Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares. (Montesquieu – “O Espírito das Leis”)
Resumo:
Esse artigo visa abrir discussão face a possibilidade ou não de ocorrer qualquer desrespeito às normas Constitucionais como justificativa de proteção ao Estado Democrático de Direito.
Abstract:
This article aims to open a discussion regarding the possibility or not of any disrespect for Constitutional norms as a justification for the protection of the Democratic Rule of Law.
Palavras-Chaves: Estado Democrático de Direito; Constituição Federal; Devido Processo Legal.
Introdução:
O presente artigo surgiu da necessidade de se discutir se é possível em nome da proteção do Estado Democrático de Direito, desrespeitar normas constitucionais, sendo que pelas últimas decisões proferidas em nossos Tribunais, se percebeu uma tendência em estabelecer valores às normas Constitucionais, justificando-se decisões exageradas sem a observância do devido processo legal como forma urgente de proteger o Estado Democrático de Direito.
Do Estado Democrático de Direito
Primeiramente cumpre-nos destacar que os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro estabelecido no art. 3º, da CF/88 é construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem-estar de todos sem preconceitos ou mesmo discriminação.
O art. 2º do mesmo diploma legal estabelece a importância da separação das funções dos entes formadores do Estado e o respeito que cada ente deve possuir entre si, agindo de forma harmônica e independente visando, principalmente, o respeito ao sistema de “freios e contrapesos” para nenhum órgão no seu exercício exacerbar suas funções ou quiçá agir em desrespeito ao tudo quanto vem elencado em nossa Carta Magna de 1988.
“Não há, pois, qualquer dúvida da estreita interligação constitucional entre a defesa da separação de poderes e dos direitos fundamentais como requisito sine qua non para a existência de um Estado democrático de direito. Nesta esteira, o legislador constituinte previu diversas imunidades e garantias para os exercentes de funções estatais relacionadas com a defesa dos direitos fundamentais e gerência dos negócios do Estado, definindo-as nos capítulos respectivos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e, também, da Instituição do Ministério Público.
Os órgãos exercentes das funções estatais, para serem independentes, conseguindo frear uns aos outros, com verdadeiros controles recíprocos, necessitavam de certas garantias e prerrogativas constitucionais. E tais garantias são invioláveis e impostergáveis, sob pena de ocorrer desequilíbrio entre eles e desestabilização do governo. E, quando o desequilíbrio agiganta o Executivo, instala-se o despotismo, a ditadura, desaguando no próprio arbítrio, como afirmava Montesquieu ao analisar a necessidade da existência de imunidades e prerrogativas para o bom exercício das funções do Estado. (Moraes, Alexandre de,)
Os artigos 1º e 14, da Constituição Federal consagram o princípio da Soberania Popular o que vem intimamente ligado aos art. 2º e 3º da CF/88 completando em si o que seria o Estado Democrático Brasileiro por meio do poder emanado do povo que legitima o poder político, possibilitando que todas e cada uma das pessoas participem da vida política de um país. É, pois, aquele que garante, a partir de um Estado governado democraticamente e submetido ao Direito como fundamento primeiro de suas ações, o atendimento a elementos básicos que promovam uma vida digna a todos os cidadãos e cidadãs.
E em nome da proteção de todo esse arcabouço seria possível o desrespeito da própria Constituição Federal/88 de tudo quanto vem elencado em seu artigo 5º?
Da Constituição Federal, Princípios Fundamentais e Devido Processo Legal
Dentre tantas proteções havidas no artigo 5º, da CF/88, importante destacar algumas como imperiosas que não devem ser de sobremaneira desrespeitadas:
Todos são iguais perante a Lei e, portanto, devem ter seus direitos assegurados de forma legítima e justa em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa:
O Art. 5º ainda estabelece que:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Esse conjunto de direito visa garantir a dignidade da pessoa humana e, por ser um princípio maior e fundamental é a base de todo ordenamento jurídico, não podendo e não devendo ser desrespeitado em nome de qualquer outro valor fundamental.
Alvim (1999) diz que um dos exemplos do princípio do devido processo legal se encontra no princípio de que nulla poena sine iudicio (não há pena sem o processo) e a própria Carta de Declaração dos Direitos Humanos.
“Entende-se com essa fórmula, o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante do exercício da jurisdição”. (GRINOVER, Ada Pelegrini).
Para Silveira (2018), o princípio do devido processo legal está inserido no contexto, mais amplo, das garantias constitucionais do processo, e que somente mediante a existência de normas processuais justas é que se conseguirá a manutenção de uma sociedade sob o império do Direito.
Em sua lição, Carvalho (2011) menciona que o princípio do devido processo legal protege a liberdade, em seu sentido amplo – liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, liberdade de fazer e não fazer, de acordo com a lei, e os bens, também, em amplo sentido – bens corpóreos (propriedades, posses, valores) e bens incorpóreos (direitos, ações, obras intelectuais, literárias, artísticas, sua imagem, seu conceito, sua expressão corporal etc.)
Paoliello (2019) afirma que é fácil entender que os princípios são regras legais por excelência e que se encontram no topo da pirâmide jurídica devem ser obrigatoriamente observados pelo Juiz quando da prolação de uma decisão. Errada, pois, toda e qualquer interpretação de regra jurídica que vai de encontro ao conteúdo de um princípio constitucional. Sendo os princípios expressamente previstos no primeiro artigo da Constituição Federal, impossível não reconhecer sua positivação e, portanto, a necessidade de integração, sempre hierárquica, com as demais regras constitucionais e, sobretudo, infraconstitucionais.
O princípio do devido processo legal é, pois, um dos mais importantes dos princípios constitucionais, devendo ser respeitado por todos os operadores do direito, sob pena de violação direta de quase todos os outros dispositivos existentes no ordenamento jurídico brasileiro, já que a isonomia informa e fundamenta como pilar de sustentabilidade toda a ordem constitucional brasileira. Está inserido na Constituição não com função meramente estética, ou servindo como adorno dela, mas constitui-se como um princípio que tem plena eficácia e deve ser respeitado, pois caso contrário, estaremos diante de um desrespeito reiterado e direto a nossa Carta Magna.
E se os próprios entes do Judiciário, desrespeitam tudo quanto vem elencado nos princípios Constitucionais em nome da defesa do Estado Democrático de Direito estaríamos vivendo uma subversão por meio de uma tirania travestida de órgão regulador e protetor da Constituição.
Nesse sentido, não há que se justifique o desrespeito a cláusula pétrea existente em nosso ordenamento Constitucional em nome de regular ou mesmo proteger o Estado Democrático de Direito, pois não é se desrespeitando a Constituição Federal que se exige o próprio respeito a ela e em nome da preservação da Democracia, uma vez que a Democracia se inicia não só com o poder que emana do povo, mas por meio dos diplomas legais que protegem a liberdade e os direitos desse povo.
O Fim não Justifica os Meios
O fim justifica os meios" ou "os fins justificam os meios" é uma paráfrase de Nicolau Maquiavel (Machiavelli Said, "the Ends Justify the Means" - Fact or Myth?. Fact / Myth (em inglês). Consultado em 21 de setembro de 2022) significando que se os objetivos forem importantes o suficiente, qualquer método para os atingir é aceitável.
Significa que os governantes devem estar acima da ética dominante para manter ou aumentar seu poder. Popularmente, a frase é também usada como justificativa do emprego de expedientes desonestos ou violentos para a obtenção de determinado fim, supostamente legítimo.
A afirmação seria também oposta à doutrina cristã, que diz exatamente o contrário: "Não se pode justificar uma ação má com boa intenção. O fim não justifica os meios." (Catecismo da Igreja Católica, §1759)
Conclusão
Concluindo-se não há que para proteção de Estado Democrático de Direito, seja aceitável o desrespeito reiterado aos dispositivos Constitucionais ou mesmo legais, pois se estaria causando além de uma insegurança jurídica uma desestabilização da própria existência do Estado, enquanto ente regulador das relações humanas.
Bibliografia:
ALVIM, J. E. Carreira. Elementos de teoria geral do processo. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999;
CARVALHO, Luiz Airton. Princípios Processuais Constitucionais. Rio de Janeiro: Cartilha Jurídica, TRF/1ª Região, nº 28, 1994;
GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria Geral do Processo 26 ed. São Paulo: Malheiros . 2010;
PAOLIELLO; Márcia Carvalho de Lacerda. Princípio do devido processo legal na Constituição Federal. Conteúdo Jurídico | Princípio do devido processo legal na Constituição Federal (conteudojuridico.com.br). 2019;
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 9. ed. Tradução de Pedro Vieira Mota. São Paulo: Saraiva. 2007.;
MORAES, Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 35. ed. São Paulo: Grupo Gen. 2019;
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido Processo Legal Due Process of Law. 4ª ed.rev. e ampliada. Curitiba: Juruá Editora. 2018;