Gestão de APPs criadas a partir da construção de reservatórios artificiais de água dispensados de licenciamento ambiental

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A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) cria e garante ao meio ambiente um sistema jurídico complexo, que visa tanto a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, quanto o equilíbrio entre princípios que permitam o desenvolvimento social e econômico, em vista da sustentabilidade às presentes e futuras gerações. Analisa-se neste artigo, portanto, as proteções especiais trazidas pela Lei Federal 12.651/2012, Código Florestal Brasileiro de 2012 (CFB/2012), especificamente sobre os reservatórios d'água artificiais e a gestão das Áreas de Preservação Permanente (APPs) de seu entorno.

Anteriormente à promulgação da Lei Federal 12.651/2012, como bem preceitua Milaré (2014, p. 1.286), a previsão primária das florestas como “áreas de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” acabou por se expandir para outras classificações, assim trazidas pela Medida Provisória 2.166-67/2021, que alterou a Lei Federal 4.771/1965, anterior Código Florestal Brasileiro de 1965 (CFB/1965), para contemplar previsões jurídicas das “áreas de preservação permanente”, em prol da preservação dos recursos hídricos, paisagísticos, geológicos, da biodiversidade, do fluxo gênico da fauna e da flora, do solo, e da asseguração do bem-estar das populações humanas, em áreas de devido interesse ecológico (MILARÉ, 2014, p. 1.287).

A evolução para a atual configuração do CFB/2012, caracteriza-se pela previsão contida no art. 4º, dos tipos de APPs definidas em lei, em especial as previstas no art. 4º, inciso III do CFB/2012, definidas como "áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento".

É importante registrar que se o reservatório de água artificial não for resultado do barramento ou represamento de cursos d' água naturais, não há, conforme redação dada ao art. 4º, inciso III, do CFB/2012, a instalação de Áreas de Preservação Permanente (APPs).

Lado outro, caso configurada a APP em decorrência do barramento ou represamento de cursos d'água naturais, a definição de APP prevista no art. 4º, inciso III do CFB/2012, deve ser conjugada e analisada conforme previsão do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), na já revogada Resolução nº 302/2002, que dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno.

Conforme art. 2º, inciso I da Resolução nº. 302/2002, a definição de reservatório artificial era caracterizada como a “acumulação não natural de água destinada a quaisquer de seus múltiplos usos”, sendo definidas as larguras mínimas em seu art. 3º e respectivos incisos. À época, a Resolução nº. 302/2002 previa como APP a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida a partir do nível máximo normal de trinta metros para os situados em áreas urbanas consolidadas (art. 3º, inciso I); cem metros para áreas rurais (art. 3º, inciso I); quinze metros, no mínimo, para os de geração de energia elétrica com até dez hectares, sem prejuízo da compensação ambiental (art. 3º, inciso II); e quinze metros, no mínimo, para os não utilizados em abastecimento público ou geração de energia elétrica, com até vinte hectares de superfície e localizados em área rural (art. 3º, inciso III).

Considerando que para cada tipo de reservatório d'água artificial, a Resolução nº. 302/2002 previa uma medição e parâmetros diferentes, com o advento do CFB/2012, as definições então passaram a necessitar de atenção e regulamentação especial visando a adequação do assunto à referida Lei Federal, sobreposta à resolução federal anterior.

De modo semelhante às atuais disposições do CFB/2012, os parágrafos do art. 3º da Resolução nº 302/2002 também previam que os limites de faixas para definição de APP, poderiam ser ampliados ou reduzidos, a depender de situações técnicas específicas.

Assim, destaca-se, que o CFB/2012 concatenou ideias e trouxe previsões normativas mais concretas em seu art. 5º, ao prever a obrigatoriedade da aquisição, desapropriação ou instituição de servidão administrativa pelo empreendedor das APPs criadas em seu entorno, devendo respeitar as faixas mínimas de trinta a cem metros em área rural, e quinze a trinta metros em área urbana, conforme o texto legal:

Art. 5º Na implantação de reservatório d’água artificial destinado a geração de energia ou abastecimento público, é obrigatória a aquisição, desapropriação ou instituição de servidão administrativa pelo empreendedor das Áreas de Preservação Permanente criadas em seu entorno, conforme estabelecido no licenciamento ambiental, observando-se a faixa mínima de 30 (trinta) metros e máxima de 100 (cem) metros em área rural, e a faixa mínima de 15 (quinze) metros e máxima de 30 (trinta) metros em área urbana.

§ 1º Na implantação de reservatórios d’água artificiais de que trata o caput , o empreendedor, no âmbito do licenciamento ambiental, elaborará Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno do Reservatório, em conformidade com termo de referência expedido pelo órgão competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente - Sisnama, não podendo o uso exceder a 10% (dez por cento) do total da Área de Preservação Permanente.

§ 2º O Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno de Reservatório Artificial, para os empreendimentos licitados a partir da vigência desta Lei, deverá ser apresentado ao órgão ambiental concomitantemente com o Plano Básico Ambiental e aprovado até o início da operação do empreendimento, não constituindo a sua ausência impedimento para a expedição da licença de instalação.

Considerando que, para a área ter status de APP é necessária a acumulação não natural de água, decorrente de barramento ou represamento de curso d'água natural, o CFB/2012 considera a definição no cálculo da faixa, aquela definida na licença ambiental concedida ao empreendimento que constituiu o represamento, assim caracterizando a APP.

O art. 4º da Resolução nº 302/2002 ainda previa que, no âmbito do procedimento de licenciamento ambiental, devia o empreendedor elaborar o Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno de Reservatório Artificial, “em conformidade com o termo de referência expedido pelo órgão ambiental competente, para os reservatórios artificiais destinados à geração de energia e abastecimento público”. Infere-se que tal disposição também foi disposta no art. 5º e seus respectivos parágrafos do CFB/2012.

No entanto, ainda que a Res. CONAMA e a CFB/2012 não prevejam qual a situação específica para aqueles reservatórios d'água artificiais dispensados de licenciamento ambiental, a obrigatoriedade de apresentação do Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno do Reservatório Artificial continua sendo aplicada para validação junto aos órgãos ambientais.

Para o entendimento da gestão das APPs criadas a partir da construção de reservatórios artificiais de água, ainda que dispensados de licenciamento ambiental, cabe a admonição de que, a depender da jurisdição em que o reservatório d'água artificial está localizado, há a necessidade de observação das especificidades regionais e locais à competência para a realização de licenciamento ambiental.

Considerando a capacidade para licenciamento ambiental tanto da União, Estados e Municípios, deve ser aplicada aqui a consideração das disposições da Lei Federal 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Consideradas as competências dos órgãos executores federais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), nos termos da regência legal do art. 6º, inciso IV, da PNMA, também há de se valorar a competência atrelada aos órgãos seccionais estaduais (prevista no art. 6º, inciso V da PNMA), e aos órgãos locais municipais (prevista no art. 6º, inciso VI da PNMA).

Em vista das jurisdições dos órgãos seccionais estaduais e locais municipais, cada Estado da Federação deverá observar a competência específica dos órgãos públicos pela execução de programas, projetos, e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental. Em razão da capacidade legislativa dos entes federados estaduais e municipais, uma vez respeitadas as competências constitucionais em matéria ambiental, principalmente à previsão do art. 24, inciso VI da CRFB/1988, em que cabe aos entes federados legislar concorrentemente sobre florestas, conservação da natureza, proteção do meio ambiente e controle da poluição, há de se considerar da possibilidade das previsões do CFB/2012 estarem sujeitas à execução por órgãos estaduais e municipais, com suas respectivas normas estaduais e municipais.

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Na hipótese das normas Estaduais e Municipais preverem situações jurídicas que se enquadrem à possibilidade de um empreendimento, que ao instalar um reservatório artificial d'água, possua potencial poluidor inferior ao necessário para a classificação em um licenciamento ambiental, há de se valorar a capacidade para que os órgãos executores dispensem o licenciamento para o determinado empreendimento.

Conforme abordado, a fixação de APP se dá nas hipóteses de reservatórios artificiais d'água que decorram de barramento ou represamento de cursos d'água naturais. Uma leitura fria dessas disposições, levaria ao entendimento de dispensa de fixação de APP no caso de reservatórios artificiais d'água dispensados de licenciamento ambiental. No entanto, verifica-se a disposição do art. 62 do CFB/2012, que dispõe dos seguintes termos:

Art. 62. Para os reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, a faixa da Área de Preservação Permanente será a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum.

Para o art. 62, há ainda uma regra de marco temporal para a consideração de consideração da faixa de APP. Tal questão foi inclusive discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) vide a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.902 (ADI 4.902) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade 42 (ADC 42). A referida "cota máxima maximorum", é inclusive explicitada no inteiro teor do acórdão da ADC 42 pelo do STF, considerada a cota de "nível acima da cota normal de operação, estabelecido justamente para garantir a segurança do reservatório, considerando-se a ondulação do espelho d’água e as situações de cheias excepcionais”.

Pelo Item 21, alínea “e” da Ementa da ADC 42, foi levada à discussão constitucional se, as APPs no entorno dos reservatórios d'água artificiais teriam sido extintas, sendo esclarecido que, a lei federal delegou ao órgão ambiental promover a licença ambiental do empreendimento a tarefa de definir a extensão da APP, consoante as especificidades do caso concreto. Pela ADC 42, foi dada a constitucionalidade do art. 4º, inciso III, e os §§ 1º e 4º.

Em comparação à jurisprudência dos tribunais brasileiros, verifica-se que a intervenção nas referidas áreas de preservação permanente já foi analisada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível 0004765-25.2009.8.26.0543. No caso concreto, diante do convênio entre a CETESB e o Município de Igaratá, havia a faculdade de atribuir ao município o licenciamento de impacto ambiental local. Verificada que a obra objeto da demanda encontrava-se a mais de 30 m da represa, não ocupando a faixa de preservação permanente, conforme aferição de croqui elaborado pelo IBAMA, e comprovada a existência de válida autorização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente para a regularização de residência familiar, nos termos de convênio firmado com a CETESB, não havia então irregularidade a ser sanada, diante da regularidade ambiental comprovada pelos documentos autorizativos.

No entanto, já foi também analisado pelo Tribunal de Justiça de Goiás, no processo de Apelação Cível 0010827-55.2008.8.09.0134 que, constatada a ocorrência de degradação em APP advinda de reservatório artificial, não havia que se negar a condenação na obrigação de fazer para a recomposição da área danificada, diante dos parâmetros legais de aferição da área da APP.

Diante da necessidade de análise pelo órgão ambiental para promover a licença ambiental do empreendimento e a tarefa de definir a extensão da APP a ser instaurada no entorno do reservatório artificial, a lei dispõe de parâmetros para a instauração, cabendo ao órgão verificar, assim como dispõe os parágrafos do art. 3º da Res. CONAMA 302/2002, os limites de faixas para definição de APP, podendo ser ampliados ou reduzidos, a depender de situações técnicas específicas.

Uma vez respeitado o procedimento administrativo ambiental para a instalação e regularização ambiental de reservatórios d’água artificiais, a análise pelo órgão ambiental deve estar sempre pautada de acordo com a legislação no âmbito federal ou até mesmo Estadual, não sendo possível atribuir obstáculo à implantação do empreendimento em razão de norma regional ou local mais restritiva e que dificulte o licenciamento do empreendimento.

Conclui-se, portanto, que as obrigações iniciais de um empreendimento dependem da busca pelo licenciamento ambiental junto ao órgão ambiental competente, ainda que da decisão do processo administrativo ambiental, possa resultar em uma dispensa de licenciamento. Há de se considerar, assim, as previsões específicas do CFB/2012, especialmente sobre a elaboração do Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno do Reservatório Artificial, junto do termo de referência ao órgão competente previsto na PNMA.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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