O uso de deepfakes nas eleições municipais de 2024 no Brasil traz à tona uma questão crítica: a manipulação de informações através de inteligência artificial (IA) para influenciar eleitores e distorcer a verdade. Deepfake é uma tecnologia que utiliza IA para criar vídeos ou áudios falsos, fazendo parecer que uma pessoa disse ou fez algo que, na realidade, nunca ocorreu. Essa tecnologia vem sendo amplamente discutida no contexto eleitoral por sua capacidade de manipular o eleitorado de forma dissimulada e prejudicial.
Com a proximidade do pleito eleitoral, com o primeiro turno em 6 de outubro de 2024 e o segundo turno marcado para 27 de outubro de 2024, o uso de deepfakes nas campanhas eleitorais gera preocupações crescentes. Ao distorcer imagens e sons, deepfakes confundem o eleitor, minam a confiança no processo democrático e, se usados de forma maliciosa, podem levar a graves consequências para os candidatos e para a própria democracia. A criação e disseminação dessas falsificações, além de serem questões éticas, podem violar tanto o Código Eleitoral quanto o Código Penal brasileiro, implicando severas sanções jurídicas.
Entendendo o Impacto Legal
No Brasil, a legislação eleitoral já prevê penalidades para a disseminação de informações falsas, como disposto na Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições). Essa lei proíbe a divulgação de fatos inverídicos que possam interferir no resultado das eleições ou induzir o eleitor a erro. Quando um deepfake é utilizado com o intuito de prejudicar ou favorecer um candidato, o ato se encaixa no artigo 323 do Código Eleitoral, que prevê pena de dois meses a um ano de detenção, além de multa. Caso a manipulação envolva ataques à honra de um candidato, pode-se aplicar também os artigos do Código Penal que tratam de crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria (artigos 138 a 140).
Exemplo Prático
Para ilustrar, suponha que um deepfake seja criado mostrando um candidato recebendo propina, uma situação completamente fabricada. O vídeo falso é disseminado nas redes sociais dias antes das eleições, causando grande repercussão e levando à queda de sua popularidade. Se comprovado que o vídeo foi manipulado, os responsáveis pela criação e disseminação podem ser processados criminalmente por falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), além de responderem na Justiça Eleitoral por influenciar o resultado do pleito de forma fraudulenta. O candidato adversário que se beneficiou desse deepfake também pode ser alvo de ações judiciais, resultando até na perda do mandato, se eleito.
Jurisprudência e Casos Relevantes
Embora no Brasil ainda não haja um grande número de casos envolvendo deepfakes nas eleições, o tema já é amplamente discutido em outros países. Um caso emblemático é o da eleição presidencial dos Estados Unidos em 2020, onde vídeos falsificados de políticos circularam, gerando grandes controvérsias. No Brasil, é possível que, em breve, surjam precedentes judiciais sobre o uso de deepfakes, à medida que a tecnologia se torna mais acessível e difundida.
Uma jurisprudência recente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) envolve a divulgação de notícias falsas, que pode ser vista como precursora para casos envolvendo deepfakes. Em 2020, o TSE cassou o mandato de um prefeito em função da disseminação de conteúdos falsos durante a campanha. Este caso demonstra o rigor com que a Justiça Eleitoral trata a desinformação, e é um indicativo de como os tribunais poderão lidar com deepfakes no futuro.
Doutrina de Patrícia Peck e Outros Especialistas
A advogada Patrícia Peck, em sua obra Direito Digital: Internet e os Tribunais (2021), discute a responsabilidade digital e as implicações legais da manipulação de dados e informações. Peck alerta para o risco de a tecnologia de deepfake ser utilizada para fins ilícitos, destacando a importância de um arcabouço jurídico robusto para lidar com esse novo cenário. Ela também menciona a necessidade de uma educação digital mais ampla para que a sociedade seja capaz de identificar e combater esses falsos conteúdos.
Outros especialistas em direito digital, como Renato Opice Blum e Gisele Truzzi, também têm discutido o impacto dos deepfakes. Opice Blum, por exemplo, enfatiza a importância da legislação brasileira acompanhar os avanços tecnológicos, apontando que o atual arcabouço jurídico é limitado para lidar com esse tipo de ameaça digital. Já Gisele Truzzi, em sua obra Direito Digital e as Novas Tecnologias (2020), destaca a necessidade de criar mecanismos preventivos para evitar a propagação de deepfakes e outras formas de manipulação digital, sugerindo que o poder público e as plataformas digitais trabalhem de forma conjunta para combater esse problema.
Reflexões sobre o uso de Deepfakes
O uso de deepfakes no contexto eleitoral coloca em risco não apenas a reputação de candidatos, mas também a integridade do processo democrático. Uma sociedade que se baseia em informações falsas para tomar decisões eleitorais está sujeita a eleger candidatos sob premissas incorretas, comprometendo a própria legitimidade do governo.
Para refletir…
1. Como o eleitor pode se proteger de ser enganado por um deepfake?
2. As plataformas digitais estão fazendo o suficiente para combater a disseminação de deepfakes?
3. De que maneira o Judiciário pode se adaptar para julgar rapidamente esses casos, sem comprometer a imparcialidade?
4. Quais são as estratégias para educar o público sobre a identificação de deepfakes nas redes sociais?
5. Qual a responsabilidade de quem compartilha, mesmo que sem saber, um deepfake nas redes sociais?
Considerações Finais
As consequências jurídicas para o uso de deepfakes nas eleições vão além da simples punição individual, atingindo o coração do processo democrático. Além das sanções já previstas no Código Eleitoral e Penal, é necessário que haja um aprimoramento constante na forma de detecção e combate a essas tecnologias. A criação de unidades especializadas para lidar com crimes digitais nas eleições seria um passo importante para assegurar que a manipulação tecnológica não interfira na vontade popular.
A legislação atual, embora contenha mecanismos para coibir abusos, ainda precisa evoluir para acompanhar o desenvolvimento tecnológico. Propostas legislativas que regulamentem o uso de inteligência artificial e endureçam as penalidades para crimes envolvendo deepfakes podem ser uma solução eficaz para o futuro próximo. Além disso, é vital que a sociedade, as plataformas digitais e o poder público unam esforços para educar os eleitores sobre os riscos das informações falsas e para implementar mecanismos de verificação de conteúdo.
Finalmente, a justiça eleitoral deve agir com celeridade e rigor ao julgar casos de uso de deepfakes, garantindo que o processo eleitoral se mantenha íntegro. A colaboração internacional e o compartilhamento de boas práticas entre nações também serão fundamentais para enfrentar esse desafio global. É necessário que o Brasil se insira nessa discussão global para proteger a democracia e assegurar eleições limpas e justas.
Referências
BRASIL. Código Eleitoral. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
BRASIL. Lei das Eleições. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.
OPICE BLUM, Renato. Direito e Novas Tecnologias: Regulação e Governança. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.
PECK, Patrícia. Direito Digital: Internet e os Tribunais. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
TRUZZI, Gisele. Direito Digital e as Novas Tecnologias. 2ª ed. São Paulo: Almedina, 2020.