Neste artigo, vou analisar a decisão da justiça de permanência de um militar da Força Aérea Brasileira (FAB) na localidade onde está lotado para cuidar de seu filho diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA), demanda uma abordagem criteriosa da legislação brasileira, em especial daquela que rege as Forças Armadas e os direitos individuais e familiares.
Inicialmente, é importante destacar que a movimentação de militares, conforme previsto na Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980 - Estatuto dos Militares, é uma prerrogativa das Forças Armadas, visando atender às necessidades do serviço e às exigências operacionais. O art. 58. do referido Estatuto estabelece que a designação para o serviço ou o desempenho de função militar se fará independentemente da vontade do militar, ressalvadas as exceções previstas na própria lei ou em regulamentação específica.
Contudo, a mesma legislação e outros dispositivos legais e constitucionais prevêem a possibilidade de conciliação entre os interesses do serviço e os direitos individuais e familiares dos militares. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, assegura à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à convivência familiar e comunitária, além do acesso à saúde e à proteção contra qualquer forma de negligência e discriminação.
No caso específico do militar e seu filho com TEA, a análise jurídica deve considerar a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Esta Lei, em seu art. 9º, assegura que a pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento prioritário, sobretudo com relação à saúde, educação, trabalho, moradia, cultura, esporte, lazer, transporte, acesso à justiça, e outros serviços que sejam essenciais para o pleno desenvolvimento de sua autonomia e integração social.
Ademais, a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelece, em seu art. 3º, inciso II, que é direito da pessoa com autismo o acesso a ações e serviços de saúde, inclusive terapia multidisciplinar adequada às suas necessidades, bem como o acesso à educação e à assistência social.
No tocante à jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outros tribunais têm reconhecido a necessidade de ponderação entre os deveres inerentes à carreira militar e os direitos fundamentais dos militares e de seus familiares, especialmente em casos que envolvem questões de saúde e bem-estar familiar. Decisões judiciais têm considerado legítima a permanência de militares em determinada localidade quando evidenciada a necessidade de tratamento de saúde de dependentes, com base no princípio da proteção à família e à saúde, previstos na Constituição Federal.
Portanto, a fundamentação legal para a permanência do militar em Brasília, dadas as circunstâncias particulares apresentadas, encontra respaldo no Estatuto dos Militares, na Constituição Federal, no Estatuto da Pessoa com Deficiência, na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, além de ser reforçada por precedentes jurisprudenciais. A conciliação entre os interesses do serviço militar e os direitos do militar e de seu filho, neste caso, mostra-se não apenas legalmente possível, mas também necessária para a garantia do bem-estar da criança e do direito à saúde, à convivência familiar e à proteção integral.
Continuando a análise do caso em tela, é imprescindível destacar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, III, da Constituição Federal, que serve como fundamento para a interpretação das normas que regem os direitos e deveres dos militares e de suas famílias. Este princípio, ao ser aplicado ao caso concreto, reforça a necessidade de se garantir as condições adequadas para o tratamento e bem-estar do filho do militar, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Adicionalmente, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 4º, estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Assim, a decisão judicial que permite a permanência do militar em Brasília, ao lado de seu filho, está alinhada a esses princípios, garantindo a proteção integral da criança, conforme preconiza o ECA.
No que tange ao direito à saúde, a Constituição Federal, em seu art. 196, afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A permanência do militar em Brasília, portanto, garante o acesso contínuo do filho ao tratamento multidisciplinar especializado, essencial para o seu desenvolvimento e saúde mental, em conformidade com o mandamento constitucional.
A Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, alterada pela Lei Complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, em seu art. 15, permite a transferência de militares por necessidade do serviço, mas não exclui a possibilidade de se considerar situações excepcionais que justifiquem a permanência em determinada localidade por razões de saúde de dependentes, compatibilizando, assim, os interesses da administração militar com os direitos fundamentais dos militares e de seus familiares.
É relevante mencionar também a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que devem orientar a interpretação das normas jurídicas e a atuação da administração pública. A decisão de manter o militar em sua lotação atual, dadas as circunstâncias excepcionais apresentadas, respeita esses princípios, evitando-se medidas desproporcionais que poderiam comprometer o direito à saúde e à convivência familiar do filho do militar.
Além disso, a jurisprudência dos tribunais superiores tem se mostrado sensível a casos semelhantes, reforçando o entendimento de que a administração pública deve agir de forma a garantir não apenas o interesse público, mas também proteger os direitos fundamentais dos indivíduos, especialmente quando envolvem questões de saúde e de proteção à família. Essa orientação jurisprudencial contribui para solidificar a base legal e doutrinária que ampara a decisão favorável ao militar, assegurando a permanência na localidade de lotação para o tratamento de seu filho.
Portanto, a análise jurídica do caso demonstra que a decisão de garantir a permanência do militar em Brasília, para que seu filho possa continuar recebendo o tratamento especializado necessário, encontra amparo em um conjunto robusto de normas legais, princípios constitucionais e precedentes jurisprudenciais. Tal decisão reflete a necessária harmonização entre os deveres inerentes à carreira militar e os direitos fundamentais dos militares e de seus familiares, especialmente em situações que envolvem cuidados especiais de saúde de dependentes.
Em síntese, o caso analisado reafirma a importância de se considerar os direitos à saúde, à convivência familiar e à proteção integral da criança e do adolescente, em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, quando da tomada de decisões relacionadas à movimentação de militares. A proteção desses direitos fundamentais, conforme demonstrado, deve prevalecer, sempre que possível, sobre as necessidades de serviço, garantindo-se, assim, o bem-estar dos dependentes dos militares e o respeito aos princípios que regem a atuação da administração pública.
Fonte: Tribunal Regional Federal da 1ª Região