Desafios da LAI e LGPD no equilíbrio entre acesso, proteção, produção e difusão de documentos sensíveis na Inteligência de Segurança Pública

22/09/2024 às 07:38
Leia nesta página:

INTRODUÇÃO

A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), representa um avanço significativo na promoção da transparência no setor público brasileiro. Seu principal objetivo é garantir o direito de acesso a informações públicas, salvo as exceções que visam proteger dados sigilosos relacionados à segurança nacional, à defesa do Estado e a investigações criminais. Em contraponto, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018, foi promulgada para assegurar a proteção dos dados pessoais e a privacidade dos indivíduos. Ao estabelecer regras rigorosas para o tratamento de dados pessoais, a LGPD impõe desafios práticos para os operadores de inteligência de segurança pública, que devem conciliar o sigilo das informações sensíveis com os direitos de proteção de dados.

Adicionalmente, a falta de regulamentação clara nos estados da federação sobre as autoridades responsáveis pela classificação de documentos, conforme a LAI, agrava essa situação. A ausência de uma autoridade classificadora formal dificulta a adequada categorização de documentos de inteligência, criando uma zona cinzenta que compromete o tratamento de informações operacionais. Diante desse cenário, o presente texto tem como objetivo geral identificar as dificuldades reais enfrentadas pelos operadores de inteligência de segurança pública na interface entre a LAI, a LGPD e a gestão de informações sensíveis.


LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E A CLASSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS

A LAI estabelece um marco regulatório para garantir a transparência nas ações da administração pública, determinando o direito de acesso a informações públicas, salvo exceções previstas em lei, como a proteção de dados classificados. No entanto, sua aplicação no âmbito estadual enfrenta desafios, sobretudo pela ausência de regulamentação em diversas unidades da federação para definir as autoridades competentes para classificar documentos.

O artigo 24 da LAI trata da classificação de documentos em três níveis de sigilo: ultrassecreto, secreto e reservado, com prazos de restrição de acesso variando conforme a natureza do documento, in verbis 1 :

Art. 24. O acesso a informações classificadas como sigilosas fica restrito, independentemente da classificação, às autoridades que tenham competência legal ou judicial para requisitá-las e às pessoas que, em razão de suas atribuições, necessitem conhecê-las.

§ 1º. A classificação do sigilo de informações no âmbito da administração pública observará os seguintes prazos máximos, contados a partir da data de sua produção:

I - Ultrassecreto: 25 (vinte e cinco) anos;

II - Secreto: 15 (quinze) anos; e

III - Reservado: 5 (cinco) anos."

Além disso, a LAI também protege atos relacionados a documentos preparatórios, que são aqueles elaborados com vistas à tomada de decisões ou à produção de informações. Esses documentos são considerados de caráter sigiloso, pois sua divulgação pode comprometer a estratégia e a eficácia das atividades de inteligência como um gestor de segurança pública por exemplo.

No entanto, em diversos estados da federação, falta uma regulamentação que defina claramente quem são as autoridades classificadoras desses documentos. Isso gera uma incerteza na classificação de informações sigilosas, especialmente em relatórios de inteligência (RELINT’s), que podem conter dados sensíveis e que, sem a classificação adequada, ficam vulneráveis a pedidos de acesso. Situações como pedidos de habeas data2 por desclassificação de candidatos excluídos em seleções de critérios de investigação social — mesmo quando não respondem a ações penais ou têm condenações transitadas em julgado — também evidenciam a necessidade de uma regulamentação mais clara. Além disso, pedidos de acesso à informação podem ser feitos por jornalistas e cidadãos via ouvidorias de estado, complicando ainda mais a questão da proteção das informações.


PROTEÇÃO DE DADOS NOS SETORES DE INTELIGÊNCIA

A LGPD foi criada para garantir a privacidade e a proteção de dados pessoais dos cidadãos. Seu impacto no setor público, particularmente em operações de segurança e inteligência, é significativo, uma vez que essas atividades envolvem frequentemente o tratamento de informações pessoais sensíveis. A legislação impõe que o tratamento de dados siga princípios de necessidade, adequação e finalidade, conforme descrito no artigo 6º da LGPD, in verbis 3 :

Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:

I - Finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades;

II - Adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento;

III - necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento;

IV - Livre acesso: garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais;

[...]

IX - Segurança: utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão."

Neste sentido explicitado, a LGPD coloca desafios adicionais para os operadores de inteligência de segurança pública, uma vez que eles devem lidar com dados pessoais de forma controlada e segura, em conformidade com a lei, enquanto buscam manter a confidencialidade necessária para suas operações.


DESAFIOS DA CLASSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS NOS ESTADOS DA FEDERAÇÃO

Um dos principais obstáculos para a aplicação efetiva da LAI no contexto de segurança pública é a ausência de regulamentação nos estados da federação sobre as autoridades classificadoras. A LAI prevê que autoridades competentes devem definir a classificação dos documentos, mas muitos Estados ainda não regulamentaram adequadamente quem pode assumir essa função. Sem a definição clara dessas autoridades classificadoras, os operadores de inteligência enfrentam dificuldades em determinar quais informações podem ou não ser classificadas como sigilosas. Essa ausência de regulamentação cria um vácuo que pode resultar na divulgação de informações sensíveis, colocando em risco investigações e a segurança pública.


A DIFICULDADE DE TRATAR DOCUMENTOS COMO "ACESSO RESTRITO”

Além da falta de regulamentação sobre autoridades classificadoras, outro desafio comum na segurança pública é o uso de “acesso restrito” para documentos como RELINT’s. (Relatórios de Inteligência). Embora essa categoria seja amplamente utilizada na prática, não há previsão formal de “acesso restrito” na LAI, o que agrava ainda mais a insegurança jurídica dos operadores de inteligência. Os RELINT’s, que frequentemente contêm dados pessoais sensíveis e informações estratégicas, são tratados como “acesso restrito” para evitar a divulgação de informações que possam comprometer operações em curso. Contudo, essa prática, sem respaldo normativo claro – apenas tratado através de portarias, a exemplo da portaria nº 880/20194 – MJSP, o que regulamenta apenas assuntos internos do Ministério da Justiça e Segurança Pública - coloca os operadores de inteligência em uma situação vulnerável perante a LAI e a LGPD.

Ademais, os chamados relatórios técnicos na doutrina de inteligência muitas vezes expõem conteúdos de RELINT’s e podem acabar sendo utilizados em processos criminais. Nesses casos, o agente de inteligência, como subescritor do relatório, pode ser intimado a prestar depoimento, o que coloca em risco a confidencialidade das informações e a integridade das operações de inteligência.


LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E AS HIPÓTESES DE TRATAMENTO

A LGPD, no artigo 7º, define as hipóteses legais em que o tratamento de dados pessoais é permitido. No contexto de segurança pública, a hipótese mais aplicável é o **inciso III**, que trata do uso compartilhado de dados pela administração pública para a execução de políticas públicas. In verbis:

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"Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

III - pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres, observado o disposto no Capítulo IV desta Lei."

Isso significa que, no contexto da segurança pública e da inteligência, o tratamento de dados pessoais é permitido desde que justificado por políticas públicas e respaldado por lei ou regulamento. No entanto, a falta de regulamentação sobre o uso do “acesso restrito” para proteger documentos como RELINT’s cria uma situação de incerteza legal.

A ausência de regulamentação sobre as autoridades classificadoras afeta diretamente a capacidade dos operadores de segurança pública de proteger informações sensíveis. Sem autoridades formalmente designadas, a classificação de documentos de inteligência, como RELINT’s, fica comprometida, aumentando o risco de pedidos de acesso indevidos ou inadequados.

Além disso, a falta de uma estrutura regulamentar adequada nos estados prejudica a uniformidade na aplicação da LAI, criando um cenário em que operadores de inteligência não sabem ao certo como aplicar a lei para proteger documentos sigilosos.


CONCLUSÃO

A ausência de regulamentação sobre autoridades classificadoras e o uso informal de "acesso restrito" na segurança pública evidenciam os desafios enfrentados pelos operadores de inteligência ao aplicar a LAI e a LGPD. Sem um amparo normativo claro, a classificação e a proteção de documentos sensíveis, como RELINT’s, ficam comprometidas.

A problemática dos relatórios técnicos e sua eventual utilização em processos criminais coloca em risco a integridade das operações de inteligência e a confidencialidade das informações tratadas.

A regulamentação dessas práticas, tanto na esfera federal quanto estadual, é essencial para garantir que as informações sensíveis possam ser adequadamente protegidas, sem violar os direitos de acesso à informação e à proteção de dados pessoais, conforme exigido pelas legislações vigentes.


FONTES

AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA. Doutrina da Atividade de Inteligência. Disponível em: https://www.gov.br/abin/pt-br/centrais-de-conteudo/doutrina/Doutrina-da-Atividade-de-Inteligencia-2023. Acesso em: 21/09/2024.

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Dispõe sobre a acessibilidade à informação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 nov. 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 21/09/2024.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 21/09/2024.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria nº 880, de 12 de dezembro de 2019. Regulamenta o acesso e tratamento de informações e documentos. Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/legislacao-arquivistica/portarias-federais/portaria-no-880-de-12-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 22 set. 2024.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. O que é a LGPD. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/servicos/lgpd/o-que-e-a-lgpd. Acesso em: 21/09/2024.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Habeas data. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/habeas-data. Acesso em: 21/09/2024.


Notas

1 BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Dispõe sobre a acessibilidade à informação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 nov. 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 21/09/2024.

2 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Habeas data. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/habeas-data. Acesso em: 21/09/2024.

3 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 21/09/2024.

4 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria nº 880, de 12 de dezembro de 2019. Regulamenta o acesso e tratamento de informações e documentos. Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/legislacao-arquivistica/portarias-federais/portaria-no-880-de-12-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 22 set. 2024.

Sobre o autor
Thelson Takeshi Iseki Kumagai

Graduado em Matemática pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2008). Bacharel em Segurança Pública pela Universidade Estadual da Paraíba -Policia Militar da Paraíba (2011); Graduação em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul - São Paulo (2013); Major da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul; Pós-Graduado Latu Sensu em Ciências Jurídicas pela Universidade Cruzeiro do Sul - São Paulo (2013); Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Escola de Direito do Ministério Público (2019). Doutorando em Ciências Jurídicas - Universidad del Museo Social Argentino (UMSA) -Buenos Aires (2021)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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