Cooperação policial nas Américas: Tratado de Brasília e a institucionalização da Ameripol

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A Comunidade de Polícia das Américas (Ameripol), fundada em 2007, é uma entidade de cooperação policial internacional composta por 36 forças policiais de 30 países das Américas, juntamente com 31 membros observadores. A organização ainda precisava consolidar sua estrutura institucional, incluindo a obtenção de personalidade jurídica. Países como Colômbia, México e Brasil sempre desempenham papéis proeminentes na Ameripol. Ela desempenha um papel fundamental no combate aos crimes transnacionais e alcançou reconhecimento formal como organização internacional com o Tratado de Brasília. Essa transformação equipara a Ameripol a entidades de cooperação policial de renome internacional, como a Interpol e a Europol. Cada país membro estabelecerá uma unidade internacional dedicada à interação com a secretaria executiva da organização, fortalecendo sua capacidade de combater o crime organizado transnacional e o terrorismo.

O Tratado de Brasília finalmente concedeu personalidade jurídica internacional à organização, fortalecendo suas ações e institucionalizando suas atividades, com o apoio da União Europeia por meio do Programa de Assistência Técnica "El PAcCTO". A Ameripol atua como uma Comunidade de Polícias das Américas há mais de uma década, promovendo a cooperação policial em informação científica, capacitação e intercâmbio de informações para fins de inteligência. Com esse acordo de cooperação, a Ameripol fortalece sua capacidade de enfrentar desafios de segurança transnacionais na América Latina e promove a cooperação entre as forças policiais da região.

Autores como Slaughter (1997) argumentam que o Estado passa por um processo de desintegração, dando lugar a uma "governança global" e a uma "nova ordem transgovernamental". Isso é relevante para a análise de mecanismos de cooperação policial, como a Ameripol, que envolvem atores não estatais atuando de forma relativamente autônoma em redes de interação.

A expansão da cooperação policial internacional está diretamente ligada ao aumento dos crimes transnacionais (Andreas & Nadelmann, 2006). Isso se deve à necessidade de lidar com atividades ilegais que ultrapassam fronteiras nacionais, como tráfico de armas, drogas, lavagem de dinheiro e corrupção, visando lucro econômico (Williams, 1994). O termo "crimes transnacionais" surgiu nos anos 1970 para descrever atividades criminosas que transcendem as fronteiras nacionais (Roth, 2014). Nesse contexto, a Convenção de Palermo definiu organizações criminosas transnacionais como grupos com três ou mais membros agindo para cometer crimes graves em busca de benefício financeiro.

A globalização facilitou a atuação dessas organizações, aproveitando-se da interdependência global nos movimentos de informações, objetos físicos, ativos financeiros e pessoas (Keohane & Nye, 1971). A comunicação via WhatsApp, por exemplo, é usada por grupos como o PCC para mensagens internas (Manso & Dias, 2018). O aumento do fluxo de objetos físicos, como armas e drogas, dificulta o controle das autoridades, devido à mistura com mercadorias legais (Williams, 1994). Transações financeiras ilícitas se escondem em meio aos intensos fluxos de ativos financeiros. Além disso, o aumento do fluxo de pessoas torna mais difícil a identificação de crimes como tráfico de mercadorias e pessoas (Shelley, 1995).

Em outros termos, a crescente interconexão dos mercados financeiros transformou o dinheiro oriundo de atividades criminosas em um elemento integral da economia mundial. À medida que as organizações criminosas aprimoraram suas estratégias, diversificaram suas atividades, adentrando áreas como lavagem de dinheiro, tráfico de armas, extorsão, corrupção e exploração sexual. Essas operações ilícitas geram quantias significativas de recursos que são posteriormente lavados e inseridos na economia legal por meio de negócios legítimos e complexas operações financeiras, frequentemente envolvendo paraísos fiscais e empresas de fachada (SIENA, 2024).

A expansão dessas atividades ilícitas, impulsionada pela globalização, levou à necessidade de governança internacional na aplicação da lei. O crime organizado, especialmente no mercado de drogas, é um fenômeno global que transformou as dinâmicas criminais em todo o mundo. No Brasil, há um novo paradigma que coloca a prisão como elemento central na análise desse campo. A globalização e as fronteiras flexíveis deram origem a organizações criminosas transnacionais, principalmente no tráfico de drogas, onde a competição é intensa e novos atores surgem rapidamente (Siena & Dias).

A governança é exercida por atores subnacionais conectados em redes, conhecida como "transgovernamentalismo" (Slaughter, 1997). As instituições de cooperação policial, como a Ameripol, fazem parte desse cenário. A cooperação policial multilateral teve seu início em 1851 com a Police Union of German States, mas era frequentemente usada para perseguir movimentos políticos contrários aos Estados anfitriões (Gerspacher, 2008). A International Criminal Police Commission (ICPC) foi estabelecida em 1923, porém, foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial e recriada em 1956 como a International Criminal Police Organization (ICPO-Interpol) (Barnett & Coleman, 2005; Deflem, 2002). A Interpol é a principal organização de cooperação policial global, promovendo assistência mútua entre autoridades policiais e fornecendo treinamento e suporte em investigações (Siena, 2023). No contexto europeu, a European Office of Police (Europol), originada do Acordo Trevi, nos anos 1970, foi estabelecida em 1998 para lidar com crimes transnacionais após a remoção das fronteiras no espaço Schengen (Gerspacher, 2008). A Europol se tornou uma agência da União Europeia em 2010 e oferece informações, inteligência e sistemas de comunicação, focando principalmente no combate ao terrorismo.

Essas organizações de cooperação policial estão em expansão e existem mecanismos semelhantes em todo o mundo (Gerspacher, 2008). Agora, nosso foco se volta para a América, onde o crime organizado transnacional é mais ativo, e esforços semelhantes de governança transnacional têm sido desenvolvidos desde 2007. A América Latina enfrenta altos níveis de violência, com taxas de homicídios três vezes maiores que a média global. A região, que abriga 17 dos 20 países mais violentos, representa apenas 8% da população global, mas é responsável por 33% dos homicídios mundiais (Muggah & Tobón, 2018).

O crime organizado transnacional, incluindo o tráfico de armas, drogas e pessoas, contribui para essa violência, exigindo cooperação regional e internacional para garantir a segurança (Muggah & Tobón, 2018). Desde 2007, A Ameripol tem trabalhado como um mecanismo de governança hemisférica e transgovernamental para combater o crime organizado transnacional. Atualmente, a Ameripol é composta por 33 unidades de polícia e 26 órgãos observadores, incluindo a Interpol e a Europol. A Ameripol atua em quatro áreas principais: educação policial, intercâmbio de informações, cooperação técnico-científica e apoio à investigação criminal e assistência judicial.

A Ameripol tradicionalmente desenvolve atividades de formação e profissionalização das forças policiais, além de promover a troca de informações entre seus membros. Na ‘VI Cúpula da Comunidade de Polícias das Américas (AMERIPOL)’, realizada de 12 a 13 de novembro de 2017, em San Jose da Costa Rica, autoridades de segurança pública também convencionaram pelo fortalecimento da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial (Redppol), um modelo educacional para as polícias. A Redppol, coordenada pela Diretora do Departamento de Segurança Pública e Secretária Interina de Segurança Multidimensional da Organização dos Estados Americanos (OEA), ofereceu o Primeiro Curso Presencial de Capacitação Policial, entre setembro e outubro de 2017, em Honduras desenvolvido e ministrado pela USP, em parceria com a Universidade de Buenos Aires (Argentina), com a Universidade de Georgetown (EUA). Segundo seus organizadores, o referido curso teve por objetivo capacitar policiais dos países integrantes da OEA, além de “promover seminários regionais em prol da cooperação internacional e construir uma rede de intercâmbio de experiências e informações para auxiliar no combate ao crime organizado, na disseminação de boas práticas e na promoção dos direitos humanos”. Em suma, a Redppol foi criada como uma agência de fomento da capacitação policial, buscando conectar as diversas escolas de polícia numa rede de cooperação e intercâmbio de experiências, por meio de cursos de formação presenciais, e organização de seminários regionais e locais. E ainda se propõe a criar uma rede de cooperação e intercâmbio policial, além de conferir certificações internacionais por intermédio de instituições de ensino superior.

Ela também fortaleceu suas relações com organismos internacionais, como a União Europeia, para combater o crime transnacional, especialmente o tráfico de drogas. A Ameripol, como uma instituição que opera em um contexto de crescente interdependência, desempenha um papel importante na promoção da cooperação policial na América Latina (Keohane & Nye, 2012). A organização reúne burocratas de unidades policiais membros por meio de conferências, simpósios e cursos, facilitando potenciais coalizões (Keohane & Nye, 2012). Além disso, a Ameripol desempenha um papel crucial na provisão de informações, o que é fundamental na cooperação policial, onde a informação é frequentemente vista como um fim em si mesma (Axelrod & Keohane, 1985). A organização implementou o Sistema de Informação Policial para a América (SIPA), financiado pela União Europeia, e outros mecanismos para facilitar a troca de informações entre os membros (Keohane & Nye, 2012).

A Rede Anfast, da Ameripol, em pleno funcionamento nas Américas desde 2022, com mais de 40 pontos de conexão em todo o continente, visa facilitar a troca de informações entre as equipes nacionais de busca de fugitivos, permitindo a localização e detenção conjunta de criminosos que cruzam fronteiras para evitar responsabilização criminal. Operando 24 horas por dia, sete dias por semana, essa iniciativa conta com o apoio da União Europeia e busca estabelecer parcerias com organizações internacionais de renome, como a Europol, Interpol e a rede Enfast, para fortalecer a luta global contra o crime. A decisão de implementar a Rede Anfast foi tomada em 2021 durante a reunião do Conselho de Diretores da Ameripol, inicialmente direcionada aos países signatários do Convênio de cooperação policial reforçada contra o crime organizado.

A instituição reduz os custos de transação ao tornar mais conveniente a realização de acordos dentro de seu quadro institucional (Keohane, 2005). O investimento significativo da União Europeia na Ameripol indica que os custos de negociação de acordos dentro da organização são aparentemente baixos em comparação com negociações fora dela (Keohane & Nye, 2012).

No entanto, a Ameripol apresenta algumas deficiências que podem comprometer sua credibilidade e manutenção. Isso inclui desigualdades no engajamento dos membros, o que prejudica o alcance de objetivos comuns (Keohane & Nye, 2012). Além disso, a organização negligencia a questão do tráfico de armas de fogo, apesar de ser um problema significativo na região (Muggah, 2016). A falta de prestação de contas adequada à sociedade também é uma preocupação (Slaughter, 1997).

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Segundo Silva & Monteiro (2022), apesar dos avanços positivos do Brasil em termos de cooperação internacional, é crucial aprimorar a cooperação policial regional do país com as nações das Américas, com foco especial na Ameripol, dada a proximidade geográfica e a necessidade de enfrentar desafios fronteiriços. Além disso, em uma perspectiva futura de cooperação, visando a otimização da tutela jurisdicional, é evidente a necessidade de expandir ainda mais a colaboração do Brasil com a União Europeia, possivelmente por meio de um tratado com a Eurojust.

A Ameripol desempenha um papel importante na promoção da cooperação policial na América Latina, mas enfrenta desafios relacionados ao engajamento desigual, à falta de foco em questões críticas e à prestação de contas limitada à sociedade civil.No dia 9 de novembro de 2023, ocorreu a assinatura do Tratado de Brasília no Palácio da Justiça, a sede do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Esse tratado conferiu personalidade jurídica internacional à Comunidade de Polícias das Américas (Ameripol), estabelecendo-se como um mecanismo essencial de colaboração e intercâmbio de informações entre as forças de polícia e segurança dos países do continente americano.

A Ameripol, uma entidade de cooperação policial internacional na América, desempenha um papel importante na promoção da cooperação entre forças policiais da região para combater crimes transnacionais. No entanto, seu contexto de atuação é influenciado pela história da cooperação policial na América Latina, que inclui eventos como a Escola das Américas e a Operação Condor.

A Operação Condor, também conhecida como Plano Condor, foi um sistema de cooperação entre os serviços de inteligência de seis países da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Essa cooperação era clandestina e tinha como objetivo controlar opositores das ditaduras militares que estavam no poder na região. A repressão envolveu sequestros, torturas e assassinatos, principalmente contra aqueles considerados de esquerda. Os Estados Unidos tiveram um envolvimento indireto nesse processo, fornecendo apoio logístico e conhecimentos.

É importante destacar que a Escola das Américas, localizada no Panamá e operada pelo Exército dos Estados Unidos, desempenhou um papel significativo no treinamento de militares latino-americanos, incluindo técnicas de tortura. Essa escola contribuiu para a disseminação de práticas repressivas e a cooperação entre os serviços de inteligência na região.

Portanto, ao analisar a Ameripol e sua cooperação policial na América Latina, é essencial considerar o contexto histórico da cooperação policial na região, marcado por episódios como a Escola das Américas e a Operação Condor. Esses eventos influenciaram a dinâmica da segurança e da cooperação policial na América Latina e destacam a importância de promover uma cooperação compatível com os valores democráticos contemporâneos, respeitando os direitos humanos e fortalecendo as instituições democráticas.

Referências:

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Sobre o autor
David Pimentel Barbosa de Siena

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Atualmente é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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