Da perseguição aos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil durante a Era Vargas

06/09/2024 às 14:02
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O Holocausto foi o genocídio praticado pelo regime nazista que assassinou cerca de seis milhões de judeus, além de milhões de outras vítimas, incluindo ciganos, eslavos, Testemunhas de Jeová, negros, oponentes políticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, no período de 1933 a 1945 (GRANOVSKY, 2016). Este é um dos maiores crimes da história da humanidade, executada de forma horrenda em campos de concentração, extermínios e pelotões de execução. O mesmo é reconhecido e sua responsabilidade é assumida pelo Estado Alemão, o qual procura lembrar desta tragédia por meio de seus memoriais, educação aos jovens, além de indenizar, dentro do possível, as vítimas sobreviventes do Holocausto.

Com toda a certeza, os horrores do Holocausto é uma história que precisa ser relembrada de geração em geração. O dia 27 de janeiro é o dia eleito em “Memória das Vítimas do Holocausto”. Infelizmente, na Europa há movimentos que ainda defendem os ideais nazistas. Mesmo na América Latina e no Brasil existem grupos de inspiração neonazista. Na realidade brasileira, muitos destes instigam o racismo principalmente contra judeus, negros e nordestinos.

No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial muitos alemães e seus descendentes (que não tinham ligação com o nazismo), foram vítimas de perseguição em diversos países, incluindo o Brasil. De fato, este é um assunto pouco divulgado na historiografia e sociedade brasileira. Há relatos de abusos, bem como da prisão de inocentes, decorrentes da histeria de guerra, bem como de aproveitadores que denunciavam alemães por inimizade pessoal ou para angariar prestígio das autoridades brasileiras (BROCCA, 2010).

É inegável que houve atividades do partido nazista no Brasil, que exigiram combate do governo brasileiro. O pesquisador Stefan Rinke afirma que o Partido Nazista foi fundado em solo brasileiro antes mesmo de os nazistas assumirem o poder na Alemanha:

(...) em abril de 1928, o médico e oftalmologista Hans Asanger fundou o primeiro grupo local do partido nazista em Timbó, perto de Blumenau (SC). Ocorreu um grande boom em 1931, após uma vitória nazista em uma importante eleição na Alemanha. Em 1931, muitos grupos locais cresceram rapidamente de maneira independente no Brasil, a maioria sem ao menos saber da existência dos outros (p.11, 2013).

Segundo o mesmo autor, no ano de 1933 (quando Hitler assumiu o poder na Alemanha), a sede central do partido nazista no Brasil já contava com cerca de 350 membros (p.12, 2013). No entanto, como havia vários grupos do partido nazista espalhados pelo país, o número de partidários e simpatizantes era maior, o que tornou o Brasil o maior polo do Partido Nazista na América Latina.

Ana Maria Dietrich é outra pesquisadora das atividades do Partido Nazista no Brasil. Em suas pesquisas, constatou que os embaixadores e cônsules alemães no Brasil costumavam viajar pelo interior do país e enviavam relatórios aos líderes nazistas na Alemanha, descrevendo, entre outras coisas, a posição geográfica, política e os costumes dos alemães no Brasil (p.173, 2007).

O presidente Getúlio Vargas de início demonstrava simpatia ao nazifascismo, mas com a pressão do governo americano mudou sua política no fim da década de 1930 e a declaração de guerra contra a Alemanha veio em 1942, com o episódio dos submarinos alemães afundando embarcações brasileiras. A partir deste momento, os imigrantes alemães e seus descendentes se tornaram inimigos públicos em terras brasileiras. Neste aspecto, a pesquisadora Giralda Seyfert relata que os alemães e seus descendentes eram vistos como “quistos raciais” que ameaçavam a soberania nacional, que deveriam ser “assimilados” por meio da “nacionalização a força”, se quisessem continuar vivendo no Brasil. Neste contexto, muitos foram submetidos a prisões arbitrárias, policiamento ostensivo, perda de propriedades e humilhações públicas, como o castigo por se expressar em alemão (p. 97, 1997).

Apenas para citar alguns exemplos, em interessante pesquisa com alemães, italianos e descendentes que viveram o período da perseguição, Testoni constatou:

"Numa tarde, no verão de 1942, o estudante Max Will, então com 12 anos, voltava da escola em Agrolândia, em Santa Catarina. “Em casa, encontrei todo mundo chorando. Os policiais tinham invadido nossa casa e levado meu pai”, lembra. O pai de Max, o agricultor Leopoldo Will, viera da Alemanha quando criança e jamais aprendera o português. Na praça da cidade, os policiais obrigaram-no a beber óleo de rícino com diesel e defecar em público. “Enfiaram-lhe o fuzil na boca e passaram o diesel por ali”, conta Max, hoje com 75 anos (...).

Os vizinhos brasileiros pegavam os vizinhos alemães e nos humilhavam de tudo quanto era jeito. Uma vez, pegaram um homem que só sabia falar alemão, levantaram o rabo de um porco e o fizeram beijar ali, para depois beijar a bandeira na frente de todo mundo. O exército ficou sabendo, mandou recolher as bandeiras e dizem que prenderam por dois meses o soldado que participou" (TESTONI, 2006).

Micael Alvino da Silva pesquisou a presente temática no Estado do Paraná, o qual também sentiu os efeitos da repressão aos imigrantes alemães. Em 1942 foi editada a Lei de Fronteira, que tinha como objetivo estabelecer vigilância sobre os imigrantes do Eixo nas fronteiras brasileiras. Logo, as colônias alemãs e italianas localizadas na região de Foz do Iguaçu (PR) também ficaram sob suspeita de atividade subversiva. Há documentação que comprova que por ação do escrivão de polícia Aracy Albuquerque Neira, alguns colonos alemães foram presos e enviados para Guarapuava (PR), sob acusação de portarem armamento que foi correlacionada a supostas atividades nazistas. Inclusive, o prelado Manoel Koenner da Congregação Verbo Divino localizada em Foz do Iguaçu (PR), foi acusado de ser um agente nazista, sendo condenado a três anos de prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional e, ao final, foi inocentado e reabilitado (SILVA, 2008).

Há relatos também de repressão em diversas outras regiões do sul do Brasil, como na Serra Gaúcha (RS), no Vale do Itajaí (SC) e na cidade de Rolândia (PR). Os pesquisadores Ângelo Priori e Verônica Karina Ipólito destacam um fato inusitado sobre a cidade de Rolândia no norte do Paraná: esta recebeu 400 famílias de origem alemã, sendo que 80 eram judias-alemãs. No entanto, até mesmo os judeus alemães que conseguiram escapar do nazismo ficaram sob suspeita das autoridades policiais brasileiras e eram submetidos ao mesmo processo de repressão (p.560, 2015). Isto mostra a histeria de ódio que se criou contra os imigrantes alemães, resultando em abusos e injustiças.

Na década de 1930 circulava no Brasil a ideia de que Hitler tinha a intenção de criar uma “Nova Alemanha” na região sul, a partir de colônias alemãs no Estado do Rio Grande do Sul. Os historiadores divergem quanto aos planos nazistas de anexação do sul do Brasil. Alguns entendem que há elementos suficientes que comprovariam a intenção de Hitler anexar o sul do Brasil ao seu sonhado Reich de mil anos (LUVIZOTO, 2009). Outros alegam que se tratava de propaganda estimulada pelos governos ingleses e americanos para evitar o alinhamento político do Brasil ao lado da Alemanha, e que isto se tratou de uma paranoia de guerra (GERTZ, 2008).

Há um consenso entre os pesquisadores que no geral os imigrantes alemães e seus descendentes tinham interesse sobre o que acontecia na Alemanha (pois ainda possuíam vínculos familiares por lá), porém a grande maioria não se filiou ao partido nazista, nem tinha pretensões ou atividades políticas. Encaravam o Brasil como seu novo lar e o foco era o trabalho e o desenvolvimento socioeconômico das colônias e/ou propriedades. A cultura e o idioma eram transmitidos por meio de escolas e clubes sociais recreativos (teatros, corais, orquestras, etc...), como também aconteciam com outros imigrantes. Essas instituições foram banidas na Era Vargas. Em muitas escolas, professores alemães foram expulsos e substituídos por professores brasileiros. O simples fato de falar o idioma alemão já resultava em represálias, como escárnios, casas apedrejadas, suásticas pintadas nos muros, agressões e até prisões. Nesse sentido, Testoni informa:

"Professores diversos foram humilhados em sala de aula, na frente de seus alunos – crianças! –, tendo que mastigar e engolir papéis que significavam e simbolizavam – aos olhos dos estúpidos agentes do governo da época –, a (tentativa de) morte de uma cultura estrangeira.

 O medo foi incutido na cabeça das pessoas de todas as idades.  Falar outra língua... Cuidado! Leva à humilhação, à tortura, à prisão e, por que não, à morte.

 A tortura psicológica, a lavagem cerebral, maciçamente disseminada, estimulada e permitida pelo Estado foi o maior dano causado aos indivíduos e à coletividade".

 "Nem pensar em ensinar ou aprender uma língua estrangeira.  Tão cara hoje em dia.  Tão requisitada dos profissionais de todas as áreas e níveis – hoje requisito obrigatório dos candidatos às vagas de mestrado e doutorado!  O pai do autor, Hilário, é um exemplo.  Não aprendeu o italiano, devido ao terror psicológico incutido na família e na comunidade.  Não em vão.  O avô materno do autor, por outro lado, amargou dois anos de prisão em Campo de Concentração, tendo uma filha ainda bebê, um filho com menos de quatro anos de idade e uma jovem esposa a passar dificuldades, numa época em que as mulheres não conquistavam vagas no mercado de trabalho como ocorre atualmente "(TESTONI, 2006)

Priscila Ferreira Perazzo (2002) relata que em pelo menos sete Estados brasileiros (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Pernambuco), foram abertos campos de concentração para o aprisionamento de alemães, italianos e japoneses. Havia mais de trinta destes campos, além de várias outras prisões em outras regiões do país. Muitos alemães e seus descendentes também tiveram suas propriedades confiscadas. Até o momento o assunto praticamente não é mencionado em materiais didáticos utilizados em nossas escolas.

Ao que tudo indica, dificilmente essa realidade mudará tão cedo no Brasil, tendo em vista que se propaga a ideia também preconceituosa de que “branquitude” em solo brasileiro é sinônimo de “privilégios”. Inclusive existe o mito no Brasil de que alemães e italianos “ganharam” do governo as “melhores terras” para morarem. Na realidade, tais terras se tratavam de regiões frias, distantes dos grandes centros, muitas vezes serranas, em que o governo geralmente havia concedido títulos a brasileiros que não conseguiram ou não tiveram interesse de desenvolvê-las. Da mesma forma, o governo tinha receio de serem invadidas pelos argentinos ou que se tornassem um país independente (como ocorreu com o Uruguai). Poucos sabem que a presença dos imigrantes alemães, italianos, poloneses, ucranianos e outros no sul do país, contribuiu para a conservação da soberania do Estado Brasileiro em tais regiões. Assim como a Europa necessitou de imigrantes após o fim da II Guerra Mundial, o Brasil necessitou de imigrantes nos séculos XIX e início do XX, sendo que cada qual deu sua contribuição.

Mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial os alemães e seus descendentes continuaram sofrendo preconceito. Para se ter ideia do clima hostil que existia em relação aos alemães e seu idioma, é interessante citar a crônica “Olhos azuis” (publicada quatro anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1949, na Revista “O Cruzeiro”), de autoria da famosa escritora Raquel de Queiroz, na qual ela pediu para que se resolvesse o problema alemão no sul do país:

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"Quem anda pela chamada “zona alemã” dos estados do sul, e especialmente pelo “Vale do Itaiaí”, em SC, a sensação que tem é de estar em país estrangeiro, e país estrangeiro inamistoso. E essa sensação nos é transmitida não só pela cor do cabelo e dos olhos dos habitantes... O brasileiro do Vale do Itajaí quando fala a língua nacional, fala-a como um estrangeiro... Fala mal, com sintaxe germânica, com uma pavorosa pronúncia germânica...” (FRITZEN, p. 345, 2008).

Mais para frente, alegou (erroneamente) que os catarinenses sentiam rancor dos “alemães” por serem supostamente “desprezados” pelos mesmos e não fez cerimônia em chamar os “alemães” e seus descendentes de “quistos raciais”, estigmatizando-os de “Brasil transviado”:

"Se há, pois, quisto racial ainda em plena exuberância é aquele. Aquilo não é Brasil, ou se o é, é Brasil transviado, Brasil em mãos alheias... Alguém tem que dar um jeito nesse problema enquanto ele não se vira drama..."

(PORTAL DE CRÔNICAS, 2022)

Apesar dos protestos do prefeito de Blumenau (SC), da Câmara de Vereadores de Blumenau (SC) e de diversos periódicos catarinenses, Rachel de Queiroz (que foi muito bem recebida em Santa Catarina), não pediu desculpas por sua crônica. A falta de compaixão da escritora cearense para com a comunidade alemã e aos brasileiros que descendem dos mesmos é surpreendente. Rachel de Queiroz (nordestina que quando criança viveu como imigrante em São Paulo/SP), foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras ao relatar todo o sofrimento do povo nordestino em suas obras. Também foi presa pelo mesmo regime Vargas (que perseguiu os alemães), por questão ideológica (era militante do comunismo – propagando a luta pelo ideal de igualdade).

Digno de nota que os nazistas usaram expressões parecidas com as da escritora, pois também alegavam que os “judeus” desprezavam os alemães, não se integravam no país e utilizaram o termo resolução do “problema judaico”, que primeiro começou a ser “resolvido” com a expulsão e depois com o extermínio. Assim, é possível entender como a desconfiança e o preconceito contra os alemães e seus descendentes é uma história propositalmente pouco conhecida e divulgada em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

BROCCA, L. As perseguições aos Súditos do Eixo através das páginas do Jornal Correio do Povo durante a Segunda Guerra Mundial. Departamento de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS: 2010.

DIETRICH, A. M. Nazismo Tropical? O Partido Nazista no Brasil. Tese de Doutorado, Departamento de História e Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo, SP: 2007.

FRITZEN, M.P. Línguas em conflito em uma escola rural localizada em zona de imigração no Sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., 341-356, Campinas, SP: Jul-Dez/2008.

GERTZ, R. Os “súditos alemães” no Brasil e a “pátria mãe” Alemanha. Espaço Plural, Ano IX, nº 19, 67-73, UNIOESTE, Ponta Grossa, PR: 2008.

GRANOVSKY, S. Los otros Genocidios de Hitler – Homosexuales, Testigos de Jehova Y Cristianos, Políticos e Intelectuales, Gitanos, Débiles Mentales Y Discapacitados Físicos. Buenos Aires (Argentina), Peña Lillo, 2016.

LUVIZOTO, K.L. O nazismo no Rio Grande do Sul. Cultura Acadêmica, Editora UNESP, São Paulo, SP: 2009.

PERAZZO, Priscila Ferreiro.  Prisioneiros de guerra. Os cidadãos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945), Tese de Doutorado, USP, 2002.

PORTAL DE CRÔNICAS, Olhos azuis, disponível em: https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/8984/olhos-azuis

PRIORI, A. & IPÓLITO, V.K. DOPS, a Cidade de Rolândia (PR) e a repressão dos imigrantes de origem alemã (1942-1945). Varia Historia, Belo Horizonte, MG, vol. 31, n. 56, p. 547-580, mai/ago 2015.

RINKE, S. Alemanha e Brasil, 1870-1945: uma relação entre espaços. História, Ciências, Saúde − Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.scielo.br/hcsm, ano 2013

SEYFERT, G. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana [online]. vol.3, n.1, pp.95-131, disponível em:  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131997000100004, ano 1997.

SILVA, M.C. Fragmentos de uma história paranaense: repressão policial na parte brasileira da Tríplice Fronteira (1942-1945). Revista de História Contemporânea, Foz do Iguaçu (PR): nº 2, mai-out/2008.

Fonte da foto: https://ocp.news/especiais/nacionalizacao-forcada-como-foram-tratados-os-imigrantes-alemaes-apos-a-segunda-guerra-mundial

Bruno Marini: Professor de Direito na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Sobre o autor
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

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