Liberdade das práticas religiosas: Análise do artigo 5º, VI, da Constituição Federal de 1988

13/09/2024 às 18:36
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RESUMO: O presente artigo visa analisar a real garantia de efetividade do inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual diz respeito à liberdade religiosa, vindo abranger a inviolabilidade da liberdade de culto, crença e consciência e possuindo, como foco de estudo, as religiões de matriz africana perante a constante demanda judicial no que se refere à violação frequente dos direitos dos praticantes pela discriminação. A pesquisa baseia-se em fatos históricos, explorando a evolução acerca dessa liberdade perante o mundo e seu reflexo nas constituições nacionais até o entendimento da Carta Magna vigente.

Palavras-Chave: Religião. Direitos Fundamentais. Liberdade de Culto.

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the real guarantee of effectiveness of section VI of article 5 of the Federal Constitution of 1988, which concerns religious freedom, which encompasses the inviolability of freedom of worship, belief and conscience, religions in the face of a continuing legal challenge to the frequent violation of practitioners' rights for discrimination. The research is based on historical facts, exploring the evolution of this freedom before the world and its reflection in the national constitutions until the understanding of the current Magna charter.

Keywords: Religion. Fundamental Rights. Freedom of Worship.

INTRODUÇÃO

A existência da religião no cotidiano pode ser observada há muitos séculos, antes mesmo da nomeação das crenças. Trata-se de uma característica ativa da sociedade, que motivou e ainda motiva diversos acontecimentos históricos relevantes, unindo e, ao mesmo tempo, causando o afastamento de povos diante da existência de opiniões diversificadas e, muitas vezes, incompatíveis.

Com a evolução dos povos e o surgimento da legislação, lentamente foram estabelecidos regras e critérios para a prática da religiosidade, sendo, por muito tempo, favorecido o cristianismo, considerando-se a religião católica como a oficial do Brasil, tendo em vista sua grande aceitação e influência sobre o povo, sem haver espaço para as demais doutrinas.

Buscou-se, então, no decorrer dos anos, alcançar a laicidade estatal no País, de modo a não haver uma religião oficial que se sobressaísse perante as demais e dando liberdade para que as pessoas seguissem a ideologia religiosa de sua preferência. Almejava-se que qualquer indivíduo pudesse praticar sua religião e seus cultos sem sofrer nenhum tipo de represália, contando com a proteção do Estado para tal ato, bem como para livre manifestação pública, sem a presença da intolerância.

Diante de todas as religiões, seitas e crenças existentes no Brasil, destacam-se as religiões de matriz africana, inseridas na cultura brasileira desde a época da escravidão, quando eram praticadas apenas pelos negros. Estas eram e, por vezes, ainda são relacionadas por leigos a adorações de seres negativos e práticas do mal, sendo consideradas sinônimo de pobreza, sem possuir qualquer proteção ou direito constitucional reconhecido.

Atualmente, a Constituição Federal (CF) de 1988 estabelece que o Brasil é um Estado laico, ou seja, neutro em relação à religiosidade, e ainda prevê direitos legais acerca da liberdade religiosa, instituindo-a como um direito fundamental do ser humano, viabilizando sua liberdade de expressão.

Todavia, apesar de o ordenamento jurídico garantir a liberdade religiosa e reconhecer as religiões de matrizes africanas, seus praticantes não possuem o pleno exercício de direitos, sendo oprimidos por grande parte da sociedade e, na maioria das vezes, tratados com intolerância e desrespeito, vítimas de preconceitos e julgamentos errôneos que os privam de direitos tutelados pelo Estado.

A ideia deste artigo, portanto, é abordar de forma esclarecedora o art. 5°, VI, da Constituição Federal, analisando o período histórico do tema e, posteriormente, casos concretos que demonstrem sua falta de efetividade, haja vista as controvérsias encontradas entre o texto formal e a realidade vivenciada.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para fundamentar o estudo, a pesquisa parte de uma discussão acerca dos fatos históricos e conceituais relativos aos direitos fundamentais, segue por uma análise das constituições brasileiras e da liberdade de culto e religiosa como direito fundamental, finalizando com uma abordagem sobre a efetividade do art. 5º, VI, da CF/88.

Direitos Fundamentais: Fatores Históricos e Conceituais

A origem e evolução dos direitos fundamentais pode ser observada desde a época anterior a Cristo, pelo Código de Hammurabi que, por volta do século XVIII a.C., já estabelecia direitos comuns a todos os homens, como dignidade e honra (MORAES, 2011).

Posteriormente, em Roma, houve o desenrolar de uma mais concreta percepção da formação de direitos fundamentais, objetivando-se a tutela dos direitos individuais em relação ao poder estatal. Exemplo disso foi a Lei das Doze Tábuas que, por volta de 450 a.C., consagrava liberdade, propriedade e proteção dos cidadãos e buscava a eliminação de classes (MORAES, 2011).

É importante destacar que, em toda a história da evolução dos direitos e garantias fundamentais, o cristianismo ocupou papel fundamental, haja vista sua ideia de que cada ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e, portanto, respeito e dignidade adviriam de matéria divina, devendo o homem ser tratado e respeitado com tal decoro (BASTOS, 2002; UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2008).

Mesmo com grande influência do cristianismo, as dificuldades para serem estabelecidas garantias ao ser humano permaneceram firmes até a Idade Média, quando os monarcas cederam alguns direitos sociais, sendo classificado como um dos mais célebres o deliberado pela Inglaterra na Magna Carta Libertatum. Esta, porém, não pode ser considerada de natureza constitucional, pois era dedicada apenas aos homens livres que, na época, eram exceção (BASTOS, 2002).

Além disso, foram instituídos pelos ingleses, no século XVII, a Petition of Rights, em 1628, o Habeas Corpus Amendment Act, em 1679, e o Bill of Rights, em 1688, todos visando proteção de garantias e direitos do homem (SILVA, 2012). Tais documentos tiveram grande peso na história por incluírem garantias fundamentais aos cidadãos (SARLET, 2015).

Na sequência, a revolução dos Estados Unidos da América trouxe consigo a Declaração de Virginia, em 1776, a Declaração de independência dos Estados unidos, em 1776, e a Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787, como demais marcos para a história do Direito (VILLA, 2011). Os referidos documentos tratavam de matérias relevantes, como direito à vida e à dignidade, legalidade processual, separação de poderes do Estado e liberdade religiosa, prezando também pela igualdade, porém, ainda ideais distantes do que hoje se elenca constitucionalmente como direitos fundamentais (SARLET, 2015).

Observa-se que muitas nações tiveram responsabilidade quanto ao crescimento de garantias do ser humano, sendo que os Estados Unidos participaram ativamente desse processo. Entretanto, merece destaque a França, que consagrou normativamente os direitos fundamentais em 1789, por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (MORAES, 2011). Em 17 artigos, esta Declaração garantia importantes direitos, como liberdade plena, legalidade, igualdade e justiça, destacando-se, principalmente, por possuir caráter universal, ou seja, para todas as pessoas (BASTOS, 2002; SILVA 2012). Posteriormente, suas bases foram reforçadas com a Constituição de 1791, buscando novas formas de controlar o poder do Estado (VILLA, 2011).

Ademais, a formação do que se entende hoje por direitos e garantias fundamentais estendeu-se por todo o mundo, levando mudanças significativas aos povos que sempre buscavam novas maneiras de assegurar ao homem tratamento digno, tanto individual quanto socialmente.

Em 1948, foi adotada, pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais importante marco do Direito, haja vista que criou as Organizações das Nações Unidas (ONU) e, por meio de seus trinta artigos, elencou direitos essenciais para a sobrevivência do ser humano, além de garantir sua proteção e efetividade. Estes fortes preceitos arrolados estenderam-se pelo

restante do planeta, sendo, inclusive, assinados pelo Brasil em 10/12/1948, data de sua proclamação (MORAES, 2011; SILVA, 2012).

Assim, resta claro que a sociedade, desde tempos antigos, buscou exigir direitos que tornassem mais justas e dignas a vida e a sobrevivência das pessoas, procurando conter representantes e detentores do poder para que houvesse convivência harmônica, isso já em épocas onde sequer havia indícios de futuras garantias constitucionais.

Com esta breve análise, é possível verificar o crescimento dos direitos fundamentais no mundo, desde sua iniciação no período anterior a Cristo até serem estabelecidos de forma mais ampla e solene e reconhecidos pelo Brasil, cujas constituições passaram a ser baseadas nos ideais de desenvolvimento de outras nações, citadas nesta pesquisa.

Análise Constitucional Brasileira

Até sua Independência, proclamada por D. Pedro I, o Brasil era regido pelas normas portuguesas. Sua primeira Constituição, influenciada pelo liberalismo constitucional francês, foi formulada pela Assembleia Constituinte composta por membros eleitos pelo Imperador e outorgada em 25 de março de 1824, estabelecendo o regime monárquico (VILLA, 2011; SARLET, 2015).

Na referida Carta, nomeada Constituição do Império do Brasil, já havia dispositivos relativos a direitos e garantias individuais, elencados no art. 179, o qual possuía 35 incisos e encontrava-se sob o Título 8º, denominado “Disposições Gerais e Garantia dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros” (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2006; SILVA, 2012).

Posteriormente, em 1891, foi promulgada a Constituição de República dos Estados Unidos do Brasil, novo texto constitucional que adotou o federalismo e transformou províncias em estados, municípios e distrito federal. Sob influência dos Estados Unidos, foi adotado o regime presidencialista, com mandato de 4 anos, e declarado o Estado como laico, desvencilhando-se do cristianismo. Foi um período de demasiado aprimoramento no que se refere a declaração de direitos, com acentuação de penas e destaque para a instauração do instrumento jurídico habeas corpus (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006; SARLET, 2015).

No ano 1934, foi promulgada uma Constituição que manteve os ideais da anterior, vindo a acrescentar mudanças tributárias e econômicas e distribuição de competências entre União, estados e municípios, atribuindo-lhes autoridade. Houve a separação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e foi instituída justiça eleitoral com voto feminino, justiça militar e, ainda, permitidos ensinamentos religiosos nas escolas, tendo em vista a laicização de 1891 (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006). Esta Constituição agregou direitos sociais e de nacionalidade, além de ampliar os direitos individuais ao instituir o conceito de igualdade e a possibilidade de aplicação do mandado de segurança (GROFF, 2008).

Já a Constituição outorgada em 1937 reduziu as autoridades estatais concedidas anteriormente, dissolvendo a Câmara dos Deputados e o Senado Federal e demonstrando ideais de ditadura, com restrição de direitos e garantias individuais e abundante desrespeito aos direitos do homem (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006; SILVA, 2012). Ademais, essa Carta também extinguiu o mandado de segurança e restaurou a possibilidade da pena de morte, concedendo, ainda, mandato por tempo indeterminado. Ela deixou de vigorar com a queda do então Presidente Getúlio Vargas e a promulgação da Constituição de 1946 (BASTOS, 2002; GROFF, 2008).

A Constituição de 1946 buscou a democratização do Estado, baseando- se nos ideais das Constituições de 1891 e 1934, inclusive no que concerne aos direitos fundamentais, retomando o rol expositivo e vindo a acrescentar apenas alguns incisos (BASTOS, 2002; GROFF, 2008). Essa Carta também restaurou o mandado de segurança, a ação popular e o controle de constitucionalidade, bem como assegurou acesso ao Poder Judiciário, buscando equilibrar e restabelecer o País novamente (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006).

Mais tarde, em 1964, uma crise política fez com que as forças armadas ficassem à frente do poder, ocorrendo o ato conhecido como golpe militar. Nesse período, foi mantido o texto constitucional de 1946, porém, era evidente a autoridade e repressão estatal, principalmente quanto aos direitos políticos, extremamente restringidos (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006; GROFF, 2008).

Uma nova Constituição foi promulgada em 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor em 15 de março de 1967, passando a possuir, como identificação, Constituição do Brasil, e contendo limitações como acesso e defesa no Judiciário, repressão à liberdade de expressão e ao direito de reunião e proibição do habeas corpus em processos relacionados a crimes políticos ou contra a segurança nacional (BASTOS, 2002; GROFF, 2008).

Em 1968, houve a inserção do Ato Institucional nº 5, no dia 14 de dezembro, e, em 17 de outubro de 1969, foi outorgada a Emenda Constitucional nº 1, a qual trouxe, ilusoriamente, a ideia de mudanças positivas ao regime (LENZA, 2012).

Em 1985, o regime militar estava encerrando-se. Com a doença e morte do Presidente Tancredo Neves, seu Vice, José Sarney, assumiu a presidência e convocou assembleia constituinte, promulgando a atual Constituição em 1988 (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006).

De maneira singela, pode-se dizer que este foi o caminho trilhado pelos direitos e garantias fundamentais até chegarem aos conceitos, características e denominações que são seguidos e vivenciados atualmente pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Com o passar dos séculos, as fusões dessas ideologias resultaram na formação do modelo que é atualmente conhecido como direitos fundamentais (MORAES, 2011). Tais direitos são hoje conceituados como “posições jurídicas reconhecidas e protegidas pelo Estados” (SARLET, 2015, p. 319).

Os direitos fundamentais são considerados indispensáveis para a sobrevivência digna, sendo destinados a pessoas físicas e jurídicas, com a proteção estatal assegurando que, nas situações em que alguém for lesado em algum desses aspectos, é possível recorrer judicialmente e reivindicar tal garantia (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006; DALVI, 2008).

Desse modo, pode-se dizer que direitos fundamentais são aqueles cuja abrangência envolve assuntos necessários e essenciais para a vida humana, sem os quais o homem não seria capaz de conviver pacificamente ou, ao menos, sobreviver, e, por isso, são reconhecidos e protegidos constitucionalmente.

Outrossim, esses direitos são classificados pela maioria doutrinária de acordo com sua ordem cronológica de reconhecimento constitucional, ainda que esta não seja totalmente exata, sendo divididos em direitos de primeira, segunda e terceira gerações (MORAES, 2011).

Os direitos fundamentais de primeira geração referem-se a direitos políticos e liberdades públicas, podendo-se dizer que seu surgimento evidenciou a transformação de um Estado autoritário em um Estado de direito, tendo em vista tratarem-se de direitos individuais do ser humano. Os de segunda geração são os denominados direitos sociais, culturais e econômicos, concentrando-se também nos direitos da coletividade. Já os direitos de solidariedade ou fraternidade qualificam-se como de terceira geração e possuem foco na humanidade em si, ou seja, preocupações com o todo, e não de maneira individual (LENZA, 2012).

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Apesar de fazerem referência e compartilharem o mesmo tema, existe diferença entre direito e garantia fundamental: este é o direito em si, enquanto aquele é a forma pela qual este direito é executado e assegurado (LENZA, 2012). Os direitos buscam declarar o bem tutelado que o indivíduo possui, ao passo que a garantia trata dos meios para que os direitos sejam alcançados (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006).

Liberdade de Culto e Religiosa como Direito Fundamental

Dentre todos os direitos e garantias fundamentais existentes e que passaram pelo processo de evolução, destaca-se o direito popularmente conhecido como direito de liberdade religiosa. Durante muito tempo, esta liberdade sofreu perseguições por parte do Estado e da Igreja, com impedimento da manifestação de seus ideais e crenças por receio de que o Estado deixasse de ter apenas uma religião (FELDENS; VIAN, 2012).

O Estado brasileiro não concedia autêntico direito ao tratar da liberdade de crença e religião e, o pouco que fazia, era reservado aos católicos, com as demais denominações religiosas devendo existir de forma discreta e quase invisível. No decorrer dos anos, e passado o período de monarquia, a ideia acerca da liberdade de crença começou a ganhar espaço, a opressão foi amenizada e a liberdade de culto foi consolidada no Brasil quando da promulgação da Constituição de 1981 (FELDENS; VIAN, 2012).

A República buscou ampliar a liberdade religiosa tomando, como princípio, a separação entre Igreja e Estado, estabelecida por meio do Decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890, lavrado por Ruy Barbosa e expedido no governo provisório (SILVA, 2006).

A Constituição de 1891 consolidou essa separação e os princípios básicos da liberdade religiosa (arts. 11, § 2º, 72, §§ 3º a 7º; 28 e 29) Assim, o Estado brasileiro se tornou laico, admitindo e respeitando todas as vocações religiosas. O Decreto 119-A/1890 reconheceu a personalidade jurídica a todas as igrejas e confissões religiosas (SILVA, 2006, p. 251).

Ademais, as Constituições de 1891 e de 1937 foram as únicas nas quais a “proteção de Deus” não foi invocada, no preâmbulo, no momento de sua promulgação, o que foi posteriormente entendido e declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como sem qualquer relevância jurídica ou força normativa, não sendo de reprodução obrigatória por qualquer Estado, município ou indivíduo (LENZA, 2012).

Essa evolução demonstra que o Estado brasileiro passou por mudanças para, gradativamente, ir buscando o reconhecimento das demais religiões até alcançar a laicidade e, é importante lembrar, os princípios que norteiam um Estado laico.

Estado laico é aquele onde o direito do cidadão de ter ou não ter religião é respeitado e que assegura a “liberdade de consciência”. As únicas restrições feitas a esse direito referem-se à manutenção da ordem pública. Esse direito é assegurado pelo artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”. A laicidade alia, então, a liberdade de consciência fundada sobre a autonomia individual e o princípio da igualdade entre os homens. É a garantia da liberdade de pensamento do Homem dentro de uma comunidade política, a garantia de liberdade de espírito, a garantia da liberdade do próprio homem (DOMINGOS, 2009, p. 1).

A laicidade do Estado não impede manifestações e cultos religiosos e não deve intervir na escolha pessoal que tem cada indivíduo de expressar sua preferência por determinada crença ou até por desacreditar de qualquer espécie relacionada ao tema. Ela também estabelece que nenhuma religião poderá cingir o Estado, e é este princípio que mantém o equilíbrio e estabelece pacificação entre os praticantes das diferentes religiões existentes (MACHADO, 1996).

É possível perceber que o Decreto 119-A, além de implantar a laicidade no Brasil, possibilitou o início da liberdade religiosa, denotando a neutralidade do Estado e almejando o alcance da harmonia entre o povo.

Na CF, o art. 19 e seus incisos reforçam a laicidade estatal:

Art. 19: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (BRASIL, 1988).

Assim, pode-se perceber quão longa foi a evolução da busca por exercer livremente a fé individual de cada ser humano, diante de toda sociedade, até o momento em que a consolidação da laicidade do Estado possibilitou a adoção constitucional do direito à liberdade religiosa, uma verdadeira conquista.

Em relação a esta liberdade, existem diversas conceituações, porém, no contexto apurado, “compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso” (SCAMPINI, 1978, p. 102). Desse modo, a liberdade de culto diz respeito à possibilidade de expressar, de forma plena, a capacidade religiosa interior (FELDENS; VIAN, 2012).

Atualmente, o direito de liberdade trata-se de direito individual da primeira geração, com foco na possibilidade de cada ser humano manifestar sua crença de forma livre e protegida pelo Estado, sem obrigação de seguir determinada religião. Tal direito está expresso na CF/88, mais especificamente, no inciso VI do art. 5º, com o texto: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988).

Por meio deste inciso, assegura-se aos praticantes de toda e qualquer crença ampla liberdade e inviolabilidade quanto à sua manifestação de fé e livre- exercício de seus cultos religiosos, garantindo-se ainda a proteção dos templos e liturgias (LENZA, 2012).

Embora a Constituição Federal atual traga em seu texto o direito à liberdade de cultos religiosos de maneira clara e objetiva, este não é totalmente efetivado quando se trata da realidade, sendo muitas vezes freado por indivíduos com pensamentos contrários ou diferentes. Todavia, é dever do Estado manter a eficácia dos direitos estabelecidos por ele aos cidadãos, controlando ações e formas de conduta que contrariem os direitos religiosos fundamentais (GONÇALVES, 2012).

Observa-se que, apesar de existir a proteção estatal da ampla liberdade religiosa, conforme apresentado pelo art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, a dificuldade encontra-se, em grande parte, nas ações de não aceitação da sociedade diante do que é diferente de suas convicções, daquilo que é entendido como “correto”.

O preconceito e a discriminação são vistos com frequência em casos de intolerância religiosa julgados no País, seja por racismo, difamação ou qualquer outra razão semelhante que faz um indivíduo acreditar ser superior a outro, seja pelo tipo de segmento religioso, etnia ou até motivado pela ideia de que outra pessoa não seja digna de seu respeito por causa da religião que frequenta e defende.

Diante disso, utilizam-se as religiões de matriz africana como referência, tendo em vista tratarem-se de uma crença que, apesar de possuir grande número de adeptos, sofre demasiados preconceitos e tem, frequentemente, sua liberdade violada, além de sofrer repressão social de suas práticas.

Estas religiões foram trazidas ao Brasil pelos negros escravos que buscavam manter sua cultura, seus conhecimentos e tradições por meio de suas crenças e religiosidade.

Era extenso o número de escravos que habitavam o País por volta da metade do século XVI, levando as religiões de origem africana a espalharem-se e fazerem-se presentes em diversas regiões do Brasil (CONTE, 2016). Após o período da escravatura, o crescimento das cidades e a quantidade de negros libertos permitiram que as manifestações religiosas de origem africana pudessem desenvolver-se de forma mais abrangente (NASCIMENTO, 2010).

Durante, e ainda após a escravidão, as expressões religiosas negras não foram consideradas como práticas que conduziam aos bons costumes ou que poderiam coexistir com a harmonia e a ordem social, pois suas crenças e cultos eram apontados pelos indivíduos, principalmente aqueles com maior influência perante a sociedade, como feitiçarias ou feitos negativos advindos de princípios africanos (COSTA; GOMES, 2016).

Os povos adeptos de religiões de matriz africana são vítimas de violência caracterizada como intolerância religiosa, expressão esta utilizada comumente por sociedade, autores e pesquisadores e que também contribui para a existência de reações positivas de repressão a movimentos considerados intolerantes. Todavia, é importante ressaltar a predominância de questões raciais acerca das religiões de matriz africana, incluindo a presença de um racismo religioso (MOTA, 2017).

Isso permite entender que os praticantes dessas religiões são exemplos de ocorrência que fere a inviolabilidade garantida pelo ideal positivado no inciso VI do art. 5º da CF/88. É possível perceber que, mesmo havendo direitos decretados e reconhecidos pela legislação brasileira acerca da liberdade religiosa e de culto, estes não são plenamente efetivados no cenário da sociedade, e, ainda, que o

[...] desenvolvimento cultural, de visualização, estudo e inserção do africano como elemento formador da nação brasileira foi por longo período, minimizada ou até mesmo invisibilizada por práticas preconceituosas e discriminatórias de uma sociedade que traz consigo “ranços” de um processo escravista de “coisificação” humana (NASCIMENTO, 2010, p. 939).

Acredita-se que os motivos principais para que haja opressão sobre as referidas religiões são a ignorância e o desconhecimento, motivo pelo qual não existe grande número de registros das perseguições (OLIVEIRA, 2014).

Assim, a liberdade religiosa, que deve ser protegida constitucionalmente, não possui total efetividade e garantia real do livre-exercício perante a sociedade, havendo falha no amparo deste bem individual contra sua inviolabilidade e proteção.

Outrossim, há evidente conflito entre a neutralidade religiosa do Estado laico e seu dever protetivo disposto no inciso VI, principalmente no que diz respeito a algumas tradições, a exemplo de manter crucifixos em repartições públicas, adotar feriados católicos no calendário oficial do País e utilizar a palavra “Deus” em cédulas do Banco Central (PUCCINELLI JÚNIOR, 2013).

Efetividade do Art. 5º, VI, da CF/88: Análise de Decisões

Ainda que haja expressa proteção constitucional acerca da liberdade religiosa, é possível verificar em eventos cotidianos a existência de um grande desequilíbrio entre o cumprimento da legislação e o que ocorre na prática.

Inicialmente, expõe-se ação de julgamento ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul (RS), reportando ofensas contra a parte autora com foco na religião que esta frequentava, podendo ainda verificar-se a existência de ação anterior movida pela então ré alegando que a outra parte havia depositado um rato morto em frente à sua residência:

RECURSO INOMINADO. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. DISCUSSÃO ENTRE VIZINHAS. ANIMOSIDADE RECÍPROCA. AGRESSÕES VINDAS DE AMBAS AS PARTES. DANOS

MORAIS INOCORRENTES. Caso em que a parte autora alega que as rés lhe dirigem palavras de baixo calão em preconceito à sua religião Umbanda. Em verdade, o que se extrai da prova colhida aos autos é que existe uma animosidade recíproca entre as partes, sendo que a ré Matilde já havia registrado ocorrência contra a autora, em razão de esta ter arremessado pedras na sua casa, além de já ter colocado um rato morto em frente à casa da ré (fl. 10) Assim, diante da animosidade existente entre as partes, não se pode afirmar que, com a procedência da ação, a indenização por danos morais atenderá a sua dupla finalidade de punir o ofensor e recompensar o lesado pelo dano sofrido, de modo que tal medida restaria inócua. Sentença de improcedência mantida por seus próprios fundamentos. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso Cível nº 71003461746, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira Heerdt, Julgado em 31/05/2012, Data de Julgamento: 31/05/2012 Publicação: Diário da Justiça do dia 06/06/2012, grifo nosso).

Neste caso, pode-se identificar o preconceito quanto à religião de matriz africana, denominada Umbanda, por meio da ocorrência da degradação de sua imagem ao anunciar o depósito de rato morto, visto que ratos são animais comuns nas cidades, podendo advir de qualquer outro modo e local. Isso enfatiza o desconhecimento acerca do assunto, eis que na fundamentação da umbanda “[...] não existe o corte” e, portanto, não há de se falar em sacrifício ou depósito de animais (BARBOSA JÚNIOR, 2014, p. 23).

Outra decisão a ser observada é a proferida na data de 20/05/2014 pelo Juiz de Direito da 17ª Vara de Fazenda Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, no Processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101, possuindo, como autor, o

Ministério Público Federal e, réu, o Google Brasil Internet Ltda. (RIO DE JANEIRO, 2014).

O referido caso tratava-se de uma ação para que fossem retirados da internet vídeos de caráter desrespeitoso e com mensagens de intolerância sobre a crença afro-brasileira. O Magistrado indeferiu o pedido de antecipação de tutela afirmando que estas crenças não eram religiões pelo fato de não possuírem características básicas de uma, como um texto-base semelhante à Bíblia, estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado. Em suas palavras, “as manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença – são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião” (RIO DE JANEIRO, 2014).

Diante disso, houve aclamação de sociedade, mídias e praticantes da religião, o que acabou por resultar na adequação da manifestação do Magistrado, passando a reconhecer que as crenças se tratavam, sim, de religiões. Todavia, manteve a decisão de indeferimento quanto à retirada dos vídeos preconceituosos.

Posteriormente, o Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região e interpôs agravo de instrumento asseverando que os vídeos divulgados na internet não se tratavam de mero caso de liberdade de expressão, mas de um explícito abuso desta, sendo considerado discurso do ódio. Na ocasião, o TRF2 reconheceu o interposto, considerando os vídeos insulto à religião e seus praticantes e ferimento no que tange à liberdade religiosa, a qual pode e deve ser praticada sem julgamento de seus cultos e rituais.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VÍDEOS POTENCIALMENTE OFENSIVOS E FOMENTADORES DO ÓDIO, DA DISCRIMINAÇÃO E DA INTOLERÂNCIA CONTRA AS RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS. RETIRADA DA INTERNET. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA POR DESCUMPRIMENTO. ARMAZENAMENTO DOS RESPECTIVOS DADOS EM AMBIENTE SEGURO. MEDIDA DE CAUTELA. Trata-se de Agravo de Instrumento interposto pelo Ministério Público Federal em face da Decisão monocrática do MM. Juízo da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que indeferiu a antecipação de tutela pleiteada, em sede de Ação Civil Pública, objetivando que os vídeos elencados na inicial sejam retirados da internet, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, cominando-se multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) por dia, em caso de descumprimento da ordem judicial, a ser revertida para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos. Em acréscimo, pugna pelo fornecimento de informações sobre a data, hora, local e número do Internet Protocol (IP) dos computadores que foram utilizados para postar os referidos vídeos, armazenando os dados por 120 (cento e vinte) dias. Alega o Agravante que os vídeos elencados na inicial apresentam conteúdo preconceituoso, intolerante e discriminatório, caracterizando verdadeiro discurso de ódio contra as religiões de matrizes africanas. A liberdade religiosa, como modalidade da liberdade de expressão (manifestação do pensamento) e, especialmente, da liberdade de consciência (que abarca tanto a liberdade de ter como a de não ter religião), se encontra sujeita a limitações no que se refere ao exercício de outros direitos fundamentais e, sobretudo, à dignidade da pessoa humana, sendo certo que, em caso de conflito, deve-se proceder a uma cuidadosa ponderação entre os interesses envolvidos, observando-se, em todo e qualquer caso, o critério da proporcionalidade como norteador na busca da solução para o conflito apresentado. Se é correto afirmar que a prevalência de um direito sobre outro, em casos de conflito, se determina em razão das peculiaridades do caso concreto, não menos acertado é reconhecer que situações existem em que o conflito é apenas aparente, posto que a pretensão de uma das partes envolvidas não se inclui no âmbito de proteção do direito que evoca. É o que se observa em relação ao discurso de ódio (conjunto de manifestações de teor discriminatório e destinadas a incitar o ódio e até mesmo a violência), que constitui situação não abrangida pelo âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão. Verifica-se, do que consta dos autos - bem como do DVD contendo a gravação dos vídeos -, a verossimilhança do direito alegado pelo MPF. De fato, no caso trazido à apreciação deste Órgão Julgador, é possível afirmar que a veiculação de vídeos potencialmente ofensivos e fomentadores do ódio, da discriminação e da intolerância contra as religiões de matrizes africanas não corresponde ao legítimo exercício do direito à liberdade de expressão, merecendo ser, por via de consequência, concedida a tutela do Estado, ao menos de forma provisória, compatível com o presente momento processual, no sentido de determinar-se a imediata retirada dos vídeos listados pelo MPF da rede mundial de computadores. Além da plausibilidade jurídica do pedido, está presente, também, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, na medida em que, a cada dia em que os vídeos permanecem disponíveis no site YOUTUBE, perpetuam-se as mensagens de ódio, discriminação, intolerância e violência neles contidas, que continuam sendo disseminadas a um número indeterminado de pessoas, tendo em vista o acesso irrestrito a tal conteúdo. Quanto à imposição de multa diária por descumprimento à ordem judicial, a sua fixação no valor requerido pelo MPF revela-se ofensiva aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que são de observância obrigatória, razão pela qual mostra-se adequada a redução do valor pleiteado pelo MPF para parâmetro mais factível, até mesmo com vistas à eventual e efetiva execução dessa verba. Ainda em sede de antecipação da tutela, o MPF requer seja a Ré-Agravada determinada a fornecer informações sobre a data, hora, local e número do IP dos computadores que foram utilizados para postar os referidos vídeos. Quanto a tal pedido, em que pese não estarem preenchidos os requisitos necessários à sua concessão, entendo que, por medida de cautela, deva ser determinado o armazenamento dos dados requeridos - sem o fornecimento dos mesmos -, a fim de assegurar a eficácia da tutela jurisdicional vindicada, caso o pedido venha a ser acolhido por ocasião do julgamento do mérito da demanda, atentando-se para a necessidade de armazenamento em ambiente seguro, diante da imperiosa preservação da intimidade dos envolvidos, nos termos do art. 10 da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. IX- Agravo de Instrumento e Agravo interno parcialmente providos (TRF-2 Ag 201400001010430, 7ª Turma Especializada, Relator: Reis Friede, Julgado em 04/09/2014, Publicado em 15/09/2014, grifo nosso).

No caso exposto, fica perceptível a falta de tratamento religioso adequado às religiões de matriz africana, fazendo com que desconhecimento e preconceito acabem privando os praticantes de seus direitos, os quais são assegurados pela Constituição Federal.

Por oportuno, destaca-se julgamento recente, no STF, do Recurso Extraordinário nº 494601, interposto pelo então recorrente Ministério Público do RS contra o recorrido Governador daquele Estado acerca de decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-RS) que negou pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei estadual nº 12.131/2004, a qual tratava da permissão para sacrifício de animais em cultos ritualísticos das religiões de matriz africana.

Neste, que se iniciou em agosto de 2018 e foi suspenso por pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes, foram discutidas as matérias de inconstitucionalidade formal, violação ao princípio da isonomia e violação ao princípio de laicidade do Estado.

Durante todo o processo de julgamento, foram desenvolvidos pontos importantes no que tange ao foco do presente artigo, como a discriminação sofrida pelos praticantes das religiões de matriz africana.

Nos debates em Plenário, em agosto de 2018, o Procurador-Geral da Assembleia Legislativa afirmou que a matéria não deveria ter chegado ao Supremo, tendo em vista “associação absolutamente equivocada porque preconceituosa de conceber todo abate ritual das religiões de matriz africana como maus tratos, como crueldade aos animais”. Também foi destacado que os terreiros do Rio Grande do Sul estavam sendo perseguidos e perturbados por suas práticas em cultos, motivo pelo qual foi inserida, em lei, a autorização para tais atos ritualísticos (BRASIL, 2018).

Ademais, o Vice-Procurador-Geral da República, Luciano Mariz Maia, acentuou a importância do abate em ritos de manifestações de matriz africana, enfatizando que o assunto ainda é marcado por elementos de racismo, discriminação e preconceito (BRASIL, 2018).

No mês de março de 2019, foi retomada a discussão no Plenário, oportunidade na qual o Ministro Luis Roberto Barroso citou que “as religiões de matriz africana é que têm sido historicamente vítimas de intolerância, discriminação e preconceito”, destacando ser ali onde reside o preconceito e por isso é a matéria abordada na lei em questão, o que vem a violar a isonomia, mas consagra a liberdade (STF, REXT 494601, Relator: Marco Aurélio, Julgado em: 28/03/2019, Publicado em: 22/04/2019).

Outrossim, reforçou sobre a religião e a questão de maus tratos afirmando que, no caso concreto, a discriminação iniciou-se por conta do desconhecimento quanto à maneira sobre como são conduzidos os ritos nessas religiões, além de aludir que foi atento às informações prestadas pelos amicus curie e asseverar:

Não se trata de sacrifício ou de sacralização para fins de entretenimento, mas sim para fins de exercício de um direito fundamental que é a liberdade religiosa. Não existe tratamento cruel desses animais. Pelo contrário. A sacralização deve ser conduzida sem o sofrimento inútil do animal (STF, REXT 494601, Relator: Marco Aurélio, Julgado em: 28/03/2019, Publicado em: 22/04/2019).

Os ministros presentes, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e o presidente, Dias Toffoli, também votaram a favor de autorizar a prática, decidindo, por unanimidade, negar provimento ao recurso feito pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que visava a declaração de inconstitucionalidade de lei estadual ao permitir sacrifício de animais em rituais de religiões de matriz africana. Eis a decisão proferida:

O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio (Relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme. Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese: “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não participaram da fixação da tese os Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 28.03.2019 (STF, REXT 494601, Relator: Marco Aurélio, Julgado em: 28/03/2019, Publicado em: 22/04/2019).

Assim, é possível verificar a análise longa e cautelosa ao tratar do assunto, tendo em vista que este ainda é um caso polêmico na atualidade, gerando opiniões divergentes e, muitas vezes, embaralhadas com conceituações pessoais sobre o tema.

CONCLUSÃO

Diante de tudo que foi evidenciado no presente artigo, pode-se perceber que a garantia da liberdade de culto e religiosa percorreu um longo caminho, sendo necessário ultrapassar, no decorrer de séculos, a imposição do ideal de que apenas o catolicismo deveria ser aceito. Por fim, alcançou-se a laicidade estatal, demonstrando a importância da liberdade religiosa por intermédio de medidas internacionais que serviram de inspiração para modelos de constituições e legislação brasileiras, inserindo a liberdade religiosa e de culto como direitos humanos reconhecidos até serem instalados, definitivamente, na forma justa de direito fundamental, disposto no art. 5º, VI, da Constituição que rege o Brasil atualmente.

Todavia, verificou-se que, apesar de estar expresso na legislação o direito à liberdade de culto, há grande dificuldade, na prática, de cumprimento real da garantia, visto que, mesmo estabelecida há mais de 30 anos, não houve cessação de ações que versem sobre a matéria, principalmente no que concerne às religiões de matriz africana existentes no País.

Demonstrou-se que os praticantes das referidas religiões sofrem discriminação quanto à sua forma de culto e aos rituais que este abrange, gerando demandas judiciais frequentes, as quais são, em sua maioria, motivadas por puro preconceito quanto às crenças, como exemplificaram as decisões analisadas no presente trabalho.

Pode-se, então, verificar que o direito à liberdade religiosa dos adeptos das religiões de matriz africana vem sendo oprimido e continua em perseguição, seja pela sociedade em si ou, ainda, pelo próprio Judiciário que, por vezes, não reconhece a matéria com o devido respeito, agindo de forma imparcial e preconceituosa.

Por fim, nota-se que a efetividade do inciso VI do art. 5º da Constituição Federal de 1988 encontra-se falha na grande maioria das vezes, pois não é realmente uma garantia que ocorre na prática cotidiana do Estado.

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1Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito, na ESUCRI, e orientado pelo professor Me. Henrique Rabello Serafim.

Sobre a autora
Larissa Nascimento Matos

Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito da Escola Superior de Criciúma - ESUCRI.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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