INTRODUÇÃO
Em agosto de 2023, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou, em sua página oficial, os dados do “Balanço da 1ª década de ação pela segurança no trânsito no Brasil e perspectivas para a 2ª década”. Tendo em vista que no ano de 2020 ocorreu um evento atípico, a pandemia de Covid-19, a pesquisa considerou apenas os dados compreendidos entre 2010 e 2019. Nesse período, foram registradas no país cerca de 392 mil mortes em sinistros de trânsito.
Insta salientar que, antigamente, na legislação de trânsito utilizava-se a expressão “acidentes de trânsito” para denominar os eventos danosos envolvendo veículos, vias, pessoas e/ou animais. Contudo, a partir da alteração da Lei 9.503/97 - Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trazida pela Lei 14.599, de junho de 2023, passou-se a empregar a expressão sinistro de trânsito, conforme a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), através da NBR 10.697/2020 já havia regulamentado. Em suma, por entender que acidente relaciona-se a evento inevitável ou que não guarde relação com o comportamento humano decorrente de imperícia, imprudência ou negligência.
Nesse ponto, ressalta-se que as questões comportamentais, fruto da inobservância da legislação de trânsito, estão dentre as principais fontes causadoras de tais sinistros. Entretanto, para que a Administração exerça seu poder de polícia, atuando na segurança viária, esta deve agir dentro dos limites que lhes são impostos, respeitando o devido processo legal e as demais garantias constitucionais que o cidadão possui.
A presente pesquisa justifica-se pelo fato de existir a possibilidade de que as garantias constitucionais de ampla defesa e do contraditório estejam sendo cerceadas, na esfera da aplicação das penalidades do Código de Trânsito Brasileiro, em que pese estejam asseguradas em diversos dispositivos legais pertinentes ao direito de trânsito.
O contraditório e a ampla defesa são ferramentas de garantia democrática no processo administrativo (oportunizam, dentre outros, o direito à produção de provas e a interposição de recursos para se opor a ações/procedimentos). Através de tais princípios a Administração Pública e os cidadãos, necessariamente, aproximam-se, na defesa dos seus interesses.
Portanto, é defeso à Administração Pública proceder contra qualquer indivíduo, atingindo-lhe seus direitos, sem observar o dever jurídico de atender ao contido nos citados princípios, afluindo diretamente à decisão que repute cabível.
No direito de trânsito, há que se destacar que os artigos 280, 281 e 282, do CTB, estabelecem (em conjunto com outros normativos) o procedimento administrativo de trânsito, desde os dados indispensáveis e o método de lavratura dos autos de infração, a forma e os prazos das notificações, dentre outros. Entretanto, ressalta-se a inexistência de previsão expressa para os órgãos de trânsito concederem o direito ao contraditório e a ampla defesa, quando se trata do cancelamento da Permissão para Dirigir - PPD.
Neste sentido, esta pesquisa debruça-se sobre a necessidade de, quando se tem o cancelamento da Permissão para Dirigir, conceder novamente direito aos condutores infratores de deduzir suas pretensões e defesas para demonstrar a irregularidade/inconsistência da(s) autuação(ões) e de suas consequências.
A metodologia utilizada na pesquisa foi a da revisão de literatura, caracterizada como bibliográfico-descritiva e documental tendo como ponto focal o objetivo de confrontar e analisar as informações contidas nas bibliografias selecionadas com as jurisprudências do Supremo Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais diversos.
O seu caráter bibliográfico se dará pelo interesse em conhecer e analisar as principais contribuições teóricas, buscadas em livros e artigos existentes sobre as controvérsias acerca da necessidade de contraditório e ampla defesa na ocorrência de cancelamento da PPD dos condutores. A natureza de pesquisa documental, por seu turno, dá-se posto que serão confrontadas jurisprudências de cunhos diversos.
1. A habilitação para conduzir veículos automotores
Segundo dados do Registro Nacional de Carteiras de Habilitação (RENACH), o Brasil possuía até agosto de 2023, um total de 81.602.080 condutores em todas as categorias.
A Permissão Para Dirigir (PPD), comumente denominada como “Provisória”, é a primeira habilitação concedida ao condutor aprovado em todos os exames exigidos pela legislação e formado por um Centro de Formação de Condutores (Autoescola).
A Carteira Nacional de Habilitação (CNH), por seu turno, é o documento definitivo, a ser expedido após o período de 01 (um) ano de PPD, desde que o condutor atenda as determinações previstas no artigo 148, do Código de Trânsito Brasileiro, conforme a seguir:
Art. 148. Os exames de habilitação, exceto os de direção veicular, poderão ser aplicados por entidades públicas ou privadas credenciadas pelo órgão executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, de acordo com as normas estabelecidas pelo CONTRAN.
§ 1º A formação de condutores deverá incluir, obrigatoriamente, curso de direção defensiva e de conceitos básicos de proteção ao meio ambiente relacionados com o trânsito.
§ 2º Ao candidato aprovado será conferida Permissão para Dirigir, com validade de um ano.
§ 3º A Carteira Nacional de Habilitação será conferida ao condutor no término de um ano, desde que o mesmo não tenha cometido nenhuma infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média.
§ 4º A não obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, tendo em vista a incapacidade de atendimento do disposto no parágrafo anterior, obriga o candidato a reiniciar todo o processo de habilitação.
§ 5º O Conselho Nacional de Trânsito - CONTRAN poderá dispensar os tripulantes de aeronaves que apresentarem o cartão de saúde expedido pelas Forças Armadas ou pelo Departamento de Aeronáutica Civil, respectivamente, da prestação do exame de aptidão física e mental (Brasil, 1997, grifo nosso).
Neste ponto, ao se debater sobre o sentido e alcance do ato normativo, entende-se, de forma hermenêutica, que o legislador revela que a consequência experimentada por quem comete infração grave, gravíssima ou é reincidente em média no período da permissão (1 ano), será arcar com o desdobramento natural desta situação: a não obtenção da carteira nacional de habilitação.
O Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, coordenador do Sistema Nacional de Trânsito e órgão máximo consultivo e normativo, possui, entre suas imputações, a competência para normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, bem como constituir as normas regulamentares referidas no Código de Trânsito Brasileiro, conforme preconiza seu artigo 12:
Art. 12. Compete ao CONTRAN:
I - estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito;
II - coordenar os órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, objetivando a integração de suas atividades;
III - (VETADO)
IV - criar Câmaras Temáticas;
V - estabelecer seu regimento interno e as diretrizes para o funcionamento dos CETRAN e CONTRANDIFE;
VI - estabelecer as diretrizes do regimento das JARI;
VII - zelar pela uniformidade e cumprimento das normas contidas neste Código e nas resoluções complementares;
VIII - estabelecer e normatizar os procedimentos para o enquadramento das condutas expressamente referidas neste Código, para a fiscalização e a aplicação das medidas administrativas e das penalidades por infrações e para a arrecadação das multas aplicadas e o repasse dos valores arrecadados; (Redação dada pela Lei nº 14.071, de 2020) (Vigência)
IX - responder às consultas que lhe forem formuladas, relativas à aplicação da legislação de trânsito;
X - normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos;
XI - aprovar, complementar ou alterar os dispositivos de sinalização e os dispositivos e equipamentos de trânsito;
XII - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 14.071, de 2020) (Vigência)
XIII - avocar, para análise e soluções, processos sobre conflitos de competência ou circunscrição, ou, quando necessário, unificar as decisões administrativas; e
XIV - dirimir conflitos sobre circunscrição e competência de trânsito no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal.
XV - normatizar o processo de formação do candidato à obtenção da Carteira Nacional de Habilitação, estabelecendo seu conteúdo didático-pedagógico, carga horária, avaliações, exames, execução e fiscalização (Incluído pela Lei nº 13.281, de 2016) (Vigência) (Brasil, 1997, grifo nosso).
Nesse esteio, o próprio CONTRAN regulamentou as especificações, a produção e a expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), através da Resolução CONTRAN nº 886, de 13 de dezembro de 2021, in verbis:
Art. 7º A expedição da CNH se dará quando:
II - da substituição da PPD pela CNH definitiva, ao término do prazo de validade de 1 (um) ano da PPD, desde que atendido o disposto no § 3º do art. 148 do CTB; (Conselho Nacional de Trânsito, 2021, p. 03).
No bojo da Resolução retromencionada é possível constatar ainda que a PPD trata-se de um documento similar (mesmo modelo) à Carteira Nacional de Habilitação, mas que, na prática, guarda especificidades em relação ao documento definitivo, conforme inteligência do seu artigo 3º, a seguir transcrito:
Art. 3º A Permissão Para Dirigir (PPD) e a Autorização para Conduzir Ciclomotores (ACC) terão o mesmo modelo da CNH.
§ 1º A letra "P" na lateral direita do anverso do documento, constante do modelo estabelecido pelo Anexo I, será impressa apenas nas PPD (Conselho Nacional de Trânsito, 2021, p. 01).
2. Do devido processo legal, contraditório e ampla defesa no processo administrativo
O processo administrativo seria uma sucessão ordenada de atos e atividades do Estado e dos particulares que se voltam à produção de um resultado final e conclusivo. Cada ato per si cumpre uma função fundamentalmente sua, e junto aos demais atos, converge para uma manifestação decisiva acerca de determinado assunto. E é nesse sentido que se pode identificar o objetivo de, por um lado, resguardar os direitos dos administrados e, de outro, contribuir para uma inequívoca e transparente atuação administrativa.
O Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, defende a igualdade entre cidadãos e garante o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processos, tanto judiciais quanto administrativos, conforme estabelece a Carta Magna brasileira:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(Omissis)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (Brasil, 1988).
A previsão do princípio do devido processo legal assume, portanto, status de princípio constitucional, e sendo aplicável aos processos administrativos e judiciais, conforme o dispositivo acima.
Do texto constitucional depreende-se, ainda, determinadas condições essenciais para que o devido processo legal se realize, quais sejam: a de que só é devido processo legal o processo que se desenvolve perante a um juiz imparcial e independente; a de que não há processo legal devido sem que se assegure o acesso ao Judiciário; e a de que as garantias citadas anteriormente não se perfazem per si, caso não seja assegurado às partes o contraditório.
Conforme leciona o professor e pós-doutor Alexandre Mazza, em sua obra Manual do Direito Administrativo:
Esse princípio decorre da exigência de observar-se um processo previsto na legislação relaciona-se com a noção de legitimidade pelo procedimento, segundo a qual, no moderno Estado de Direito, a validade das decisões praticadas pelos órgãos e agentes governamentais está condicionada ao cumprimento de um rito procedimental preestabelecido (Mazza, 2022, p.583).
Esta garantia constitucional leva a crer que o indivíduo que sofra restrição em sua liberdade ou interferências em seus bens jurídicos constitucionalmente protegidos, utilizando-se dos meios e recursos cabíveis, terá o direito de se defender, devendo estar assegurada a paridade de condições em face do Estado. Não sendo respeitada tal garantia, o ato inconstitucional será e, em vista disso, tornar-se-á inválido de pleno direito.
O contraditório, por seu turno, acha-se mais precisamente na necessidade da paridade de participação das partes na relação jurídico administrativa, corolário da dialeticidade. Assim, vê-se no princípio do contraditório a base da oportunização de uma parte se manifestar quando a outra houver também, se manifestado de forma contrária aos seus interesses. Logo, o contraditório deixou, há tempo, de ser restrito a apresentação de defesa, mostrando-se essencial para a aplicabilidade da justiça ao caso concreto, ao conceder às partes, o direito de serem ouvidas, de produzir provas, de conhecer a motivação das decisões e de refutá-las com os recursos cabíveis.
Sob essa ótica, o processo só pode ser identificado como regular e plausível à medida que assegura a possibilidade de argumentação e de contradição, ou seja, de considerações contrapostas aventadas pelas partes, que se empenham para a solução do conflito. Note-se, ademais, que está intimamente relacionado ao princípio do devido processo legal, além do contraditório, o princípio da ampla defesa.
Primeiramente, insta consignar que os princípios do contraditório e da ampla defesa decorrem, também, do supracitado artigo 5º, LV, da Constituição Federal. Ademais, integram de forma expressa o caput do art. 2º, da Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, conforme segue:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência (Brasil, 1999, grifo nosso).
Nesse ponto, há que se salientar que, no caso dos processos administrativos, existe uma diferença dos judiciais, uma vez que o Poder Público não apenas atua como interessado na dilação probatória que os interessados apresentam, mas, também, como parte envolvida.
Malgrado a citada previsão, a ampla defesa é tutelada ainda na Declaração Universal dos Direito Humanos (1948), segundo o comando inserto em seu Artigo 11:
Artigo 11.º.
Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume–se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.
Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido (Organização das Nações Unidas, 1948).
A esse propósito, faz-se mister trazer à colação o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (1969), em seu Artigo 8º, que trata das garantias judiciais, transcrito abaixo:
Artigo 8 - Garantias Judiciais
1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça (Organização dos Estados Americanos, 1969, p. 04).
No estado do Maranhão, na seara administrativa, o processo administrativo está hoje disciplinado pela Lei n° 8.959/2009, que estabelece normas gerais para a elaboração e tramitação dos atos e processos administrativos no âmbito do Poder Executivo do Estado do Maranhão, objetivando principalmente a proteção dos direitos dos administrados e a salvaguarda do interesse público. Na esteira da lei federal, esta também apresenta em seu bojo a necessidade de observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, senão vejamos:
Art. 18. Entre outros requisitos de validade, nos processos administrativos observar-se-ão os princípios da igualdade entre os administrados, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, do interesse público, da publicidade, da motivação, da moralidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da segurança jurídica e da economia processual.
§ 1º Nos processos administrativos, que tramitem no Poder Executivo, sem prejuízo de outros princípios e normas legais, serão observados:
(Omissis)
VII - garantia dos direitos à apresentação de defesas escritas e alegações finais, à produção de provas, ao contraditório e à interposição de recursos nos processos de que possam resultar restrições de direitos ou sanções administrativas (Maranhão, 2009).
Infere-se, portanto, que a violação de princípios e garantias constitucionais leva à nulidade de natureza absoluta nos processos administrativos. Entretanto, a discussão trazida à baila reside na existência, ou não, de norma legal que determine a instauração de “novo” processo administrativo para refutar um cancelamento de Permissão para Dirigir.
3. A prescindibilidade de processo administrativo no cancelamento da Permissão Para Dirigir
O cerne da questão a ser tratada neste artigo cinge-se nas controvérsias acerca da necessidade de instauração de processo administrativo, com direito a contraditório e ampla defesa, no caso de cancelamento da Permissão para Dirigir. A jurisprudência não é uniforme. A doutrina, tampouco.
Historicamente, o contraditório é conceituado com um enfoque na bilateralidade dos atos e termos processuais e na possibilidade de contrariá-los. Contudo, o Código de Processo Civil (2015) brasileiro ampliou este conceito ao fazer denotar que a formação do próprio entendimento do juízo depende da efetiva participação das partes.
Insta ressaltar que o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa é assegurado no processo de autuação das infrações de trânsito e, caso confirmada a consistência e regularidade do auto de infração, a consequência será efetivamente a não obtenção da carteira (em se tratando de inobservância do artigo 148, do CTB).
Por oportuno, destaca-se aqui o Capítulo XVIII (do artigo 280 ao artigo 290A), do CTB de onde é possível extrair as principais determinações legais que vão da exigência de lavratura do auto de infração de trânsito, quando da constatação do cometimento desta, excluindo qualquer traço de discricionariedade a tal ato administrativo, até o encerramento da instância administrativa de julgamento de infrações e suas penalidades.
Ao se debruçar sobre a matéria, o Conselho Nacional de Trânsito, publicou em 28 de março de 2022, a Resolução CONTRAN nº 918, na qual consta expressa previsão de apresentação de defesa da autuação, bem como de recurso contra a imposição de penalidade.
Art. 4º Com exceção do disposto no § 5º do art. 3º, após a verificação da regularidade e da consistência do AIT, o órgão autuador expedirá, no prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da data do cometimento da infração, a Notificação de Autuação - NA dirigida ao proprietário do veículo, na qual deverão constar os dados mínimos definidos no art. 280 do CTB.
§ 2º Na NA constará a data do término do prazo para a apresentação da defesa da autuação pelo proprietário do veículo, principal condutor ou pelo condutor infrator devidamente identificado, que não será inferior a 30 (trinta) dias, contados da data de expedição da NA ou publicação por edital, observado o disposto no art. 14.
Art. 9º Interposta a defesa da autuação, nos termos do § 2º do art. 4º, caberá à autoridade competente apreciá-la, inclusive quanto ao mérito.
§ 2º Caso a defesa prévia seja indeferida ou não seja apresentada no prazo estabelecido, será aplicada a penalidade e expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data do cometimento da infração, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil que assegure a ciência da imposição da penalidade.
Art. 12. A Notificação de Penalidade de multa deverá conter:
IV - a data do término para apresentação de recurso, que será a mesma data para pagamento da multa, conforme §§ 4º e 5º do art. 282 do CTB;
VI - instruções para apresentação de recurso, nos termos dos arts. 286 e 287 do CTB (Conselho Nacional de Trânsito, 2022, grifo nosso).
Dessa forma, é de se perceber da disposição legal retromencionada, que há previsão legal, torne-se a frisar, expressa, de contraditório e ampla defesa no momento inaugural do processo administrativo de trânsito.
Ante o até aqui exposto, o Superior Tribunal de Justiça entende não existir necessidade de abertura de processo administrativo para o cancelamento da permissão para dirigir, visto que a obrigação dos órgãos e entidades de trânsito é assegurar o direito de defesa logo após a autuação e, uma vez concedido tal direito e encerrada a instância administrativa de julgamento, em sendo mantido o auto de infração, o cancelamento da PPD será a decorrência imediata.
À propósito, no julgamento do REsp nº 1.483.845, a Segunda Turma, do Colendo Superior Tribunal de Justiça assim firmou, unanimemente, entendimento sobre a matéria:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PRESCINDIBILIDADE DE PRÉVIO PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA NEGAR EXPEDIÇÃO DE CNH DEFINITIVA.
Não depende de prévio procedimento administrativo a recusa à expedição da CNH definitiva motivada pelo cometimento de infração de trânsito de natureza grave durante o prazo anual de permissão provisória para dirigir (art. 148, § 3º, do CTB). O STJ já se pronunciou no sentido de que o direito à obtenção da habilitação definitiva somente se perfaz se o candidato, após um ano da expedição da permissão para dirigir, não tiver cometido infração de natureza grave ou gravíssima e não for reincidente em infração média, segundo disposto no § 3º do art. 148 do CTB.
Assim, a expedição da CNH é mera expectativa de direito, que se concretizará com o implemento das condições estabelecidas na lei. Havendo o cometimento de infração grave, revela-se desnecessária a instauração de prévio processo administrativo, considerando que a aferição do preenchimento dos requisitos estabelecidos pela lei para a concessão da CNH definitiva se dá de forma objetiva (STJ. Precedente citado: REsp 726.842-SP, Segunda Turma, DJ 11/12/2006. REsp 1.483.845-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 16/10/2014. Informativo nº 0550).
Sublinhe-se que o Precedente no qual se funda a decisão acima, já em 2006, trazia essa ideia de que a concessão do documento definitivo se perfaz em expectativa de direito e não em direito de fato. Portanto, não haveria necessidade de oportunizar ao condutor que este refute um cancelamento de documento fruto de uma análise objetiva dos requisitos dispostos no CTB, consoante a ementa abaixo transcrita:
ADMINISTRATIVO - CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO - CONCESSÃO - MERA EXPECTATIVA DE DIREITO - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO - 1. O direito à obtenção da Carteira Nacional de Habilitação somente se perfaz se, após um ano da expedição da permissão provisória, não houver o candidato, aprovado em exame de habilitação, cometido infração de natureza grave ou gravíssima, ou seja reincidente em infração média, nos termos do § 3º do art. 148 do CTB. Desse modo, a concessão automática da CNH, após o referido prazo, é mera expectativa de direito que se concretiza com o implemento dessas condições estabelecidas na lei. 2. Constatada a ocorrência de infração grave no período da permissão provisória, sem haver questionamentos a esse respeito pelo impetrante, torna-se desnecessária a instauração de processo administrativo para se averiguar a existência ou não do direito para obtenção da CNH, uma vez que o preenchimento dos requisitos estatuídos na legislação são aferidos de forma objetiva. 3. A não concessão da CNH, em razão do disposto no § 3º do art. 148 do CTB, não implica supressão de qualquer direito do candidato, sendo desnecessária a oportunização de ampla defesa. Não há direito a ser defendido; apenas expectativa de direito que não se concretizou. 4. Recurso provido. (STJ, REsp 726.842/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 338).
Entrementes. o especialista em legislação de trânsito, Jullyver Modesto de Araújo, em seu artigo intitulado "Quando se perde o “direito de dirigir”: diferenças entre suspensão e cassação", publicado na Revista Eletrônica CTB DIGITAL, ao examinar a matéria, assim pontuou:
Apesar de existirem recursos cabíveis contra as infrações atribuídas ao condutor permissionário (por ocasião da aplicação das multas), é fato que existem situações de pontuação incorretamente geradas, que somente são constatadas quando da negativa do órgão de trânsito em conceder a CNH definitiva, momento em que o indivíduo atingido deve ter alguma segurança jurídica, para que não seja injustamente punido: a única maneira de se garantir a lisura do procedimento, assegurando-se o direito ao contraditório e à ampla defesa, é conceber o ato denegatório da CNH como representação da imposição da penalidade de “cassação da PPD”, com a instauração do correspondente processo administrativo (Araújo, 2010, grifo nosso).
Em que pese o doutrinador, na tentativa de subsidiar seu entendimento em defesa da instauração do processo administrativo utilize a expressão “cassação da PPD”, inclusive dessa mesma forma, entre aspas, há que se destacar que existem diferenças entre a cassação da CNH e o procedimento de cancelamento da PPD e/ou CNH.
A cassação de CNH é uma das penalidades previstas no rol do artigo 256, do CTB. Encontra-se, ainda, retratada no artigo 263, do mesmo dispositivo legal, conforme segue:
Art. 263. A cassação do documento de habilitação dar-se-á:
I - quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo;
II - no caso de reincidência, no prazo de doze meses, das infrações previstas no inciso III do art. 162 e nos arts. 163, 164, 165, 173, 174 e 175;
III - quando condenado judicialmente por delito de trânsito, observado o disposto no art. 160.
§ 1º Constatada, em processo administrativo, a irregularidade na expedição do documento de habilitação, a autoridade expedidora promoverá o seu cancelamento.
§ 2º Decorridos dois anos da cassação da Carteira Nacional de Habilitação, o infrator poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames necessários à habilitação, na forma estabelecida pelo CONTRAN (Brasil, 1997)
Consoante a inteligência do supracitado artigo tem-se que a cassação é a penalidade mais severa do CTB, vez que retira de forma definitiva, pelo período de dois anos, a licença concedida pelo Estado para que um indivíduo conduza um veículo automotor em todo o território nacional. Assim, somente após transcorrido esse prazo o procedimento de reabilitação, o que envolve a submissão a todos os exames, poderá ser iniciado.
Contudo, para a imposição da penalidade de cassação existe previsão expressa, no CTB, de instauração do processo administrativo que oportunize o exercício da ampla defesa e contraditório, ao condutor:
Art. 265. As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa (Brasil, 1997)
Nessa senda, também o CONTRAN, através da Resolução 723/2018 uniformizou o procedimento administrativo para imposição da penalidade de cassação do documento de habilitação, bem como da de suspensão do direito de dirigir.
Acredita-se que o deslinde da questão envolvendo a cassação da CNH versus o procedimento de cancelamento da PPD fora realizado, pelo CONTRAN, com a publicação da Resolução 723, em 06 de fevereiro de 2018, quando expressamente definiu que a não concessão do documento de habilitação nos termos do §3º do art. 148, do CTB, não caracteriza a penalidade de cassação da Permissão para Dirigir. Entretanto, magistrados de todo o país permanecem utilizando as expressões como se se tratasse do mesmo procedimento.
Nesse diapasão, é oportuno apresentar a partir deste ponto, além da equivocada utilização da expressão “cassação da permissão para dirigir”, o que alguns Tribunais brasileiros trazem de entendimento acerca da prescindibilidade de instauração de processo administrativo para o cancelamento da PPD.
A esse propósito destaca-se o entendimento disposto no Acórdão do Recurso Inominado 0018113-46.2017.8.16.0014, do Tribunal de Justiça do Paraná, a seguir transcrito:
EMENTA: RECURSO INOMINADO. TRÂNSITO. CONDUTOR PERMISSIONÁRIO. HABILITAÇÃO PROVISÓRIA. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO DIANTE DOS REQUISITOS DO ART. 148, § 3º DO CTB. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO. INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. IMPOSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FINDO EM PERÍODO INFERIOR AOS TRÊS ANOS PREVISTOS NA LEI Nº 9.873/99. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL DA PRETENSÃO PUNITIVA. INOCORRÊNCIA DO LAPSO TEMPORAL. POSSIBILIDADE DE ADMINISTRAÇÃO REVER SEUS PRÓPRIOS ATOS. PRECEDENTES TJPR E STJ. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Preenchidos os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso, deve ser ele conhecido. No caso, o recorrente foi autuado durante o período em que possuía habilitação provisória (permissão para dirigir) pela prática da infração prevista no art. 208 do CTB. Aduz que o aviso de necessidade de reabilitação se deu de modo tardio, quando foi realizar a renovação de sua Carteira de Habilitação definitiva. Em suas razões recursais, sua pretensão refere-se a reforma da sentença que julgou improcedentes seus pedidos, ao fundamento de que ocorreu a prescrição intercorrente do § 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99, pois não foi devidamente notificado, bem como, que em razão do Detran/PR ter emitido sua CNH definitiva, gerou direito adquirido, sendo ilegal o ato administrativo que lhe impõe a reabilitação depois de passados vários anos. [...] Consigna-se, que a notificação referente ao aviso de recebimento da cassação da permissão do direito de dirigir (necessidade de reabilitação), retornou como “não procurado” em 08/04/2014 (mov. 18.1 – fl. 9 – AR 651022678BR), [...]. A Administração não atuou de forma arbitrária, haja vista que diante da inexistência de ciência inequívoca do autor acerca da necessidade de reabilitação não aplicou a penalidade desde o período em questão. Na hipótese, conforme exposto, em que pese este não tenha recebido a notificação de “aviso de reabilitação”, anteriormente foi assegurada a dupla notificação para exercer seu direito de defesa, estando ciente o recorrente de que cometeu infração no período em que era permissionário, no qual apenas detinha habilitação provisória, deixando de observar regra básica prevista no art. 148, § 3º do Código de Trânsito Brasileiro, restando evidente que naquele período possuía mera expectativa de direito, não havendo que se falar em direito adquirido. [...] Frisa-se, que é possível à Administração rever seus próprios atos, inclusive de ofício, o que pode ter sido feito no momento da renovação da Carteira Nacional de Habilitação definitiva, quando foi novamente notificado acerca da restrição referente a necessidade de reabilitação. Neste sentido, já se posicionou o Tribunal de Justiça do Paraná: RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO DE LIMINAR. AUTORA ALEGA QUE FICOU IMPOSSIBILITADA DE REQUERER SEGUNDA VIA DE CNH. DESCUMPRIMENTO AO DISPOSTO NO ARTIGO , e DO . AUTORA 148 § 3º 4º CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO PERMISSIONÁRIA DO DIREITO DE DIRIGIR, COMETEU INFRAÇÃO GRAVÍSSIMA DURANTE O PERÍODO DE VALIDADE DE SUA PERMISSÃO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. Recurso conhecido e desprovido. (Processo nº 0067406- 87.2014.8.16.0014/0. 1ª Turma Recursal. Rel. Renata Ribeiro Bau. Julgado em: 12/05/2015). APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM DANOS MORAIS. PRETENSÃO DO APELANTE DE OBTER SEGUNDA VIA DE CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO. MAGISTRADO SINGULAR QUE JULGOU OS PEDIDOS ELENCADOS NA INICIAL IMPROCEDENTES. RECORRENTE QUE COMETEU DUAS INFRAÇÕES, UMA DE NATUREZA GRAVE E OUTRA GRAVÍSSIMA, ENQUANTO POSSUÍA APENAS PERMISSÃO PARA DIRIGIR. FATOS INCONTROVERSOS NOS AUTOS, NÃO NEGADOS PELO CONDUTOR. PERMISSIONÁRIO QUE POSSUI MERA EXPECTATIVA DE DIREITO DE EXPEDIÇÃO DE CNH DEFINITIVA. NÃO CONVOLAÇÃO EM DIREITO SUBJETIVO, ANTE O DESATENDIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS, ESTABELECIDOS NO ART. , DO 148 § 3º CÓDIGO DE . DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO.TRÂNSITO BRASILEIRO ENTENDIMENTO PACIFICADO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA. DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE RETIFICAR SEUS ATOS, PODENDO CORRIGI-LOS INCLUSIVE DE OFÍCIO. PRECEDENTES DESTA CORTE.DECISÃO QUE MERECE SER MANTIDA INCÓLUME.RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (AC nº 1365119-9. 4ª Câmara Cível. Rel. Maria Aparecida Blanco de Lima. Julgado em: 30/06/2015). Inclusive, na mesma linha, já proferiu decisão o Superior Tribunal de Justiça: ADMINISTRATIVO. CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO DEFINITIVA. CONCESSÃO. EXPECTATIVA DE DIREITO. NECESSIDADE DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. , , DO .148 § 3º CTB COMETIMENTO DE INFRAÇÃO GRAVE NA ESPÉCIE. NÃO EXPEDIÇÃO DA CNH. PRESCINDIBILIDADE DE PRÉVIO PROCESSO ADMINISTRATIVO. 1. Discute-se nos autos sobre a necessidade de instauração de prévio processo administrativo para cassação da permissão para dirigir. 2. Sobre o assunto, esta Corte já se pronunciou no sentido de que o direito à obtenção da habilitação definitiva somente se perfaz se o candidato, após um ano da expedição da permissão para dirigir, não tiver cometido infração de natureza grave ou gravíssima, ou seja reincidente em infração média, segundo disposto no § 3º do art. 148 do . CTB Assim, a expedição da CNH é mera expectativa de direito, que se concretizará com o implemento das . Na espécie, segundo o Tribunal de origem, houve cometimento de condições estabelecidas na lei. 3 infração grave no período de um ano da permissão para dirigir, o que impede a expedição da CNH definitiva, sendo desnecessária a prévia instauração de processo administrativo, considerando que a aferição do preenchimento dos requisitos estabelecidos pela lei se dá de forma objetiva. Precedente: REsp 726.842/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 338. 4. Recurso especial não provido - ( REsp 1483845/RS. 2ª Turma. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Julgado em: 16/10/2014) Ante o exposto, o recurso deve ser nos exatos termos da fundamentação, desprovido [...] Ante o exposto, esta 4ª Turma Recursal dos Juizados Especiais resolve, por unanimidade dos votos, em relação ao recurso de AUDER AUGUSTO FELIX DA SILVA, julgar pelo (a) Com Resolução do Mérito - Não-Provimento nos exatos termos do voto. O julgamento foi presidido pelo (a) Juiz (a) Manuela Tallão Benke (relator), com voto, e dele participaram os Juízes Marcelo De Resende Castanho e Aldemar Sternadt. 26 de Fevereiro de 2018 Manuela Tallão Benke Juiz (a) relator (a) (TJPR - 4ª Turma Recursal - 0018113-46.2017.8.16.0014 - Londrina - Rel.: Juíza Manuela Tallão Benke - J. 28.02.2018) (TJ-PR - RI: 00181134620178160014 PR 0018113-46.2017.8.16.0014 (Acórdão), Relator: Juíza Manuela Tallão Benke, Data de Julgamento: 28/02/2018, 4ª Turma Recursal, Data de Publicação: 09/03/2018).
Da jurisprudência colacionada depreende-se que o Egrégio Tribunal paranaense entende que a análise das disposições do § 3º, do artigo 148, do CTB tem natureza objetiva e que, a concessão da Permissão para Dirigir não denota direito adquirido do condutor, mas mera expectativa de direito, sendo condição sine qua non que o habilitado atenda todas as determinações legais para que lhe seja concedida a carteira de habilitação definitiva. Ademais, destaca ainda que é possível (poder dever) à Administração reexaminar seus atos, inclusive de ofício e assim, quando da emissão de um documento de maneira indevida, proceder com seu cancelamento regularmente.
Nessa mesma linha de raciocínio, inclusive cometendo o mesmo equívoco de igualar cancelamento de PPD com cassação de CNH (que traz no artigo 265, do CTB, como já visto alhures, disposição expressa sobre a necessidade de processo administrativo para que ocorra) colaciona-se jurisprudência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo sobre o tema em questão, de cujos argumentos depreende-se que o regramento do devido processo é medida que se impõe sistematicamente à luz dos termos apontados pelo art. 5º, inciso LV, da CF/88. Nela, destaca-se o levantamento da discussão sobre a ordem hierárquica das leis no direito brasileiro, ao indicar que nem expressamente, nem através da hermenêutica jurídica se pode obter e/ou aplicar resultado diverso daquilo que está, efetivamente, disciplinado pela Constituição Federal, que seria o direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.
Vejamos a Jurisprudência:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL AGRAVO DE INSTRUMENTO CANCELAMENTO DE PERMISSÃO PARA DIRIGIR ILEGALIDADES PERCEPTÍVEIS POSSIBILIDADE DE ACOLHIMENTO DO PLEITO FORMULADO IN INITIO LITIS - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Não se afere que a agravante teria sido notificada quanto ao indeferimento de defesa previamente formulada em face do AIT, a fim de que fosse possível a interposição de outros recursos ou se cogitar sobre a aplicação da penalidade de cancelamento da permissão para dirigir em caso de inércia da parte. 2. Na pendência de recurso administrativo pendente de análise revela-se precipitada a postura da autoridade de cancelar abruptamente a permissão para dirigir. 3. Não se detecta juridicidade na manifestação externada pelo agravado que destaca a desnecessidade de procedimento administrativo para fins de aplicação da penalidade de cancelamento da permissão para dirigir, à luz dos termos preconizados pelo art. 5º, inciso LV, da CF/88 e art. 265 do CTB. Precedentes da Corte. 4. Recurso conhecido e provido. Unânime. (TJ-ES - AI: 00085196320188080024, Relator: Walace Pandolpho Kiffer, Data de Julgamento: 03/12/2018, Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: 14/12/2018).
Também entendendo pela necessidade de processo, mas realizando o interessante debate acerca das diferenças entre cancelamento de PPD e cancelamento de CNH, o Desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, do Tribunal de Justiça de Pernambuco discorre sobre o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1194029 AC 2017/0277300-1, cujo relator fora o Ministro Geraldo Og Nicéas Marques Fernandes. No caso em tela, o proeminente Ministro analisou situação análoga, na qual o documento definitivo tivera sido emitido. Ipso facto, o caso não se enquadrava ao precedente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 726.842/SP, julgado em 28/11/2006, cuja relatora foi a Ministra Eliana Calmon, já citado alhures, referente à desnecessidade de abertura de processo administrativo quando do cancelamento do documento provisório de habilitação.
EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. INFRAÇÕES COMETIDAS DENTRO DO PRAZO DE 01 (UM) ANO. PERMISSÃO PARA DIRIGIR CASSADA APENAS QUANDO DA RENOVAÇÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO DEFINITIVA. NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. PRECEDENTE DO STJ. REEXAME NECESSÁRIO DESPROVIDO. APELAÇÃO PREJUDICADA. SENTENÇA MANTIDA. DECISÃO UNÂNIME. 1. [...] 5. A sentença vergastada entendeu que “fazendo uma interpretação sistemática do Código de Trânsito Brasileiro, o art. 148, parágrafo 3º do CTB, percebe-se que o legislador objetivou impedir aqueles condutores permissionários que representassem um risco potencial à segurança do trânsito de obter a CNH definitiva.” 6. [...] 8. No caso em deslinde, o condutor, após ultrapassado um ano da permissão para dirigir, conseguiu obter a sua Carteira Nacional de Habilitação. 9. [...] 12. É certo que a Corte Superior possui entendimento no sentido de ser desnecessária a instauração de procedimento administrativo prévio para o cancelamento da permissão para dirigir. 13. A hipótese, contudo, é diversa, já que “o documento cancelado pelo ente autárquico não se trata de uma permissão provisória para dirigir, mas, sim, de uma Carteira Nacional de Habilitação definitiva, circunstância que afasta o entendimento consagrado de desnecessidade de instauração de processo administrativo”. 14. Precedente: AgInt no AREsp 1194029/AC, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/03/2019, DJe 28/03/2019. [...] 16. Assim, tendo o DETRAN emitido a Carteira Nacional de Habilitação, após o período de um ano da Permissão para Dirigir, deve haver processo administrativo prévio para o cancelamento da CNH definitiva, mesmo tendo havido o cometimento de infração gravíssima na época em que o condutor ainda possuía, tão, somente, a permissão. 17. Desta forma, a sentença merece ser mantida, posto que se encontra de acordo com a doutrina e jurisprudência sobre o assunto. 18. Reexame Necessário desprovido. Apelação prejudicada. 19. Decisão unânime. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos do Reexame Necessário nº 0063745-19.2020.8.17.2001, sendo partes as acima indicadas, acordam os Excelentíssimos Desembargadores que compõem a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco, por unanimidade de votos, negar provimento ao Reexame Necessário, prejudicada a Apelação, na conformidade do voto do Relator, estando tudo de acordo com as notas Taquigráficas, votos e demais peças que passam a integrar este julgado. Recife, data conforme registro de assinatura eletrônica. Des. Erik de Sousa Dantas Simões Relator (TJ-PE - AC: 00637451920208172001, Relator: Erik de Sousa Dantas Simões, Data de Julgamento: 31/01/2023, Gabinete do Des. Erik de Sousa Dantas Simões)
Nesse ponto há que se correlacionar o raciocínio ora explanado com os efeitos das decisões administrativas quando alicerçadas no princípio da autotutela (revisão de seus atos) , disposto na Súmula 473, do STF. Nohara (2011), ao examinar a matéria, adverte que quando a Súmula revela que o desfazimento dos atos da Administração Pública terá efeito ex tunc, significa que, terá caráter retroativo à medida que estes tenham originado direitos derivados de outros inexistentes.
Assim sendo, entende-se que, ainda que a concessão de uma carteira de habilitação definitiva tenha ocorrido, ou seja, que o ato da Administração repercuta no campo do interesse individual daquele condutor, o que por si já faz necessárias todas as garantias do devido processo legal, o poder de autotutela administrativa permite o cancelamento do documento definitivo tendo em vista a inobservância devida no período do documento provisório.
A esse respeito e corroborando-o, insta transcrever o entendimento dos renomados especialistas em legislação de trânsito, Leandro Macedo e Gleydson Mendes (2022), que prelecionam, ad litteram:
Neste caso, o entendimento predominante é o de que a infração tendo sido cometida na PPD, aplica-se a sanção correspondente, que é a perda do documento e o reinício do processo, ainda que tenha se passado alguns anos e a CNH já tenha sido emitida. Os efeitos dessa decisão são ex tunc, ou seja, retroagem à época do fato e todos os atos posteriores são nulos, incluindo a emissão da CNH (Macedo; Mendes, 2022, p. 946).
Em lógica decorrência da citação retro aduzida, conclui-se que os doutrinadores entendem que o cancelamento da CNH deve ocorrer tendo em vista a nulidade de sua emissão após o cometimento de infrações de natureza gravíssima, grave ou da reincidência em infrações de natureza média durante o período da PPD. De modo que, entendem pela prescindibilidade de um processo administrativo específico para o procedimento, levando em conta o conjunto normativo atual.
Guarda sintonia com este entendimento o aresto da 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo colacionado abaixo:
Apelação. Mandado de Segurança. Impetrante, portador de Permissão para Dirigir, que cometeu infração de natureza gravíssima. Fato que está impedindo a emissão da CNH definitiva. Alegação de ilegalidade. Rejeição. Ato da autoridade impetrada que encontra respaldo no artigo 148, § 3º, do Código de Trânsito Brasileiro. Conforme jurisprudência do STJ, "o direito à obtenção da habilitação definitiva somente se perfaz se o candidato, após um ano da expedição da permissão para dirigir, não tiver cometido infração de natureza grave ou gravíssima, ou seja reincidente em infração média, segundo disposto no § 3º do art. 148 do CTB. Assim, a expedição da CNH é mera expectativa de direito". Nesse caso, é "desnecessária a prévia instauração de processo administrativo, considerando que a aferição do preenchimento dos requisitos estabelecidos pela lei se dá de forma objetiva" ( REsp 1.483.845/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 16/10/2014). Posicionamento que deve prevalecer, mesmo diante dos argumentos contrários do impetrante; primeiro, porque é inadmissível o reconhecimento de prescrição da penalidade referente ao AIT n. 1N4432892, nestes autos, em que o órgão autuador (DER) sequer compõe o polo passivo; e, depois, porque o reconhecimento de falta de preenchimento dos requisitos para emissão da CNH não constitui penalidade, daí a inconsistência da alegação de prescrição da pretensão punitiva. Recurso desprovido (TJ-SP - APL: 10029646120228260168 SP 1002964-61.2022.8.26.0168, Relator: Ferreira Rodrigues, Data de Julgamento: 03/10/2022, 4ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 05/10/2022).
Como se vê, a interpretação do julgador é a de que a consequência experimentada por quem comete infração grave, gravíssima ou é reincidente em média no período da permissão será enfrentar a não concessão do documento definitivo ou o cancelamento deste, caso seja emitido. Assevera, ainda, que neste caso, o processo administrativo de trânsito com contraditório e ampla defesa torna-se desnecessário.
Noutro giro, importa trazer ao debate a argumentação da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia que entende pela ausência de lastro legal para o procedimento de cancelamento de uma CNH, através do impedimento de renovação do documento, e exigência de submissão a novo processo de habilitação. A interpretação realizada reside na concepção de que, após a emissão do documento definitivo, sua renovação traduz-se em ato vinculado, uma vez que, apenas quando do ato concessivo da habilitação depois do período de um ano de PPD, exige-se a observância do do artigo 148, parágrafo 3º do CTB.
A propósito:
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C DANOS MORAIS. PRELIMINAR. INTEMPESTIVIDADE. REJEIÇÃO. MÉRITO. NEGATIVA DE RENOVAÇÃO DA CNH, EM VIRTUDE DE INFRAÇÃO COMETIDA NA ÉPOCA DA PERMISSÃO PARA DIRIGIR. ATO ILEGAL. VIOLAÇÃO À SEGURANÇA JURÍDICA. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS. RECURSO DESPROVIDO. [...] Se na época de concessão da CNH definitiva não foi observado a existência de infrações, ou seja, situações impeditivas, conforme previsto no § 3º do art. 148 do CTB, a negativa de renovação mostra-se ilegal e desarrazoada, caracterizando-se em violação à segurança jurídica. Inquestionável a ocorrência de transtornos ao Apelado, que vão além de meros dissabores e aborrecimentos pela conduta do réu, ensejando, assim, a condenação por danos morais, já que tolhido do seu direito de dirigir, vez que teve o seu pedido de renovação da CNH negado, mesmo após a emissão da sua CNH definitiva, sob argumento de cometimento de infração pretérita, no período em que ainda era permissionado. Levando-se em consideração a capacidade econômica das partes, a extensão do dano e o caráter punitivo e compensatório da indenização, entendo adequado o dano moral arbitrado pelo magistrado de piso em R$ 3.000,00 (três mil reais). Recurso Improvido. Sentença Mantida (TJ-BA - APL: 05044852820178050146, Relator: Rosita Falcão de Almeida Maia, Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: 13/05/2020).
Dessa forma, é de se denotar do disposto que a relatora, Ministra Rosita Falcão de Almeida, sobreleva o princípio constitucional da legalidade, segundo o qual ao administrador público apenas é franqueada atuação mediante lei, conforme inteligência do artigo 37 , caput, da Constituição Federal.
Nesse sentido, os entendimentos consubstanciados nos julgados a seguir, ambos prolatados por magistrados do estado do Maranhão, indicam a dificuldade do judiciário maranhense em adequar soluções legalmente satisfatórias aos casos envolvendo possíveis cancelamentos de PPD/CNH.
RESPONSABILIDADE CIVIL - RECUSA DE RENOVAÇÃO DA CNH - ILEGALIDADE - VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA - DANOS MORAIS CONFIGURADOS - RECURSO IMPROVIDO. 1 - Alega o recorrido que foi surpreendido com a negativa de renovação da sua habilitação por conta de uma infração de trânsito cometida em 07/2013, época que ainda estava com a CNH provisória e que foi convertida em definitiva sem qualquer óbice. Na sentença foi determinada a renovação da CNH e o pagamento de indenização por danos morais, e, em sede de recurso, órgão de trânsito pugna pela improcedência da demanda, aduzindo, em síntese, inexistência de ato ilícito e dano indenizável. 2 - No caso presente, é possível constatar que a inicial foi instruída suficientemente de provas, ao passo que o recorrente não trouxe prova suficiente para ilidir a pretensão autoral. Da análise dos autos, depreende-se que a atitude da recorrente em negar a renovação da carteira de motorista do recorrido 5 anos depois da emissão da carteira definitiva e com base em infração cometida no anuênio da carteira provisória, mostra-se abusiva e incorre em grave violação da segurança jurídica, seja porque o órgão de trânsito já havia convalidado a carteira em definitiva, sem qualquer informação sobre multas, seja pela ausência de notificação tempestiva. 3 - Ainda nesse sentido, o Código de Trânsito Brasileiro estabelece no seu art. 263, § 1º que: "Constatada, em processo administrativo, a irregularidade na expedição do documento de habilitação, a autoridade expedidora promoverá o seu cancelamento". Com efeito, ao exame da matéria, fica claro que a verificação de irregularidade do documento de habilitação deve ser precedida de processo administrativo, o que pressupõe o contraditório e a ampla defesa, especialmente neste caso, em que as infrações cometidas pelo recorrido ocorreram quando possuía apenas permissão para dirigir, o que já obstava a concessão da CNH definitiva. Todavia, o ato administrativo seguiu com vício, para somente, depois de transcorrido 5 anos, haver o cancelamento quando da renovação da CNH, sem o devido processo administrativo. 4 - 5 - Sob essa perspectiva, não pode a Administração criar obstáculo para a renovação da CNH do autor, pois fez nascer legítima e legal expectativa de que não havia óbice para a renovação. Essa conclusão é expressão de um princípio jurídico há muito consagrado: venire contra factum proprium , isto é, o ordenamento proíbe o comportamento contraditório, que alguém contrarie a justa expectativa criada por conduta ou pronunciamento anterior. A vedação do comportamento contraditório é decorrente do princípio da boa-fé objetiva e visa impedir que uma das partes, após ter gerado uma expectativa na outra, aja de forma incoerente com a conduta anterior. 6 - Ante o exposto, entendo que a quantia arbitrada a título de danos morais (R$ 2.000,00) não deve ser retirada ou reduzida, pois se mostra adequada às peculiaridades do caso e suficiente para reparar os transtornos causados. 7 - Recurso não provido. Sentença mantida integralmente. Súmula de julgamento que serve de acórdão, nos termos do art. 46, da Lei nº 9.099/95. Custas na forma da lei; honorários sucumbenciais arbitrados em 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação. (TJ-MA - APL: 0581132014 MA 0801246-34.2019.8.10.0048, Relator: Cristiano Régis César da Silva, Data de Julgamento: 12/09/2021, Turma Recursal Cível e Criminal de Chapadinha, Data de Publicação: 22/10/2021).
E ainda,
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C DANOS MORAIS. RECUSA INDEVIDA NA EMISSÃO DA CNH. EXISTÊNCIA DE MULTA POR INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. VEÍCULO CONDUZIDO POR OUTRA PESSOA. AUTUAÇÃO FEITA PELA MUNICIPALIDADE. SISTEMA MUNICIPAL INCOMUNICÁVEL COM O DETRAN/MA. INOVAÇÃO RECURSAL. RESPONSABILIDADE CIVIL CONFIGURADA. DANOS MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. 1. Ao se verificar que os documentos juntados na exordial comprovam, minimamente, que o condutor recorreu do lançamento indevido de multa por infração de trânsito cometida por terceira pessoa, impedindo a emissão da sua Carteira Nacional de Habilitação Definitiva, tendo a Autarquia mantido a recusa em acolher o pedido da parte, cabível a sua responsabilização, nos termos do art. 37, § 6º da CF. 2. A tese devolvida no Apelo, no sentido de que a autuação da multa foi realizada pelo Município de Pinheiro (MA), cujo sistema não se comunica com o da Autarquia de trânsito, não merece acolhida na medida em que esta matéria incorre em inovação recursal, o que é vedado nos termos do art. 1013, § 3º do CPC, que prevê que o Tribunal de Justiça apreciará e julgará todas as questões suscitadas e debatidas nos autos. 3. Não obstante a autuação da infração tenha sido efetuada na cidade de Pinheiro (MA), por agentes públicos vinculados à esta Municipalidade, os documentos colacionados aos autos revelam o seu registro junto ao sistema do DETRAN/MA, inexistindo qualquer comprovação de que esta Autarquia não possa cumprir as determinações contidas na sentença recorrida, de cancelamento e suspensão da multa em nome do Apelado e emissão de sua CNH, em afronta ao art. 373, II do CPC. 4. Considerando o preenchimento dos requisitos para a incidência da responsabilidade civil e as circunstâncias do caso concreto, entendo que deve ser mantida a quantia de R$ 3.000,00 (três mil reais), por estar adequada para recompor os danos morais sofridos pelo Apelado, estando em conformidade com os primados da proporcionalidade e razoabilidade. 5. Apelo conhecido e improvido. 6. Unanimidade (TJ-MA - AC: 00010474320138100052 MA 0170732019, Relator: Ricardo Tadeu Bugarin Duailibe, Data de Julgamento: 19/08/2019, Quinta Câmara Cível, Data de Publicação: 27/08/2019).
Pelo fio do exposto até aqui, percebe-se que as decisões jurisdicionais, em certa medida, tem adotado parâmetros decisórios divergentes, apresentando, mesmo nos casos de similitudes de causas, disparidades nas deliberações, o que pode levar à insegurança jurídica e, em último caso, descrença no Poder Judiciário brasileiro, dadas possíveis imprevisibilidades.
Por essas sumárias razões, e como inicialmente dito, muitas são as controvérsias acerca da necessidade ou não de os órgãos e entidades de trânsito concederem o direito ao contraditório e a ampla defesa ao condutor que haja cometido infrações de natureza gravíssima, grave ou seja reincidente em médias, durante o período de 01 (um) ano de sua Permissão para Dirigir.
Conclusão
À vista do até aqui exposto, entende-se as infrações de trânsito como a inobservância de um comando legal enquanto que as sanções, sejam elas medidas administrativas ou penalidades, constituem-se na imprescindibilidade de repreensão daquele causador da insegurança viária. Ambas, infrações e sanções, são consubstancialmente conexas.
Assim, todos os elementos e deliberações legais remetem à convicção de que o processo administrativo de trânsito tem sido engendrado para “corrigir” de maneira mais célere os infratores. Todavia, a Administração Pública está adstrita àquilo que se encontra manifestamente previsto nas normas jurídicas.
Como visto, o Superior Tribunal de Justiça dedicou-se a estabelecer que, ainda que em seu poder de polícia, à Administração Pública é defeso impor aos administrados quaisquer sanções sem a obediência ao rito do devido processo legal, o que inclui, em se tratando de penalidade de trânsito, desde a escorreita lavratura do auto de infração, passando pela emissão das notificações de autuação e imposição de penalidade e findando com a análise, propriamente dita, da consistência e regularidade do dos autos, em sede de defesa prévia e recurso.
Em linhas básicas, conclui-se que o contraditório e a ampla defesa são essenciais para os processos, sejam judiciais ou administrativos, tendo em vista a garantia do exercício do direito de participação de maneira simétrica entre todos os envolvidos, administrados e Administração Pública, em defesa da segurança viária. Contudo, em se tratando de inobservância ao § 3º, do artigo 148, do Código de Trânsito Brasileiro não existe previsão legal expressa da instauração de processo administrativo.
Destaca-se que, nos termos do entendimento do Colendo STJ estão assegurados o contraditório e a ampla defesa quando da autuação e da imposição da penalidade. Depreendendo-se daí, que o cancelamento da Permissão para Dirigir representa tão somente um desdobramento de uma infração que foi efetivamente cometida e para a qual já fora oportunizada a defesa. Ademais, a instauração de processo administrativo singular e todos os procedimentos afetos a ela onera os cofres públicos se forem contabilizadas as novas notificações, o maior número de servidores dispensados para essa atividade de análise, material de escritório, mais consultas aos sistemas informatizados, etc.
De todo modo, o ponto fulcral do presente artigo reside no confronto e análise das informações contidas nas bibliografias selecionadas com as jurisprudências do Supremo Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais diversos. Nesse sentido, concluiu-se que, em que pese existam grandes desacertos sobre a legislação de trânsito de um modo geral e, em específico, sobre o cancelamento da PPD/CNH e a cassação CNH, a matéria viceja controvérsias profícuas. Algumas delas, ainda que, despretensiosamente, levando a argumentação jurídica para o campo da Hermenêutica e outras, de tão discricionárias, ensejando preocupações com a validade normativa do concreto juízo decisório.
REFERÊNCIAS
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