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O populismo no século XXI: o fenômeno acerca da teoria democrática clássica e contemporânea

02/09/2024 às 16:43
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Resumo: O objetivo deste ensaio é discutir o fenômeno do populismo do século XXI à luz de alguns teóricos da teoria democrática clássica, histórica e empírica como Rousseau e Locke até Przeworski e Rosanvallon. O argumento central desse ensaio é que, à luz dos teóricos da democracia, o populismo é um fenômeno que nasce como uma deformação dos paradoxos democráticos naturais. A definição do populismo como antidemocrático, no entanto, passa fundamentalmente pelo conceito de democracia a ser trabalhado. Na conclusão há uma breve discussão sobre o populismo no Brasil e como as instituições democráticas lidaram com ele numa ótica de Rosanvallon.


Introdução

Os populismos estão em ascensão no mundo democrático. O gráfico 1 mostra o crescimento da prevalência do termo “populismo” entre 1950 e 2019.:

De maneira crescente, partidos dos sistemas partidários democráticos tradicionais vêm sendo substituídos por novos partidos que possuem características e ideologias autoritárias (Przeworski, 2019). O fenômeno, entretanto, não é exclusivo das novas democracias da terceira onda de Huntington (1993) que ainda são relativamente recentes e se encontram em franco processo de construção de instituições democráticas. Pelo contrário, o populismo também tem avançado no que Dahl (2003) convencionou chamar de “democracias avançadas”, um seleto grupo de países que, durante pelo menos 50 anos, permaneceu vivendo sob o regime democrático.

O populismo é um fenômeno abrangente que atinge os países que inventaram a institucionalidade das repúblicas democráticas modernas (Donald Trump nos Estados Unidos e Marine Le Pen na França), os países que foram pioneiros na construção do welfare state (Democratas da Suécia na coalizão de governo), até países como o Peru, que se democratizaram somente no início deste século. O populismo, então, pode ser entendido como um fenômeno universal da democracia que, nas palavras de Rosanvallon (2021), “está revolucionando a política do século 21”.


A natureza teórica paradoxal da democracia

A democracia é discutida de maneira normativa há séculos. Entre os pioneiros da teoria democrática clássica estão John Locke e Jean-Jacques Rousseau, dois autores que iniciaram tradições de pensamentos diferentes na teoria democrática. De maneira resumida, os autores entram em confronto na medida em que discutem um tensionamento que acompanha a própria natureza democrática: o tensionamento entre democracia e liberalismo, ambos endógenos a conceitos mais simples como majoritarianismo e individualismo. Segundo John Locke, indivíduos possuem direitos inalienáveis e irrevogáveis como os direitos à vida, liberdade e propriedade, implicando-se um governo limitado que respeite esses direitos. Rousseau, por sua vez, defende uma radicalização do ideal democrático: a vontade geral é a base da soberania e da legitimidade política. Nessa visão Rousseauniana, a vontade geral é absolutamente suprema e deve prevalecer sobre vontades individuais se essas duas em algum momento entrarem em conflito. Previsivelmente, o choque entre ideias é inevitável. Essa tensão também toma corpo nas ideias de Rosanvallon (2021) onde é argumentado que a democracia é um regime paradoxal por natureza e possuidor de diversas aporias. Segundo o autor, toda tentativa de construção do regime democrático é justamente uma tentativa de lidar com os paradoxos inerentes à democracia, como o paradoxo já citado da democracia e do liberalismo, mas também outros paradoxos como a ideia de razão contra o majoritarianismo e a ideia de representação contra a autonomia. Segundo Rosanvallon, é a tentativa de simplificar essas tensões e aporias a responsável por construir a semente para as deformações e patologias do regime democrático como o populismo.


A natureza eleitoral e minimalista da democracia

A democracia como regime constitucional nasce como fruto dessa tensão: os federalistas possuíam uma preocupação legítima acerca da criação de tiranias da maioria e por isso desenharam uma engenharia institucional que nascesse do equilíbrio que respeitasse o majoritarismo intrínseco ao espírito democrático mas não oferecesse um risco às individualidades conquistadas através das declarações de direitos que aconteceram durante os processos históricos (Dahl, 2003). O entendimento do conceito de populismo, dessa maneira, precisa acontecer de maneira posterior ao entendimento do conceito de democracia. Democracia, assim como populismo, é um conceito de difícil definição e que significa muitas coisas para muitas pessoas e autores diferentes. Isso acontece pois, assim como a maioria dos conceitos das ciências sociais, a democracia é um fenômeno não observável e que é constituído de uma série de componentes objetivos e subjetivos. De maneira sistemática, alguns dos principais participantes do debate da última década da Ciência Política trataram o populismo como um agente importante no processo de “morte da democracia”. As políticas adotadas por lideranças populistas configuraram nas variáveis explicativas dos processos de autocratização em inúmeros estudos empíricos.

Aqui e em grande parte da literatura da Ciência Política, a democracia é resumida a uma visão procedimentalista das eleições. Przeworski (2018) define a democracia como a existência de eleições competitivas que são caracterizadas por sua vez na existência da incerteza quanto ao resultado do pleito eleitoral: “as long as results of elections are uncertain, as long as the competing parties can influence only the probability of their victory but must leave room for surprise, elections are competitive”. Em uma obra mais recente, Przeworski (2019) define democracia como o “regime no qual incumbentes perdem eleições e vão embora quando perdem”1. A democracia é aqui expressada intrinsecamente pelo processo pelo qual a vontade geral é expressa: as eleições. Os valores e direitos, no entanto, são mais subjetivos e variam na interpretação das análises, o que torna a tarefa de explicar a interação entre a democracia e o populismo muito difíceis.


A natureza horizontal da democracia

Embora as eleições sejam o principal mecanismo de caracterização e responsabilização de governantes, a democracia não funciona somente através dos ritos eleitorais. Rosanvallon com sua tetralogia tenta mostrar como existem outras formas de legitimação democrática para além do pleito eleitoral. Suas obras em conjunto defendem a ideia de que a legitimação política acontece através do voto, mas também acontece através da institucionalização da desconfiança que os governados têm sobre os seus governantes. Essa desconfiança é quem legitima o surgimento e a atuação de instituições de controle e de accountability horizontal na linguagem de O’Donnell (1998). A questão acerca do controle de governantes data dos tempos do nascimento da democracia. Os autores clássicos como Montesquieu e os Federalistas pensaram nas instituições de freios e contrapesos como uma maneira de evitar abusos da autoridade política. Nas palavras de James Madison, “se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo. Se os homens fossem governados por anjos, não haveria necessidade de controles internos e externos”. Montesquieu, por sua vez, no clássico “O espírito das Leis”, argumenta: “A experiência constante nos mostra que todo aquele investido com poder está apto a abusá-lo… é necessário pela própria natureza das coisas que o poder seja um freio ao poder”. De maneira clássica, a accountability horizontal é produzida pelas instituições de freios e contrapesos dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Vetos mútuos e os controles constitucionais entre os poderes são as maneiras mais antigas e comuns de controle e responsabilização exercida para além das eleições.

Ainda segundo O’Donnell, “para que esse tipo de accountability (horizontal) seja efetivo, devem haver agências estatais autorizadas e dispostas a supervisionar, controlar, retificar e/ou punir ações ilícitas de autoridades localizadas em outras agências estatais. As primeiras devem ter não apenas autoridade legal para assim proceder mas também, de fato, autonomia suficiente com respeito às últimas. Esse é, evidentemente, o velho tema da divisão de equilíbrios dos poderes e dos equilíbrios e controles entre eles”. As instituições de accountability horizontal, logo, podem ser representadas pelas “instituições clássicas do executivo, do legislativo e do judiciário, mas nas poliarquias contemporâneas também se estende por várias agências de supervisão, como os ombudsmen, e as instâncias responsáveis pela fiscalização das prestações de contas” (O’Donnell, 1998). Segundo Rosanvallon (2021), o controle exercido pelas agências reguladoras e os constrangimentos executados pelos cidadãos são formas de expressão tão legitimamente democráticas quanto a própria eleição dos governantes.


Populismo: democrático ou antidemocrático?

Para chegar a conclusões mais profundas acerca do populismo, entretanto, também é necessário discutir o conceito de populismo. De maneira geral, segundo Funke et al (2022), a palavra populismo chegou a historicamente possuir pelo menos 4 definições que foram amplamente aceitas e utilizadas. No entanto, os autores optam por uma definição que vem ganhando força entre cientistas políticos e economistas que trabalharam com o tema nos últimos anos (Przeworski, 2019; Rodrik, 2018; Norris, 2016) e que é associada a Mudde (2004): populismo, segundo autor, é uma estratégia política que produz sua narrativa centrada num conflito entre “o povo” contra “as elites”. Segundo Rosanvallon (2021), o “modelo ideal” de populismo é constituído em 5 pilares principais: concepção unificada de povo, teoria da democracia polarizada, a representação do povo em um líder, características econômicas nacionalistas/protecionistas e por fim a constituição de um regime de paixões e emoções.

Todavia, por quais motivos esses movimentos são catalogados como antidemocráticos e são perigosos à própria sobrevivência da democracia? Há discordâncias nesse entendimento: Segundo Przeworski (2019, 2024), o populismo não é anti-democrático por natureza. Segundo o autor, os atuais movimentos populistas não são antidemocráticos pois “não propõem substituir as eleições por nenhum outro método de seleção de governantes. Mesmo quando anseiam um desejo por líderes fortes, esses movimentos querem que esses líderes sejam eleitos”. Dessa maneira, o populismo pode ser entendido como um movimento anti-institucional por rejeitar o modelo de democracia representativa e por almejar substituí-lo por um modelo de democracia direta (Przeworski, 2019). O populismo também pode, dessa forma, ser entendido como um fenômeno “iliberal” nas palavras do porta-voz do populismo no mundo mas também mestre em Ciência Política por Oxford, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Em outras palavras, a definição do populismo como um fenômeno antidemocrático passa primeiro pelo esclarecimento do conceito de democracia e de seus componentes. Se a democracia é entendida no seu sentido minimalista, antidemocráticos são aqueles que contestam as características fundamentais da democracia como eleições e freios e contrapesos (Przeworski, 2024).


Subversão - sub reptícia e democratura

Na sua obra, Rosanvallon faz uma série de críticas ao “populismo real” e também ao populismo como ideal político. Quando se refere à críticas do populismo real, o autor se volta contra práticas que são costumeiramente utilizadas por políticos populistas como o uso de referendos e elenca uma série de problemas advindos desse tipo de práticas como falhas na cadeia de responsabilização por políticas que fossem decididas sempre através de referendos e problemas práticos também relacionados à implementação dessas políticas. No prosseguimento da seção crítica do “Século do populismo”, o autor nos apresenta 3 tipos de democracia que ele considera que são democracias limites, entre elas, a democratura: um tipo de regime iliberal que preserva os procedimentos democráticos. Nesse trecho da obra, o diálogo com a ciência política empírica é constante: Przeworski (2019), Levitsky e Ziblatt (2018) mostraram como acontecem as erosões da democracias modernas, alegando que uma democracia está em risco quando há rechaço de normas democráticas básicas como negação de legitimidade política de oponentes, da tolerância, o encorajamento da violência e restrição da mídia e da oposição. Os autores também trabalham uma ideia posteriormente trabalhada por Przeworski (2019) como o conceito de subversão sub-reptícia- de que reversões democráticas atuais acontecem em linguagem diferente das que aconteciam no passado, de maneira mais gradual e menos abrupta, ou seja, de maneira constitucional e não mais através de golpes militares. A definição de democratura de Rosanvallon se assemelha à ideia de regimes híbridos de Levitsky (2010) e ao conceito de subversão-sub reptícia de Przeworski (2019) pois esclarece a maneira como o populismo perpassa o caminho da democracia e deságua num regime limite que por fim acaba transicionando para uma ditadura.


Conclusão

O populismo é antidemocrático quando colocado em contraposição à democracia representativa e suas instituições contramajoritárias, mas do ponto de vista de outros tipos da democracia -mais minimalisticamente radicais-, o populismo pode ser considerado, na verdade, um fenômeno ultra-democrático e até mesmo uma prática política Rousseauniana, se forem consideradas as características em comum de ambos que rejeitam as individualidades e os potenciais controles para o exercício do poder. Se considerarmos a democracia como um ideal inalcançável, todavia, o populismo também é fruto da radicalização das tensões democráticas naturais. Nos ideais de Rosanvallon, o populismo é entendido como uma consequência da tentativa das sociedades de tentar alcançar ideais democráticos através da simplificação que são na verdade inalcançáveis. A teoria do populismo do autor francês é construída em paralelo à sua teoria acerca da democracia e do seu funcionamento e o populismo acontece quando as sociedades tentam lidar com as aporias e paradoxos democráticos de maneira simplificativa.

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No entanto, falando na linguagem de regimes políticos, não há como falar de democracia sem falar em freios e contrapesos. A simplificação da democracia como sinônimo de procedimentos eleitorais e da incerteza advinda deles largam à própria sorte um regime político que, assim como qualquer outra construção humana, pode falhar. Landemore (2018) questiona como as vontades coletivas muitas vezes podem estar enganadas, além de, claro, serem sempre um instrumento imperfeito para agregação de preferências individuais. Com esses fatos em mente, a democracia não pode ser reduzida apenas a procedimentos eleitorais. Apesar de o componente majoritário ser o coração da teorização do conceito e do ideal democrático, os controles instituídos não podem jamais ficar de fora da receita. Partindo do pressuposto Rosanvalloniano de que a legitimidade democrática parte de dois braços: das eleições e das instituições horizontais de controle, o populismo é antidemocrático pois tenta cortar uma das fontes dessa legitimidade quando rejeita e deslegitima os controles advindos das instituições.

Contemporaneamente o mundo tem passado por testes acerca de líderes populistas: o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, uma burocracia ligada ao sistema judiciário, tornou Bolsonaro, “o mais extremista dos líderes populistas de direita que surgiram no mundo nas últimas décadas” (Barros, 2022), inelegível por propagar dúvidas acerca do sistema eleitoral brasileiro para embaixadores. Nos Estados Unidos da América, Donald Trump, que colocou em cheque o resultado das eleições norte-americanas de 2020 e incentivou o ataque ao Capitólio em 2021, pode voltar a ser presidente num futuro próximo. Diante da inelegibilidade de Bolsonaro e da atuação do TSE, cientistas políticos respeitáveis defenderam que “é preferível tirar Bolsonaro pelo voto”. Do ponto de vista Rosanvalloniano, no entanto, as instituições de controle brasileiras, como instituições imprescindíveis para a democracia, cumpriram seu papel.


Referências

BARROS, Celso Rocha de. PT, uma história. Companhia das Letras. São Paulo: , 2022.

Dahl, R. A. (2003). How democratic is the American Constitution?. Yale University Press.

FUNKE, Manuel; SCHULARICK, Moritz; TREBESCH, Christoph. Populist leaders and the economy. 2020

FOLHA DE SÃO PAULO. É preferível que mercado eleitoral, em vez de juízes, derrote Bolsonaro, diz cientista político. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 jun. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/06/e-preferivel-que-mercado-eleitoral-em-vez-de-juizes-derrote-bolsonaro-diz-cientista-politico.shtml. Acesso em: 12 jul. 2023.

Huntington, S. P. (1993). The third wave: Democratization in the late twentieth century (Vol. 4). University of Oklahoma press.

NORRIS, P.; INGLEHART, R. Cultural backlash: the rise of autoritharian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.

LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. Competitive Authoritarianism. Hybrid Regimes After the Cold War. New York: Cambridge University Press, 2010.

LANDEMORE, Hélène. Democratic Reason. Politics, Collective Intelligence and the Rule of the Many. Princeton: Princeton University Press, 2018.

Locke, John. "Segundo Tratado sobre o Governo Civil". Ed. Vozes, 2016.

Rousseau, Jean-Jacques. "O Contrato Social". Ed. Martin Claret, 2011.

O'Donnell, G. (1998). Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua nova: revista de cultura e política, 27-54.

PRZEWORSKI, Adam. Por que eleições importam? Cambridge: Polity Press, 2018.

Przeworski, Adam. Who Decides What Is Democratic?. (2024). Journal of Democracy, 35(3), 5–16.

Przeworski, A. (2019). Crises of democracy. Cambridge University Press.

Rosanvallon, P., & Goldhammer, A. (2008). Counter-democracy: Politics in an age of distrust. (Vol. 7). Cambridge University Press.

ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo. História, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2021.

ROSANVALLON, Pierre. Good Government. Democracy beyond elections. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2018.

ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy. Impartiality, Reflexivity, Proximity. Princeton: Princeton University Press, 2011


Nota

1 A centralidade nas eleições é evidente, enquanto, no entanto, há uma espaço vazio argumentativo: em países onde há eleições (que, como o próprio autor diz, nunca serão justas) onde incumbentes não andam perdendo, mas ainda assim os resultados eleitorais cercados por uma incerteza relativa, há democracia? Nesses casos, a linha fica muito tênue e a caracterização de democracia existente parece insuficiente.

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