mais frequente para não buscar as autoridades nesses casos foi a desconfiança na eficácia da polícia.

O preocupante nisso tudo, além da apatia das vitimas pelo descrédito nas autoridades, é que a grande maioria desses produtos oriundos do crime vão cair na mão de receptadores, é a preocupação que demostra o delegado Reginaldo Salomão, da Delegacia Especializada de Roubos e Furtos de São Paulo, “Comprar objetos roubados ou furtados é um crime tão grave quanto o de roubo ou furto, pois são essas pessoas que alimentam esta prática, portanto vamos agir com afinco e rigor”  (MENDONÇA, 2017).

Por sua vez, o perfil dos criminosos que utilizam as chamadas feiras do rolo para comercializa seus produtos é bastante elástico, vai desde indivíduos que agem no singular, ou seja, individualmente, até grupos organizados que escoam suas mercadorias originarias do roubo de carga, por exemplo. A receptação não se limita a indivíduos de baixa renda ou com antecedentes criminais, pessoas de diferentes estratos sociais, atraídas pelo preço reduzido dos produtos, acabam participando dessa prática, de forma dolosa ou culposa. Além disso, redes criminosas bem estruturadas têm sido descobertas, evidenciando uma complexa cadeia de comando e distribuição que vai além do simples comprador de produtos roubados. Contudo, poderíamos dividir os receptadores em duas categorias principais: os profissionais e os eventuais. Os profissionais são aqueles que fazem do crime de receptação uma atividade regular, geralmente atuando em organizações criminosas, que distribuem e comercializam produtos.

Por outro lado, os receptadores eventuais são pessoas que, por razões diversas como necessidade financeira ou desconhecimento, acabam comprando produtos frutos do crime. Esses indivíduos geralmente não têm um histórico criminal extenso e podem ser réus primários, pode ser a vovozinha ou a dona de casa que, teoricamente, não faz ideia de estar cometendo um crime e alimentando uma rede criminosa.

Os impactos sociais da receptação são profundos e abrangentes. Não é possível deixar passar em branco o quanto a receptação ajuda a sustentar diretamente outras atividades ilícitas, ao fornecer um mercado para os produtos roubados. Isso tem sérios e graves desdobramentos, fomenta a violência e insegurança, além de desestimular a economia formal. Comerciantes honestos são prejudicados pela concorrência desleal, e a confiança do consumidor é abalada ao saber que pode estar incorrendo num crime.

Conclusão

Este artigo investigou a complexa relação entre as feiras do rolo e o crime de receptação no Brasil, analisando as implicações sociais, econômicas e legais desse fenômeno. As feiras do rolo, inicialmente concebidas como espaços para troca e venda de produtos usados, transformaram-se em mercados onde bens provenientes de atividades ilícitas encontram fácil circulação. Essa metamorfose reflete a adaptabilidade desses mercados à realidade social e econômica das comunidades urbanas brasileiras, especialmente as de baixa renda.

A análise do artigo 180 do Código Penal Brasileiro revelou a abrangência do crime de receptação, que pode ser doloso ou culposo, e que está intrinsecamente ligado à existência de um crime antecedente. Essa ligação fortalece a natureza parasitária do crime de receptação, que não existe de forma independente, mas como uma extensão de atividades ilícitas prévias. Além disso, o estudo destacou a diferenciação entre receptação simples e qualificada, enfatizando a gravidade da utilização de produtos ilícitos em atividades comerciais ou industriais.

A informalidade das feiras do rolo cria um cenário propício para a circulação de mercadorias de origem ilícita. A ausência de fiscalização rigorosa e a dificuldade de rastrear a procedência dos produtos comercializados facilitam a venda de itens roubados. Relatórios policiais e estudos acadêmicos indicam que uma parte significativa dos produtos oferecidos nessas feiras, como eletrônicos, ferramentas, bicicletas, etc., provém de furtos e roubos, entre outros crimes que podem ensejar na receptação. Esse ambiente informal atrai tanto pequenos receptadores quanto redes do crime organizado.

A aceitação social das feiras do rolo, profundamente enraizada em várias comunidades urbanas brasileiras, onde a prática é vista como uma forma legítima de comércio, dificulta a repressão policial. A compra de produtos baratos e de segunda mão é comum e socialmente tolerada. Muitas vezes, os consumidores não questionam a origem dos bens adquiridos, contribuindo, mesmo que indiretamente, para a perpetuação do ciclo criminoso. Do ponto de vista econômico, a circulação de produtos roubados afeta negativamente o mercado formal, prejudicando a economia nacional. Socialmente, a presença dessas feiras pode aumentar a sensação de insegurança nas comunidades, uma vez que a venda de produtos roubados incentiva novos crimes.

Em conclusão, as feiras do rolo representam um desafio significativo para o combate ao crime de receptação no Brasil. A transformação desses espaços em mercados para produtos ilícitos reflete questões mais amplas de informalidade econômica, falta de fiscalização e aceitação social do comércio de bens de origem criminosa. Abordar esse problema requer uma abordagem multifacetada que combine repressão, prevenção e promoção de alternativas econômicas para as comunidades afetadas. Somente através de um esforço conjunto entre autoridades, comerciantes e sociedade civil será possível mitigar os impactos negativos das feiras do rolo e promover um ambiente de comércio mais justo e seguro para todos.

REFERÊNCIAS:

BARROSO, Roberta Filizola Custódio; SILVA, Fernanda Linhares. Rigor no combate ao crime de receptação: uma importante estratégia em benefício do direito fundamental à segurança pública. 2020. Disponível em: https://www.unifor.br/documents/392178/3101527/Roberta+Filizola+Custodio+e+Fernanda+Linharesdoc.pdf/59d01a62-b630-dbb5-638d-da721a76f128. Acesso em: 25 maio 2024.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.

DIA, Hoje em. "Feira do rolo" oferece produtos falsificados, itens roubados e até pássaros em SP. 23 maio 2017. Youtube: Hoje em Dia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c7TcuVneAFs. Acesso em: 27 maio 2024.

 DF. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Receptação. 2014. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/receptacao. Acesso em: 25 maio 2024.

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Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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