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Juiz de garantias: um sonho possível?

05/09/2024 às 10:15
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O nosso Código de Processo Penal ainda contempla muitos traços do vetusto sistema inquisitivo em suas disposições e, assim, enxerga a investigação e a apresentação de provas deva ser acompanhadas pelo mesmo juiz que irá proferir a final sentença.

Porém, existem episódios em que o juiz determina medidas ainda no âmbito do inquérito que comprometem sua devida imparcialidade, formatando um prévio conceito sobre o indiciado.

De fato, a higidez do princípio da imparcialidade do juiz, serve para manter o julgador em posição equidistante das partes, dado que distintos os interesses que os animam, estas possuem peculiar interesse na lide, aquele, interesse na justa composição da lide.

É curial para a validade da relação jurídica processual que o julgamento seja justo e equânime. Carnelutti apud Moares referiu-se que o princípio da imparcialidade consiste em compreender que um julgador imparcial corresponde àquele que age em prol das duas partes igualmente, sem fazer distinções, e sim, abrangendo tanto o autor como o réu, sem a prevalência de um sobre o outro.

A criação do juiz de garantias fora nesse sentido para garantir a licitude do processo penal, preservando a integridade do julgamento e na atuação do magistrado apenas no âmbito investigativo, sendo fiel tutor dos direitos individuais, fiscal da legalidade dos atos e com a possibilidade de atuar na fase processual.

Recordemos que a atual e vigente Constituição Federal brasileira não mais admite os elementos do sistema inquisitivo no CPP e, traduz em ser uma válida alternativa para enfim consolidar as características acusatórias e democráticas do sistema processual penal, além de aperfeiçoar a atuação e estrutura do Judiciário brasileiro.

Originalmente, o referido instituto fora proposto no Anteprojeto do Novo CPP, o Projeto 8.045/2010 que permanece em tramitação e trouxe grandes ideais garantistas, previsto nos artigos 14 e 17, apontando um magistrado que atua unicamente na fase de investigação e que não poderá participar da fase processual da persecução penal. Contribuindo com novo padrão para prevenção e assegurar os direitos e garantias fundamentais do cidadão.

A inclusão do Juiz das Garantias ocorreu durante a passagem do texto pelo Congresso, que também mudou cerca de 30% do projeto que foi proposto originalmente pelo então ministro da Justiça, Sérgio Moro.

Com a entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019 foi inserida ao ordenamento jurídico brasileiro a figura do “Juiz das Garantias”, instituto novo em nossa sistemática processual penal. A nova figura é um ponto fundamental na mudança que se pretende operar o Código Processual Penal, para assim atingir maior plenitude a respeito da justiça.

O novo instituto ficará responsável por decisões tomadas durante a investigação, como por exemplo:

  • Decidir sobre a autorização ou não de escutas, de quebra de sigilo fiscal, de operações de busca e apreensão;

  • Requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

  • Julgar alguns tipos de habeas corpus;

  • Decidir sobre a aceitação de acordos de delação premiadas feitos durante a investigação;

  • Determinar o trancamento do inquérito quando não houver fundamentos suficientes para a investigação.

O juiz de garantias não é inédito basta apreciar o direito comparado, sendo usado há algum tempo em países como a Itália, EUA, Argentina e Chile.

Nos EUA, é adotado em apenas alguns Estaddo da confederação. E, apesar de possuírem características peculiares, mantém a ideia de que é necessária uma especialização do juiz que atua na fase investigativa.

Na Itália, com o CPP de 1988, o juizado de instrução fora extinto e, em seu locus, fora criado o giudice per le indagnini preliminar com as atribuições centralizadas na fase investigativa. E, assim, o processo passou a ter três fases, a primeira, a de investigações preliminares, conduzida pelo Ministério Público, juntamente à polícia judiciária.

E, tal fase possui objetivo de colher as provas para a compositura da ação penal, devendo as provas ser novamente confeccionadas na fase de instrução. E, tal fase conta com sigilo, e ausentes estão o contraditório e a ampla defesa, o que se aproxima com o atual inquérito policial brasileiro.

Na segunda fase, chamada de audiência preliminar, o juiz baseado nas provas colhidas nas investigações decidira o recebimento ou não da ação penal proposta pelo Ministério Público. E, tal julgador é também responsável por decretação de qualquer medida nas investigações, tal como interceptação telefônica e outras medidas cautelares (inclusive prisão cautelar).

Na terceira fase, será designado outro juiz para julgar o caso. Assim, possibilitará que seu convencimento seja construído somente com as provas obtidas nesta fase, garantindo o contraditório e a ampla defesa do indivíduo.

Neste caso, pode valer-se de provas produzidas em momento anterior somente se produzidas com garantia do contraditório das partes, como as provas irrepetíveis.

Nos Estados Unidos, o processo penal é subdividido em três fases, existindo, na segunda fase, um modelo semelhante ao Juiz das Garantias, uma vez que há um controle na legalidade das provas, realizado pelo juiz, assegurando, dessa forma, a garantia dos direitos fundamentais do sujeito passivo.

A segunda fase do procedimento penal norte-americano se encontra na fase de adjudicação (adjudicador stage) na qual o magistrado encarregado analisa as provas, podendo descartá-las ou admiti-las. Essa análise se dá após o ato se Prosecution, que é o ato formal de acusação contra o suspeito.

Se o promotor decide acusar, ele elabora um documento formal – equivalente à nossa denúncia (compliant)-, e submete o caso à apreciação judicial.

Dois juízes atuam no processo em momentos distintos, sendo que um deles atua na fase do inquérito policial, para controle das ações policiais, e o segundo atua posteriormente, na fase processual, sentenciando de acordo com o que está nos autos.

Acerca do instituto, de imediato, surgiram inúmeras dúvidas, sobretudo quanto à efetividade e eficácia deste na realidade prática de um judiciário ainda afetado por problemas logísticos e estruturais, especialmente no âmbito das comarcas de vara única.

Os defensores da existência de um Juiz das Garantias no sistema de persecução penal brasileiro, tem-se que estes declaram que o instituto auxiliará minimizando a cultura de excessos e certezas no exercício da jurisdição, tornando, assim, o rito processual mais eficaz.

O Juiz das Garantias permitirá o desenvolvimento do direito de defesa, visto que: O novo projeto amplia os mecanismos de restrição impostos ao investigado, apresentando alternativas para o juiz substituir o encarceramento, utilizando a cadeia com mais parcimônia. As medidas abrangem suspensão do exercício de função pública, veto para frequentar determinados lugares, comparecer periodicamente em juízo e monitoramento eletrônico.

O propósito de designar um juiz exclusivamente para a fase de inquérito policial é positivo, uma vez que outorga maior independência ao magistrado responsável pela fase de conhecimento, pois o mesmo não se relacionará com os procedimentos que ocorrem posteriormente, como eventuais medidas cautelares e diligências deferidas anteriormente em oposição ao acusado.

Assim, poderá decidir livremente sobre a causa, sem comprometimento psicológico, nem ligação a nenhum tipo de prova obtida na fase de investigação.

Nesse sentido, o referido instituto é visto como o mais harmônico em relação à inclinação do direito penal moderno em todo o mundo, porquanto a atuação de dois juízes possibilita a obtenção de duas visões: uma conduzindo judicialmente a investigação, e a outra observando as provas produzidas na fase preliminar e decidindo o mérito da causa.

No atual sistema criminal brasileiro, muitos magistrados estão perdendo a concepção sobre qual é a sua exata função na fase preliminar e também quais os seus limites quanto ao tratamento com o acusado.

Aqueles que defendem o referido instituto atribuem a este a defesa do princípio da imparcialidade, a proteção dos direitos e garantias fundamentais do suspeito ou indiciado, como a exploração de sua imagem, bem como acreditam na redução do encarceramento, uma vez que o modelo apresenta alternativas de substituição ao juiz.

A distribuição cruzada é considerada como viável, pois comarcas que possuem mais de um juiz que forem próximas de comarcas que possuam apenas um magistrado atuando poderiam ceder juízes para que atuassem como Juiz das Garantias, inclusive por meio online, o qual, nos últimos tempos, mostrou-se eficiente e célere.

Há também quem discorde da implantação do Juiz das Garantias no sistema de persecução criminal, que está presente no projeto do novo Código de Processo Penal Brasileiro.

O principal seguimento questionador do Juiz das Garantias é o dos magistrados, uma vez que, invariavelmente, será o juiz tolhido de realizar o ato mais próprio de sua atuação, ou seja, o de julgar.

Assim, há uma queda de expectativa da classe de magistrados na aplicação desse novo instituto, uma vez que, a referida modificação é prejudicial e pouco contribuirá à sistemática processual, visto que os vícios existentes exigem postura muito mais incisiva e revolucionária.

Além disto, a atividade característica dos magistrados a qual está vinculado será desvirtuada, considerando que o Poder Judiciário será formado de membros com funções meramente provisórias e reduzidas.

A norma inviabiliza a atuação funcional plena e fere a autonomia dos membros do Ministério Público, além de contrariar o sistema acusatório e os princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade”.

O Juiz das Garantias comprometeria a celeridade do expediente, pois buscaria certezas e não se satisfaria com probabilidades, gerando um atraso na instrução preliminar da ação penal, o que não é admitido.

A inaplicabilidade do instituto ocorre, uma vez que é imprescindível a participação do magistrado na elaboração da prova, já que o contato pessoal permite uma compreensão única, que pode não ser devidamente apreendido diante da simples documentação de atos processuais.

Um Estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2020, p. 14), caso haja a implantação do Juiz das Garantias, o instituto promoverá modificações em questões basilares da estrutura do processo penal, isto é, a ruptura das competências e atribuições funcionais entre os magistrados que operam na fase investigativa e na fase processual propriamente dita.

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Ainda, com a implantação do Juiz das Garantias, competirá ao juiz que exerce a função na etapa pré-processual, a manutenção da legalidade da investigação e o resguardo dos direitos individuais do investigado, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Assim, consolidar-se-á a condição do acusado como sujeito do processo penal, titular de direitos e garantias que devem ser tutelados pelo Poder Judiciário.

Uma das grandes consequências do implemento do Juiz das Garantias no Brasil será o controle da legalidade da investigação e a resguarda de direitos e garantias na fase em comento, qual seja, a fase do pré-processual.

Lei Anticrime sancionada pelo Presidente da República em 2019 foram ajuizadas diversas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) em face dos arts. 3-A ao 3-F, art. 157, § 5, art. 28, caput, e art. 310, § 4, do CPP, adicionados ao referido código pela Lei 13.964/2019.

O Supremo Tribunal Federal ao apreciar as ADI nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, através de uma decisão liminar proferida pelo Ministro Luiz Fux, suspendeu por prazo indeterminado a vigência dos dispositivos supracitados, que foram incorporados ao Código de Processo Penal.

A medida foi necessária, pois a criação do Juiz das Garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro, alterando de forma direta e estrutural o funcionamento das unidades judiciárias criminais pelo país.

As ações diretas de inconstitucionalidade supracitadas referem a criação de um novo órgão jurisdicional sem que haja estudo prévio do impacto econômico, organizacional e orçamentário em todo o país, tornando, dessa forma, a medida de implantação do Juiz das Garantias inaplicável.

Os processos em que já houve instrução e julgamento, uma vez que poderiam ser alvo de questionamentos acerca de anulação ou, os procedimentos que estão tramitando, se haveria a modificação da sua competência, o que constitui insegurança jurídica e coloca em risco a punibilidade de diversos criminosos, em razão de lacunas nessas questões processuais, que poderiam postergar as ações penais no tempo, possibilitando a prescrição.

Consoante alegado pelas associações de magistrados o Juiz das Garantias viola o princípio do juiz natural, disposto no art. 5º, LIII, da CF/88, posto que a jurisdição é uma e indivisível, não sendo aceitável a atuação de dois juízes diferentes de igual instância no mesmo processo.

Outros pontos discutidos nas ações diretas de inconstitucionalidade nº 6.298, nº 6.299, nº 6.300 e nº 6.305, vislumbra-se a ocorrência de vício de inconstitucionalidade formal, pois a implantação do Juiz das Garantias violaria a autonomia administrativa e financeira do judiciário e o pacto federativo, pois seria aplicado sem prévia consulta aos tribunais.

Os casos concretos dessa aplicação de direitos, obtidos por meio de julgados do Supremo Tribunal Federal e de tribunais do país, conclui-se que:

  1. a fundamentação, no caso de prisões cautelares, é realizada de modo subjetivo e superficial, beirando a parcialidade, uma vez que considerado pelo magistrado o seu próprio juízo de valor e não os requisitos para a manutenção da segregação;

  2. verifica-se a ausência de zelo aos direitos fundamentais do acusado, principalmente durante o inquérito policial, considerando, especialmente, o caso de tortura narrado em um dos casos concretos, bem como a manutenção de prisões preventivas por tempo excessivo;

  3. os casos de erro do judiciário são, em sua maioria, referentes à identificação do acusado de modo equivocado pela vítima ou testemunhas, sendo cristalino que a cor da pele influencia no reconhecimento.

Ainda que não verificada uma parcialidade explicita do juiz é evidente que a sua função como mantenedor das garantias e direitos do acusado na fase pré-processual e processual não é realizada de modo íntegro em todos os processos.

Registrou-se, ainda, que o Código de Processo Penal em vigor ainda contempla diversos traços do sistema inquisitivo em suas disposições, prevendo que a investigação e a apresentação de provas sejam acompanhadas pelo mesmo juiz que proferirá a sentença da causa.

Assim, foi posta em análise uma alternativa ao resguardo de um julgamento justo, idôneo e lícito, garantindo os direitos do acusado, qual seja, o instituto do Juiz das Garantias.

Os pontos negativos, tem-se que a referida modificação é prejudicial à sistemática processual, tendo vista que os vícios existentes exigem postura mais incisiva para que sejam resolvidos.

Ainda, aduz-se que a atividade característica dos magistrados será desvirtuada, pois o Poder Judiciário será formado de membros com funções meramente provisórias e reduzidas.

Além disso, o instituto possuiria custos relacionados à sua implementação e operacionalização, inviabilizando sua implantação, bem como comprometeria a celeridade do expediente, uma vez que tornaria o processo mais lento em busca de certezas. Outrossim, promoveria modificações em questões basilares da estrutura do processo penal brasileiro.


Referências

ROHLOFF, Vitor Giovanni. A função do Juiz das Garantias no Amparo aos Direitos Fundamentais do Acusado no Processo Penal Brasileiro. Disponível em: https://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/3639/1/Vitor%20Giovanini%20Rohloff.pdf Acesso em 15.8.2023.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos globais, justiça internacional e o Brasil. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília/DF, ano 8, v. 15, 2000. Disponível em: https://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_dh_globais_justic a_mundo_br.pdf. Acesso em:

PONTES, Rodrigo da Silva. O princípio da imparcialidade do juiz. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR, 2007. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/30833/M%20939.pdf?sequence=1. Acesso em:

Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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