Crime contra a ordem tributária. Pressuposto legal

16/09/2024 às 07:55
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Crime contra a ordem tributária. Pressuposto legal

Sumário. Que todo crime deva ser punido, tem-se por preceito legal, não só aspiração comum de justiça. Importa, porém, verificar primeiro se, no caso em espécie, concorrem, sem falta, os elementos constitutivos do tipo penal, para que se não instaure, nas instâncias julgadoras, o império do arbítrio e da iniquidade.

I. Sem prova ou convicção da existência do crime, não há instaurar persecução penal, pois que o corpo de delito constitui elemento fundamental assim do processo como da própria relação jurídico-substantiva que desfecha no “jus puniendi”.

Tal noção, ainda que de cunho rudimentar, tem assaz de peso e relevo nos crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90); é que, interpretando-lhe um dos aspectos, puseram-se às testilhas pareceres de abalizados juristas.

Mas, a despeito das vozes contrárias (que contam com adeptos na primeira esfera do pensamento jurídico do País), tem por si o voto majoritário do Supremo Tribunal Federal a tese de que, nos crimes contra a ordem tributária, o procedimento administrativo-fiscal constitui pressuposto ou condição de procedibilidade, como o persuadem as ementas seguintes:

a) “Enquanto se não constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90” (STF; HC nº 84.092-CE; rel. Min. Celso de Mello);

b) “O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário” (STF; Rev. Tribs., vol. 824, p. 495; rel. Min. Cezar Peluso).

Examinado à justa luz, é esse o entendimento que, em verdade, se conforma e ajusta melhor aos princípios que regem a ordem econômica (art. 170 da Const. Federal) e responde ao dogma da segurança jurídica, base em que se apoia o Estado Democrático de Direito.

II. Por isso mesmo que benemérita de aceitação a doutrina professada naqueles venerandos arestos, não trepidou em adotá-la o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, abaixo transcrito:

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Quinta Câmara – Seção Criminal

“Habeas Corpus” nº 848.905-3/5-00

Comarca: São Paulo

Impetrante: Dr. Renato Araujo Valim

Pacientes: SLD e BCLD

Voto nº 6239

Relator

“Judicis est semper in causis verum sequi” (Cicero, De Offic. II, 10). Nas causas, é dever do juiz buscar sempre a verdade.

– Fui também dos que sustentavam não ser condição para a instauração da ação penal o exaurimento das vias administrativas. Mas, após analisar de espaço o tema tormentoso, e confrontá-lo com o estado atual da jurisprudência dos Tribunais, persuadi-me de que a orientação que reputa imprescindível à instauração da instância penal a decisão definitiva do processo administrativo é, de feito, a mais razoável, além de jurídica e justa.

“Enquanto se não constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90” (STF; HC nº 84.092-CE; rel. Min. Celso de Mello).

– Nos crimes contra a ordem tributária (art. 1º da Lei nº 8.137/90), o parcelamento da dívida antes do recebimento da denúncia elide a justa causa para a ação penal e autoriza a extinção da punibilidade do réu (art. 34 da Lei nº 9.249/95).

“O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário” (STF; Min. Cezar Peluso; Rev. Tribs., vol. 824, p. 495).

1. Em favor de SLD e BCLD, o ilustre advogado Dr. Renato Araujo Valim impetra a este Egrégio Tribunal ordem de “habeas corpus”, sob o argumento de que padecem constrangimento ilegal da parte do membro do MM. Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (DIPO).

Alega, em esmerada petição (fls. 2/10), que foi instaurado inquérito policial contra os pacientes para apuração de eventual prática de crime contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90).

Afirma que, no entanto, era manifesto o constrangimento ilegal que sofriam, uma vez falecia justa causa para a persecução penal.

Acrescenta o digno impetrante que, na apuração do ilícito imputado aos pacientes, não havia prescindir do prévio procedimento administrativo fiscal, elementar da exigibilidade da obrigação tributária.

Ajuntou que isso mesmo praticavam nossas Cortes de Justiça, o Colendo Supremo Tribunal Federal inclusive.

Pleiteia, destarte, à colenda Câmara tenha a bem conceder-lhe ordem de “habeas corpus” para trancar o inquérito policial.

Instruiu o pedido com cópias de peças processuais de interesse da ação (fls. 12/97).

O r. despacho de fl. 101, proferido pela egrégia 2a. Vice-Presidência deste Tribunal, concedeu a liminar requerida.

O MM. Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (DIPO) prestou as informações de estilo (fls. 105/106), nas quais esclareceu que, por requisição do Ministério Público, foi instaurado inquérito policial para a apuração de eventual prática de crimes contra a ordem tributária por parte dos representantes legais da empresa “Fixoflex Manufaturados Têxteis Ltda.”.

Informou também que os autos aguardavam a realização de diligências e que lhe constara, pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), a existência de procedimento administrativo em nome da empresa dos pacientes em grau de recurso.

O ofício de informações acompanha-se de novas cópias de peças processuais (fls. 107/114).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e substancioso parecer do Dr. João Antônio Marchi, opina pela denegação da ordem e cassação da liminar deferida (fls. 116/131).

É o relatório.

2. Consta destes autos que os pacientes, sócios-proprietários da empresa Fixoflex Manufaturados Têxteis Ltda., foram submetidos a inquérito, sob a alegação de haverem suprimido montante relativo a ICMS, que deixaram de recolher aos cofres públicos, mediante fraude à fiscalização tributária.

O esforçado impetrante argumenta que os pacientes estão sofrendo constrangimento ilegítimo, porquanto a decisão final do procedimento administrativo que tramita perante o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) constituía condição objetiva de punibilidade para a instauração de inquérito policial nos casos de crimes de natureza tributária.

Irresignados com a instauração do inquérito policial, vêm a esta augusta Corte de Justiça, na expectativa de obter‑lhe o trancamento, por falta de justa causa.

3. Em que pese aos bons esforços e talentos do ilustre subscritor do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, mostra-se atendível a pretensão dos pacientes.

Embora a matéria que faz objeto desta ação seja ainda pábulo de vivas e intensas controvérsias no seio do Judiciário, a solução que deu à espécie o r. despacho da egrégia 2a. Vice‑Presidência do Tribunal, deferindo medida liminar aos pacientes, é a que passa por mais autorizada e curial.

O ponto saliente, agitado nestes autos de “habeas corpus”, é saber se o procedimento administrativo de apuração de débito tributário constitui condição de procedibilidade para a instauração da ação penal.

A resposta a tal proposição há de ser francamente afirmativa, a despeito das vozes discrepantes, que, nem por constituírem minoria, desapresentam suma importância. Em verdade, a corrente dos que prestigiam a tese de que o procedimento administrativo-fiscal não configura pressuposto ou condição de procedibilidade é caudalosa e conta com adeptos na primeira esfera do pensamento jurídico do País.

A inteligência porém que, a respeito da questão, vai obtendo sufrágios mais numerosos é a que considera o procedimento administrativo condição da persecução penal em Juízo.

Fui também dos que sustentavam não ser condição para a instauração da ação penal o exaurimento das vias administrativas.

Mas, após analisar de espaço o tema tormentoso, e confrontá-lo com o estado atual da jurisprudência dos Tribunais, persuadi-me de que a orientação que reputa imprescindível à instauração da instância penal a decisão definitiva do processo administrativo é, de feito, a mais razoável, além de jurídica e justa.

Isto de mudar alguém de opinião, sobretudo se juiz, é matéria que faz natural abalo no ânimo.

É que, segundo Orosimbo Nonato — espelho da Magistratura pátria, jurista exímio e galante escritor —, “todos os homens erramos. Ninguém possui a pedra lídia da verdade”.

Prossegue o notável Ministro do Supremo Tribunal Federal:

“Ao juiz, essa confissão se torna penosa não apenas por afeição paternal que dedicamos aos partos do nosso entendimento, como dizia Frei Luís de Sousa, senão ainda pelo reconhecimento dos grandes males suscitados pelas oscilações de uma jurisprudência voltária e flexível, matriz de inseguranças perturbadoras do comércio jurídico e das relações do consórcio civil.

Mas, a verdadeira coerência é a moral, e tributo constante e infalível só é devido à verdade que o juiz julga identificar em face de novos estudos retificadores de erros passados. Se a consciência dessa situação se lhe impõe com as cores da evidência, todas as demais considerações se dissipam e se evaporam: confessará ele o engano e decidirá de modo diferente em obséquio à verdade.

Como dizia Cícero, judicis est semper in causis verum sequi” (in Revista Forense, vol. 177, p. 143). Nas causas, é dever do juiz buscar sempre a verdade!

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4. Ao julgar, em 10.12.2003, o “Habeas Corpus” nº 81.611-8-DF, o Colendo Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, decidiu, por maioria de votos, que “falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da Lei nº 8.137/90 — que é material ou de resultado —, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento”.

Entendimento foi esse que o Excelso Pretório consagrou também no julgamento do “Habeas Corpus” nº 81.929-0-RJ (rel. Min. Cezar Peluso):

“O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário” (Rev. Tribs., vol. 824, p. 495).

Por esta mesma craveira decidiu a colenda 5a. Turma do Superior Tribunal de Justiça:

“Reiterada jurisprudência desta Corte no sentido de que o parcelamento da dívida tributária equivale a pagamento, acarretando a extinção da punibilidade do sujeito ativo da infração, nos termos do art. 34 da Lei nº 9.249/95” (STJ; REsp nº 180.950-SP; 5a. Turma; rel. Min. José Arnaldo da Fonseca; DJ 9.9.2002, p. 236; in Rev. Tribs., vol. 831, p. 551).

Destarte, havendo consideração ao princípio da segurança jurídica — “a segurança e a certeza do direito são indispensáveis para que haja justiça, porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o cumprimento de obrigações” (Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, 3a. ed., p. 325) — e à missão constitucional da Suprema Corte de Justiça: guardiã de todas as leis e o seu máximo intérprete, hei por digníssima de prevalecer a inteligência de que, enquanto se não “constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em consequência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar da fluência da prescrição penal, que somente se consumará com a consumação do delito (art. 111 do Cód. Penal)” (STF; HC nº 84.092-CE; rel. Min. Celso de Mello).

Ora, no caso “sub judice”, os pacientes comprovaram que o procedimento administrativo tributário estava pendente de recurso junto ao Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) (fl. 97).

Destarte, por isso mesmo que não encerrada ainda a instância administrativa, será de preceito e bom aviso conceder a ordem de “habeas corpus” para suspender o curso do inquérito policial instaurado contra os pacientes.

5. Pelo exposto, concedo ordem de “habeas corpus” para suspender o curso do Inquérito Policial nº 050.05.015580-6/0000, registrado sob o nº 35/05, instaurado contra os pacientes para a apuração de crime de natureza tributária. A digna autoridade policial fará as diligências de praxe, no intuito de informar-se, periodicamente, acerca do andamento e definição do pleito no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT).

São Paulo, 9 de setembro de 2005

Carlos Biasotti

Relator

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

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