A polícia judiciária em uma visão distópica

27/08/2024 às 10:20
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Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito policial. SEGURANÇA PÚBLICA. POLICIA CIVIL. DISTOPIA.



Distopia é uma realidade ficcional que se caracteriza pela representação de sociedades imaginárias nas quais prevalecem condições de vida opressivas, totalitárias e desumanas.

É como no livro de George Orwell, 1984, segundo o qual um único partido controla todos os aspectos da vida social e manipula a percepção que as pessoas têm da realidade de acordo com as necessidades políticas do “grande irmão”.

Evidentemente, o presente escorço não trata de um mundo de opressão, mas ainda sim se caracteriza como uma distopia.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988, sem seu artigo 144, aduz que


A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

VI - polícias penais federal, estaduais e distrital.

No tocante ao presente trabalho, somente nos interessa a Polícia Civil, que se divide em federal e estadual.

Em relação à Polícia Federal, ainda na Magna Carta, temos que


§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

(…) IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (g. n.)


Por sua vez, a Polícia Estadual, dirigida por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Outrossim, verbi gratia, a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 140, prescreve ser a Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, cuja incumbência, ressalvada a competência federal, é a de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Dessa forma, ficou assente que no âmbito nacional, somente a Polícia Federal pode ser a polícia judiciária da União, e no âmbito regional, somente podem exercer as funções de polícia judiciária a Polícia Civil e a Militar. Aqui não cabe a interpretação de que as Guardas Civis Municipais, desde que autorizadas por lei, poderiam investigar crimes, já que a exceção no plano estadual é somente à Polícia Castrense. Esse é o significado do princípio da legalidade.

Pois bem. Ultimamente temos visto posicionamentos doutrinários no sentido de questionar a atividade investigatória do Ministério Público, o que é legítimo, mas não necessariamente correto.

Segundo Karl Gossel (2007, p. 25) a respeito da divisão de poderes, salientou argutamente que “todo o poder está a serviço da sua própria conservação e expansão, e a tendência excessiva de alcançar esses objetivos leva ao abuso”.

Ora, isso é particularmente verdadeiro quando vemos o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal ser pausado por ameças legislativas do Congresso Nacional, como a PEC n. 8 de 2021, que veta decisões monocráticas que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos demais Poderes.

Malgrado, os mesmos que questionam a expansão dos poderes ministeriais são aqueles que advogam mais poderes para suas instituições, o que caracteriza certa hipocrisia.

Conforme anotou o Delegado de Polícia Nilton César Boscaro (2024, p. 34),


A persecução penal jurisdicional (ou stricto sensu) inicia-se com os primeiros atos jurídicos valorativos da perseguição estatal ao autor do ilícito penal, i.e., com a atuação da Polícia Judiciária (…) A desconcentração de funções em diversos órgãos vem ao encontro justamente à ideia nuclear do Estado de direito, da limitação do poder político, pois quanto mais órgãos estatais controlando uns aos outros, menor será a incidência de violação aos direitos fundamentais, mormente, na persecução penal jurisdicional, que se inicia com a investigação criminal. (g. n.)


Ora, aqui temos o primeiro devaneio: a Polícia Civil, assim como o Ministério Público, são órgãos com funções meramente administrativas, sendo o primeiro integrante expressamente do Poder Executivo, e como tal, não integra a persecução penal jurisdicional, senão que de forma secundária, como na hipótese do artigo 13, inciso I, do Código de Processo Penal, caso o juiz requisite alguma informação à autoridade policial para a instrução processual.

Outrossim, de acordo com recente decisão da Suprema Corte, verbis:

Nos termos do § 6º do art. 144 da Constituição Federal, os organismos policiais civis integram a estrutura institucional do Poder Executivo e estão diretamente subordinados ao Governador do Estado. Tal comando constitucional inviabiliza, em relação aos seus dirigentes, isto é, os delegados, a atribuição tanto de autonomia administrativa e financeira quanto de independência funcional. (...). A outorga ao delegado de polícia de tratamento jurídico e de prerrogativas próprias dos membros do Judiciário e do Ministério Público não se compatibiliza com a vinculação hierárquico-administrativa ao Chefe do Executivo e discrepa do modelo concebido pela Carta da República. [ADI 5.517, rel. min. Nunes Marques, j. 22-11-2022, P, DJE de 12-12-2022.]


Ainda que adotássemos uma visão mais garantista como a de Luigi Ferrajoli (2022, p. 617), ainda assim a Polícia Civil estaria contida no Poder Judiciário, não sendo um quarto poder ou órgão independente. Eis suas palavras:


Em particular, a polícia judiciaria, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário o qual deveria, exclusivamente, depender. (g. n.)


Dessa forma, é indefensável o enquadramento da Polícia Judiciária como órgão da persecução penal jurisdicional, já que não é parte no processo, sendo este composto apenas pelo juiz, pelo Ministério Público e pela defesa, seja ela privada ou realizada pela Defensoria Pública, além de auxiliares eventuais, como os Peritos e Intérpretes.

Conforme o excerto de do ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado,


Conforme já foi dito, o Juiz, representando o Estado, é um sujeito processual. Atua como dirigente do órgão que fica eqüidistante dos demais sujeitos e com a responsabilidade de solucionar o litígio. Há, conseqüentemente, uma relação que se estabelece entre o Estado-Juiz e os demais sujeitos. Para uma parte da doutrina, a relação havida é de forma horizontal entre autor e réu, ficando o juiz em posição amesquinhada e despojado da proeminência que tem no vínculo. De outro lado, afirma-se que a relação se firma entre o autor e o juiz e entre este e o réu. O juiz é a figura central, não existindo nexo entre as partes A corrente mais aceita é a intitulada de “relação triangular” desenvolvida por Bulow e Wach e, entre nós, aceita por Gabriel Rezende, Hélio Tornaghi, Alfredo Buzaid, Galeno de Lacerda, Luiz Eulálio Vidigal, Adhemar Raimundo da Silva, Ada Pellegrini Grinover, José Frederico Marques, Moacir Amaral Santos, Cândido Rangel Dinamaro e outros. A Relação é triangular: entre autor e o juiz, entre este e o réu (e vice-versa) e entre o autor e réu reciprocamente. Pelo visto, o juiz se constitui em um dos sujeitos principais do processo, não só por ser seu condutor, mas por quem vai, em nome do Estado, se efetivar a prestação jurisdicional. (g. n.)



Nessa senda, com maior acerto escreveu o Delegado de Polícia José Adonias Gomes dos Santos (2024, p. 69/70), quando asseverou que “a Polícia é parte equidistante no processo criminal” e “no sistema acusatório há nítida separação entre as funções de acusar, defender e julgar” e finalmente “a investigação criminal, fase pré-processual, tem dupla função, preservadora e preparatória”.

Avançando, a autoridade policial em destaque afirma que


A jurisdição não se resume apenas na função judicial, é mais amplo. José Afonso da Silva (2016, p. 110) ao citar Maurice Duverger, menciona que “a função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesses”. Ora, a Polícia Judiciária, por exemplo, ao emitir o juízo sobre a prisão em flagrante, aplica o direito ao caso concreto e resolve, mesmo que provisoriamente, logo após o calor dos fatos, a contenda social de forma emergencial. A Polícia Judiciária “é das peças mais importantes e fundamentais da justiça penal” (SILVA, 2002, p. 38). (g. n.)



Aqui, com toda firmeza, reside outro equívoco etimológico: as policias administrativas e de segurança, ao lavrarem um auto de infração de trânsito ou decidirem pela custódia em flagrante de alguém, também aplicam o direito ao caso concreto, de forma provisória, já que a definitividade é uma característica inerente da jurisdição. Portanto, isso por si só não basta para caracterizar essas atividades como jurisdicionais.

Em prosseguimento, o autor policial destaca que


Não se pode aceitar que apenas membros do Judiciário e do Ministério Público exerçam jurisdição penal pelo simples fato de assim estar previsto em eventual constituição federal, devendo-se observar todo o sistema jurídico, como os princípios, pois a atuação jurisdicional não pode ser direcionada para este ou aquele órgão, mas deve considerar a atividade jurídica desempenhada na aplicação do direito ao fato concreto. (g. n.)


Nesse ponto, o autor beira a heresia ao afirmar que nossa Constituição da República seria eventual e poderia ser desconsiderada. Talvez essa visão míope seja o resultado de anos de desvirtuamento do texto constitucional pelo ativismo de nosso Tribunal Constitucional, com papel de legislador positivo, à revelia da Súmula Vinculante 371.

Sem embargo, segundo obtempera o Ministro do STF Luís Roberto Barroso (2022. p. 295),


As normas constitucionais são espécies de normas jurídicas. Aliás, a conquista desse status fez parte do processo histórico de ascensão científica e institucional da Constituição, libertando-a de uma dimensão estritamente política e da subordinação ao legislador infraconstitucional. A Constituição é dotada de força normativa e suas normas contêm o atributo típico das normas jurídicas em geral: a imperatividade. Como consequência, aplicam-se direta e imediatamente às situações nelas contempladas e sua inobservância deverá deflagrar os mecanismos próprios de sanção e de cumprimento coercitivo. (g. n.)

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Portanto, não há como desconsiderar a Constituição Cidadã, e a interpretação de suas normas está limitada pelos seus limites textuais. Não podemos dizer que banana é uva e ficarmos imunes ao controle de constitucionalidade.

De outro vértice, nas lições de Eliomar Pereira (2013, p. 28), "a autoridade de polícia judiciária está submetida à lei diretamente".

Presentemente, trata-se de um nonsense, já que qualquer agente público está submetido diretamente à lei e aos demais princípios, nos termos do artigo 37, caput, da Lei Maior.

Nesse particular, de forma lapidar o Procurador da República Paulo Queiroz (2023, p. 174) salientou que


Além disso, somos todos parciais ou partidários no sentido moral, jurídico ou político do termo (são as pré-compreensões de que fala Gadamer), pois, a partir da nossa formação moral, jurídica e política etc., temos de nos posicionar sobre temas que nos afligem (ou não) desde sempre: somos contra ou a favor da descriminalização do aborto? Somos contra ou a favor do comércio e uso de drogas? Quão democráticos, laicos ou preconceituosos somos? Somos mais ou menos libertários, mais ou menos garantistas, mais ou menos punitivistas? A interpretação é um momento da experiência do homem no mundo. (g. n.)


E mais a frente, o autor finaliza afirmando que a “imparcialidade ou impessoalidade é um princípio da administração pública (CF, art. 37), e, pois, aplicável a todos os agentes públicos”.

Por conseguinte, qualquer legislação que regule a instituição policial civil deve se compatibilizar com a Magna Carta e não o contrário, como o fez a Lei Federal n. 14.735 de 2023 ao aduzir que as policias civis são essenciais à justiça criminal à rebeldia da constituição.

Da mesma forma a PEC n. 102 de 2011 no Senado, cuja função é fugir do controle externo do Ministério Público para se submeter a um controle corporativista, como sói ser no Conselho Nacional de Justiça e no Conselho Nacional do Ministério Público, a despeito de sua composição mista.

Concluindo, ao observamos alguns excertos doutrinários, entendemos que talvez seja melhor que as polícias judiciárias continuem subordinadas aos Chefes do Poder Executivo (Presidente e Governadores), como forma de evitar certos rompantes de prodigalidade e pompa, ou parafraseando Lênio Luiz Streck, um delegado solipsista, uma espécie de Robinson Crusoé, que decidiria, não segundo a constituição, mas segundo a sua consciência (e vontade) apenas.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

DELGADO, José Augusto. Sujeitos do Processo. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/17162/sujeitos_processo_jose_augusto.pdf

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. 3ª ed. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

GOSSEL, Karl Heinz. El derecho procesal penal em el Estado de Derecho. 1. ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2007.

JORGE, Higor Vinícius Nogueira. Polícia Judiciária e Ministério Público – Uma Relação de Interdependência Funcional no Sistema de Justiça Criminal. São Paulo: JusPodivm, 2024.

PEREIRA, Eliomar da Silva; DEZAN, Sandro Lúcio. Investigação criminal: conduzida por delegado de polícia – comentários à Lei 12.830/2013. Curitiba: Juruá, 2013.

QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal – Introdução. 4. ed – São Paulo: Juspodivm, 2023.





1 Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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