A Proposta de Emenda à Constituição nº 7/2024: riscos à especialidade da Justiça Militar.

07/09/2024 às 16:09
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A Proposta de Emenda à Constituição nº 7/2024 (PEC 7/2024) traz à tona importantes discussões sobre o futuro da Justiça Militar no Brasil, tanto no âmbito da União quanto nas esferas estaduais.

A PEC, ao propor alterações nos artigos que tratam dos órgãos e das competências da Justiça Militar da União (JMU) e das Justiças Militares Estaduais (JMEs), levanta uma série de questões pertinentes acerca de sua viabilidade e possíveis impactos. Entre os pontos mais preocupantes, está a possibilidade de que a emenda, ao incluir matérias administrativas no âmbito da competência militar, venha a diluir a especialidade desta justiça, comprometendo sua capacidade de julgamento eficiente e tecnicamente qualificado.

1. A Instituição de Tribunais Militares: Claridade Insuficiente

Um dos primeiros pontos da PEC que merece atenção refere-se à criação dos Tribunais Militares, dispostos no inciso II do art. 122. Neste ponto, a proposta prevê a instituição de tais tribunais por lei, mas deixa em aberto a composição e a organização desses órgãos no âmbito da Justiça Militar da União.

Deveras, no caso da Justiça Militar estadual, o texto é claro quanto à sua organização em primeira e segunda instâncias, mas em relação à União, a redação não fornece um delineamento concreto sobre como esses tribunais funcionariam na prática.

Assim, essa omissão pode gerar incerteza quanto à estrutura e à operacionalidade da segunda instância da Justiça Militar da União, algo crucial para assegurar o devido processo legal e a celeridade nas decisões.

2. Competência Administrativa e Conhecimento Técnico da Justiça Militar

A PEC 7/2024 justifica a expansão da competência da Justiça Militar com base em um suposto "conhecimento histórico" em questões administrativas das Forças Armadas, como movimentação de pessoal, reforma e promoção.

No entanto, esse argumento pode ser questionado, tendo em vista que, a despeito da Justiça Militar da União e das Justiças Militares Estaduais possuírem uma tradição sólida no julgamento de crimes militares, seu envolvimento com questões administrativas é consideravelmente limitado.

É preciso lembrar que, embora as causas administrativas militares possam compartilhar uma base comum com as questões criminais — ambas relacionadas à vida castrense — elas exigem conhecimento técnico e jurídico muito específico do Direito Administrativo.

Nesse sentido, a inclusão dessas matérias na competência da Justiça Militar pode gerar desafios significativos, considerando, inclusive, que Juízes que ingressaram na carreira para julgar crimes militares poderão se deparar com processos administrativos complexos, para os quais podem não estar preparados, dadas as peculiaridades do Direito Administrativo Militar.

Importante notar que em palestras e discussões jurídicas, muitos magistrados militares não possuem conhecimento profundo sobre institutos administrativos específicos, como por exemplo, o desconhecimento de alguns juízes militares sobre o instituto do “encostamento”, que é uma questão relevante nas carreiras militares.

Assim, é de se questionar se os juízes federais da Justiça Militar terão a qualificação necessária para lidar com questões administrativas altamente especializadas e simbólicas, próprias do Direito Administrativo Militar.

3. Estrutura Insuficiente para Ampliar a Competência

Outro ponto crucial que deve ser considerado é a estrutura atual da Justiça Militar, pois, por exemplo, na 6ª Circunscrição Judiciária Militar, que abrange Bahia e Sergipe, existem apenas duas juízas federais. Logo, essa realidade levanta dúvidas sérias sobre a capacidade da Justiça Militar de lidar com o aumento de demanda que viria com a ampliação de sua competência.

Com efeito, ao transferir processos administrativos que hoje tramitam na Justiça Federal para a Justiça Militar, estaríamos sobrecarregando um sistema que já conta com uma estrutura limitada.

Assim, a falta de reforço logístico e de pessoal pode, na verdade, agravar a morosidade no julgamento das demandas, contrariando o objetivo proposto pela PEC de “desafogar” as varas federais.

4. A Contradição em Torno das Questões Remuneratórias

A PEC tenta, de forma um tanto contraditória, excluir as questões "exclusivamente remuneratórias" da competência da Justiça Militar, mantendo-as sob a tutela da Justiça Federal. No entanto, as próprias justificativas da emenda demonstram a complexidade dessa separação.

Isto porque, assuntos como reforma, promoção e exclusão de militares, que se enquadram no Direito Administrativo Militar, têm inevitavelmente reflexos financeiros para os integrantes das Forças Armadas.

Assim, essa divisão artificial entre questões remuneratórias e administrativas cria uma contradição interna, já que seria ilógico cindir processos que envolvem, cumulativamente, a reintegração de um militar e o pagamento de salários retroativos ou indenizações por danos morais.

5. A Diluição da Especialidade da Justiça Militar

Um dos maiores perigos que se vislumbra na PEC 7/2024 é a possível diluição da especialidade da Justiça Militar, pois ao incluir matérias administrativas em sua competência, a proposta retira o foco de sua função originária, que é julgar crimes militares.

Deveras, a especialidade da Justiça Militar reside no seu conhecimento profundo dos princípios de hierarquia e disciplina, que são os pilares das Forças Armadas. Assim, quando se introduz a obrigação de julgar questões complexas e técnicas de Direito Administrativo, corre-se o risco de que a Justiça Militar perca essa especialização tão necessária.

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Exempli gratia, imagine um juiz que ingressa na magistratura militar com o intuito de julgar crimes militares sendo encarregado de lidar com questões de Direito Administrativo, para as quais não foi preparado.

Ora, o Direito Administrativo Militar é um campo repleto de simbolismo e conceitos próprios, e a formação técnica necessária para lidar com essas questões é diferente da exigida para o julgamento de crimes militares. Por conseguinte, isso pode comprometer a qualidade das decisões judiciais e, em última instância, a credibilidade da própria Justiça Militar.

6. A Necessidade de Formação de Jurisprudência sobre Atos Disciplinares

Um aspecto positivo da ampliação de competência proposta pela PEC 7/2024 é a possibilidade de que a Justiça Militar passe a examinar atos disciplinares com mais frequência e profundidade, pois isso pode contribuir significativamente para a formação de uma jurisprudência sólida e específica sobre o tema, o que seria benéfico tanto para o aprimoramento do Direito Disciplinar Militar quanto para a uniformização das decisões judiciais nessa área.

Desde a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, a Justiça Militar Estadual já possui competência para julgar ações relativas a atos disciplinares militares. Contudo, a inclusão de questões disciplinares também na competência da Justiça Militar da União, como previsto na PEC 7/2024, poderá fortalecer ainda mais essa função, permitindo que o Direito Disciplinar Militar seja analisado sob uma ótica especializada e uniforme em todas as esferas.

Além disso, a Súmula 665 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que permite a análise do mérito de processos administrativos disciplinares em situações de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade, poderá ser aplicada com maior rigor e frequência, garantindo que abusos sejam evitados e que os princípios de hierarquia e disciplina — fundamentais às Forças Armadas — sejam aplicados de forma justa e proporcional.

Dessa forma, o fortalecimento da competência da Justiça Militar para lidar com questões disciplinares pode ser visto como uma medida positiva, contribuindo para a consolidação de entendimentos jurisprudenciais específicos, promovendo estabilidade, previsibilidade e maior segurança no julgamento dessas matérias.

7. Conclusão: A Viabilidade da PEC 7/2024

Em síntese, a PEC 7/2024 apresenta uma proposta ambiciosa ao tentar ampliar as competências da Justiça Militar. Contudo, ao misturar matérias administrativas e criminais, a emenda corre o risco de enfraquecer a especialidade dessa justiça, comprometer sua estrutura já limitada e causar mais problemas do que soluções, pois a introdução de matérias administrativas sem a devida preparação e estruturação pode prejudicar a celeridade e a qualidade do julgamento das questões militares.

Assim, é essencial que a PEC seja refletida, de modo a garantir que a Justiça Militar continue desempenhando seu papel especializado e que, ao invés de sobrecarregá-la, possamos aprimorá-la com uma estrutura adequada e focada na sua missão originária: julgar crimes militares com eficiência e tecnicidade.

 

Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Possui pós-graduações em Direito Público (Constitucional, Administrativo e Tributário) pelo Centro Universitário Estácio e em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Atualmente cursa especialização em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. É 1 Tenente R2 do Exército Brasileiro e membro ativo na Comissão Nacional de Direito Militar da ABA (Associação Brasileira de Advogados), além de integrar a Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Compõe o Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais da UNIFIEO e da Editora Mente Aberta. Atua como Professor de Direito Administrativo na Múltipla Difusão do Conhecimento, onde também coordena o curso preparatório para a 2 fase do Exame da OAB em Direito Administrativo. Advogado contratado pelas Obras Sociais Irmã Dulce, com experiência em Direito Administrativo e Militar.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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