Juiz de garantias: debate sobre o sistema acusatório.

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26/09/2024 às 16:55
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  1. JUIZ DE GARANTIAS: DEBATE SOBRE O SISTEMA ACUSATÓRIO BRASILEIRO

    1. Gestão da prova: a vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias e da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento

O juiz não pode ser o gestor da prova, cuja produção deve ficar por incumbência das partes. O juiz deve ser imparcial e respeitar o contraditório e a ampla defesa24. Afinal, conforme obtempera Aury Lopes Jr:

“É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juizator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu. Portanto, incompatível com a matriz acusatória constitucional.”25

Já no modelo inquisitivo a função judicial é incompatível com a imparcialidade, o que coloca em segundo plano o contraditório e a ampla defesa, na busca ilimitada da verdade real26. O imputado como já é exposto é mera –RES- coisa/objeto da investigação e, não sujeito de direitos, a mercê de um juiz inquisidor que estará disposto a extraí-la a qualquer custo. 27

Enfim, ou a tarefa probatória torna-se ônus das partes e se está diante do modelo acusatório ou do juiz e se está diante do modelo inquisidor.

Na mesma linha Aury Lopes Jr. descreve a necessidade do procedimento do duplo juiz:

“São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça. [...]”28

Por isso, o magistrado não poderá decidir de ofício já que estará usurpando a função do delegado e do promotor de justiça. Logo, conforme o art. 3-A do CPP não pode agir de ofício dependendo de provocação para zelar pela regularidade da investigação por ser o destinatário das diligências.

De um lado, parte da doutrina admite que, de forma subsidiária, e exclusivamente durante a fase processual da persecução penal, possa o juiz determinar a produção de provas pertinente com o fim de dirimir duvidas relevantes. Então se adota o princípio da busca da verdade e do sistema da persuasão racional do juiz. Em suma, não é permitido que o juiz se substituísse às partes quanto à produção das provas.

O juiz deve atuar com imparcialidade nos moldes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como dispõe seu art. 8,I do Decreto Lei 678/92. Porquanto, se agir de forma contrária além de ferir o sistema acusatório, haverá evidente comprometimento psicológico com a causa. Admitida à produção probatória de ofício no curso do processo penal o juiz deve proporcionar a participação das partes e de se manifestar sobre a prova produzida ou produzir contraprova. Além disso, impõe-se o dever de fundamentar sua decisão sobre a necessidade e urgência da produção de prova de ofício29.

A primeira corrente afirma que os poderes instrutórios do juiz não são incompatíveis com a imparcialidade do julgador. Juiz ativo não é sinônimo de juiz parcial. Por isso, Marco Antônio de Barros adverte:

"a imparcialidade do juiz não exclui seu poder dever de buscar a verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma contrariedade de perfeitamente possível compatibilizar a imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio e em consonância com os ditames legais.”30

É por causa disso que no processo penal o juiz tem o dever de buscar a verdade, o que legitima a atividade jurisdicional penal. No mesmo sentido observa Antônio Scarance Fernandes:

“[...] não se deve mesmo retirar do juiz o poder probatório, pois não há porque impedi-lo de, para seu convencimento, esclarecer alguns aspectos da prova produzida pelas partes ou a respeito de algum dado probatório vindo aos autos.” 31

Por outro lado, parte da doutrina critica sob a alegação que, independente do momento da persecução penal a atuação de ofício viola tanto o sistema acusatório quanto à imparcialidade do juiz. Entende que se o juiz da instrução tomar uma decisão de ofício favorável a quaisquer das partes, restará vinculado a esta decisão.

Nesse sentido Geraldo Prado:

“a busca das provas da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por mais grave que possa parecer o delito, compromete a imparcialidade daquele que vai decidir [...]”, pois “pelo menos do ponto de vista psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua inserção na mencionada atividade implicará certo grau de comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial. “32

Vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatória

É evidente que o juiz não está impedido de agir na fase investigatória. Porém, esta atuação depende da provocação das partes. Na fase pré-processual deve o magistrado agir somente quando provocado, agindo como garante das regras do jogo. Assim como previsto na Exposição de motivos do Código Modelo para Ibero-América “o bom inquisidor mata ao bom juiz ou ao contrário, o bom juiz destrua ao inquisidor”.

Por isso, prever o art. 3-A do CPP que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Portanto operou-se revogação tácita dos artigos 156 I e II do CPP nos termos do art. 2º, parágrafo 1º da Lei de introdução às normas do direito brasileiro. 24. O dispositivo omitiu sobre a substituição da atuação probatória da defesa, mas é evidente que não deve substituir a defesa, pois o processo penal não permite ao juiz agir como advogado do réu.

O objetivo desse dispositivo em combinação do Art. 3-D é coerente e, caminha na direção correta da teoria de SCHUNEMANN ao tratar da Teoria da Dissonância Cognitiva. Essa teoria em apertada síntese defende que o fato de um juiz analisar os atos da investigação e receber a denúncia gera uma imensa contaminação. Logo, não é recomendável que seja o mesmo juiz a participar da instrução e julgamento. Até porque, na nova sistemática, o juiz da instrução não deve ter contato com atos da investigação preliminar. 33

O art. 3-D reforça essa ideia porque determina que o juiz que atuar na investigação na forma das competências dos artigos 4 e 5 do CPP ficará impedido de atuar no processo. Esse dispositivo consagra lição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O juiz que atua na fase de investigação preliminar é um juiz contaminado, que não pode julgar. É, portanto causa de prevenção que culmina na exclusão e não de fixação de competência. Em vista disso, aqui seria uma prevenção de exclusão de competência, de impedimento de o mesmo juiz atuasse da investigação ao julgamento. 34

Então, a regra prevista na Lei 13.924/2019 para o futuro é a irrestrita separação entre a atividade jurisdicional exercida, funcionando o recebimento da denúncia como marco divisório entre as duas fases da persecução penal.

  1. Aplicação nos procedimentos processuais penais

    1. Competência originárias dos tribunais

O risco que se busca evitar no primeiro grau não existe nos tribunais. Ainda que o relator atue nas duas etapas já que na fase de julgamento é por órgão colegiado de forma plural.35

A garantia da imparcialidade é atributo pessoal de cada julgador e não guarda relação com o fato de o julgamento ser colegiado ou não. O devido processo não relativiza a garantia da imparcialidade. Se em primeiro grau existe discussão acerca das varas de um único juiz, nos tribunais inexiste esse problema. Afinal, no órgão colegiado se aquele que atuou na fase pré-processual como juiz de garantias está impedido de participar do julgamento.

Caso tenha 3 (três) magistrados como no nas Câmaras e Turmas Criminais, basta convocar um desembargador e promover o rodízio. 36

Não há impedimento a aplicação do juiz das garantias aos tribunais, não apenas quando atuarem como instancias recursais, como também nos casos de foro por prerrogativa de função. A imparcialidade como já mencionado deve restar garantida em segunda instância. Inclusive, ubi eadem ratio ibi eadem jus, é dizer, onde existe a mesma razão, há de existir o mesmo direito. Por isso, é de se reconhecer a aplicação da figura do juiz de garantias nos tribunais, sob pena de evidente violação do princípio da isonomia.

Afinal, o mesmo procedimento aplicado aos juízes de piso é aplicado na segunda instância sem maiores problemas. Isso porque, basta respeitar a regra proposta de quando o relator proferir alguma decisão que repercutir no status libertatis do investigado ficará impedido de funcionar na instrução e no julgamento na segunda instância, assim como previsto no art. 3º-D, caput do CPP. 37

Tribunal do júri

Há corrente que defende que o juiz de garantias não deve ser observado no procedimento do júri. Argumentam que os jurados estão separados do juiz da instrução e por ser órgão plural representa maior credibilidade e imparcialidade. 38Entretanto, não é porque o conselho de sentença é um órgão de colegiado que por si só é sinônimo de imparcialidade.

Porém, há casos que o juiz decide sobre autoria e materialidade. A primeira, quando encerra a fase de prelibação julgando o réu inimputável e aplicar a sanção penal (absolvição imprópria), profere decisões sobre medidas cautelares, pronuncia, impronuncia e absolvição sumária. Já na segunda fase, no plenário do júri o juiz presidente pode decidir sobre desclassificação. Por causa dessas razões que o instituto deve incidir no rito do júri. 39

Destarte, conclui-se que aqui também, considerando o procedimento bifásico dos crimes dolosos contra a vida o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 3º-B ficará impedido de funcionar como juiz sumariante ou como juiz presidente no plenário do júri. 40

Procedimento da Lei de Proteção contra violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei 11.340/2006

Por causa da especialidade do magistrado que atua nesse procedimento há corrente que não defende sua introdução. Além disso, pelo receio de que a cisão por dois juízes possa prejudicar o conhecimento da dinâmica da agressão. Porém, a Lei 13.964/19 só veda o juiz de garantias na Lei 9099/95 e não na Lei Maria da Penha. 41

Todavia, o afastamento do instituto não pode ser considerado o causador da lentidão do Poder Judiciário. Inclusive, a cisão das fases não tem o condão de afastar os juízes competentes de conhecer toda a dinâmica da agressão. Ao contrário essa cisão está em coerência com a justificativa da criação do instituto, qual seja evitar pré-juízos e preservar a originalidade cognitiva. Ademais, pela carga emocional características das demandas de violência doméstica é que deve ser inserido o sistema de duplo juiz. 42

Aliás, apesar da violência doméstica contra a mulher ser desprezível não pode ser admitido o afastamento do instituto com o objetivo de tolher garantias e direitos fundamentais aos autores desses delitos. Caminhando, assim, perigosamente rumo a um direito penal do inimigo de Guinter Jakobs. 43

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Nos juizados especiais criminais

A Lei 13.964/2019 veda o instituto na Vara dos Juizados Especiais Criminais expressamente no art. 3-C do CPP. Nos Juizados Especiais Criminais não há necessidade do juiz de garantias porque o procedimento é célere. Aliás, o processo é orientado pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. 44A aplicação do instituto pode comprometer a finalidade dos Juizados sobre o critério da celeridade.

Outro ponto relevante, é que no JECRIM a fase pré-processual é curta através da assinatura do Termo Circunstanciado na Delegacia pelo investigado e, por conseguinte o encaminhamento ao juízo. Portanto, a originalidade cognitiva do magistrado não é violada nesse procedimento, sendo a função do juiz do processo equidistante a fase investigativa. Afinal, por ser um procedimento encurtado o juiz não é contaminado por qualquer atuação na primeira fase.

Tampouco, haverá prisão cautelar como a temporária, preventiva ou imposição de prisão em flagrante. 45

No tocante a Turma Recursal Criminal dos juizados, o rodízio é uma alternativa plausível e, sem maiores problemas. Como também, o advento da tecnologia da informação facilita a aplicação do instituto caso necessário.

Funções reservadas ao juiz de garantias

O presente tópico não tem o objetivo de esgotar o assunto sobre todas as funções previstas nos artigos 3-A a 3-F do CPP, mas somente aquelas que representam maior impacto no sistema acusatório. Vejamos os principais artigos e incisos.

VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

Reforça o direito ao contraditório e a cultura da audiência pública e a importância da oralidade para o debate sobre a decisão de manutenção ou não de medida cautelar.

Art. 3-B, VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral.

Nessa hipótese, fica claro que o juiz não poderá decidir de ofício já que estará usurpando a função do delegado e do promotor de justiça. Portanto, deve dialogar com o Art. 3-A CPP e jamais agir de ofício, zelando em cada provocação pela regularidade da investigação por ser o destinatário dos pedidos de diligências.

Não se admite como já mencionado alhures a produção antecipada de prova de ofício pelo juiz, assim encontra-se tacitamente revogado o art. 156, I do CPP. A prova como regra deve ser produzida na fase processual, na audiência de instrução e julgamento. Se presente a necessidade o juiz marcará uma audiência pública e oral, possibilitando o contraditório. Toda a audiência deverá ser registrada e gravada em vídeo e, por fim é aplicável a Súmula 455 do STJ. 46

  1. prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

Neste caso, o inquérito policial e o P.I.C. do ministério público poderão ser prorrogados por até 15 dias, uma única vez, se a investigação não for concluída, a prisão será relaxada. O legislador adotou o sistema de prazo com sanção. 47

O inciso não se refere ao indiciado solto. Todavia, para o preso na justiça estadual operou-se um conflito de normas dentro do próprio CPP. O art. 3-B parágrafo 2º, manda concluir em 15 dias, admitindo uma prorrogação. De acordo com o princípio da posterioridade a norma posterior revoga a anterior, por causa disso, esse artigo uniformiza o prazo para as duas instâncias na Justiça comum Estadual e Federal.48

  1. determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

Interessante inovação foi à possibilidade de o juiz de garantias trancar o inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento. Nesse caso, o trancamento será possível quando nos moldes da decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no AgRg no HC 656.638/SP, decidiu que o trancamento da ação penal pela via do habeas corpus somente é viável em situações excepcionais, quando for possível a comprovação, de plano, da inépcia da denúncia, da atipicidade da conduta ou da superveniência de causa extintiva da punibilidade.

Então, o juiz trancará a investigação inclusive de ofício, por ser o guardião da legalidade desta fase. 49

Nesse ponto, discordamos porque até mesmo nessa hipótese deve ocorrer a provocação do interessado, sob pena de desrespeitar a finalidade do instituto. Isso porque, além de contrariar a sua essência de não substituir as partes nos aspectos decisórios ocasionaria violação a isonomia com o juiz da fase processual. Afinal, este não pode proferir decisões de ofício senão provocado, a não ser para revogação de prisão cautelar e conceder habeas corpus de ofício.

Por isso, existe razão na doutrina que defende que essa decisão deve ser interpretada como habeas corpus de ofício, desafiando, consequentemente, reexame necessário50, conforme art. 574, I CPP51. Outra questão importante é saber se cabe habeas corpus sobre ato próprio? A primeira corrente entende que em nenhuma hipótese, poderá o juiz ou tribunal conceder habeas corpus contra seu próprio ato, de acordo com a Súmula 102 das Mesas de Processo da USP. Já a segunda corrente admite, é dizer, é dever de o juiz corrigir seu próprio erro.

Em conclusão, é importante reforçar que o juiz não deva jamais decidir de ofício como se infere de uma interpretação sistêmica, lógica e teleológica, notadamente dos incisos XI e XII, pela qual é provocado a decidir sobre requerimentos de medidas restritivas de direito e o habeas corpus do oferecimento da denúncia, bem como de todo o instituto de modo geral.

XI - decidir sobre os requerimentos de:

  1. interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

  2. afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

  3. busca e apreensão domiciliar;

  4. acesso a informações sigilosas.

As duas últimas alíneas são genéricas e até mesmo em contrariedade com a jurisprudência recente do STF. Na hipótese da alínea “d” o Fisco dependeria de autorização judicial para encaminhar elementos de informação sigilosa ao MP. Disposição que está em desacordo com a decisão do STF no RExt 1.055.941 de 04/12/2019. 52Já a alínea “e” é mais genérica ainda, posto que nem toda restrição a direito fundamental demande autorização judicial. Assim, só faz sentido quando envolver matéria que exija prévia autorização judicial. 53

XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

Se o magistrado entender que não é caso de acordo, devolverá os autos ao MP para analise de complementação das investigações ou oferecimento da denúncia, conforme parágrafo 8º. Mas e se o MP discordar do juiz e insistir no ANPP já assinado? O CNMP recomenda que a solução deva ser dada pelo órgão superior do MP, de acordo com a Resolução 181/17. De forma contrária a nova lei dispõe que a solução é do próprio judiciário que deve recusar a homologação, paragrafo 7º, desafiando Recurso em sentido estrito, ex vi art. 581, XXV CPP.

Essa regra é inconstitucional por violar o sistema acusatório e a independência do Parquet. 54

Malgrados o entendimento divergente de Aury Lopes Jr que defende a aplicação deste inciso, sugerimos a aplicação por analogia do art. 28. do CPP55 conforme a Súmula 696 do STF56.

XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399. deste Código;

Há corrente que defende a ideia que caso não ocorra absolvição sumária ao imputado e ratificar o recebimento da denúncia o juiz deverá remeter os autos para o juiz do processo para que este marque a audiência de instrução e julgamento nos moldes do art. 400. e seguintes do CPP57. Essa interpretação serve para facilitar a marcha processual em adaptação ao art. 399. do CPP58.

Entretanto, não parece ser a melhor solução. O melhor seria após o término da investigação o juiz de garantias remeterem a denúncia ou queixa ao juiz do processo para que decida sobre o recebimento ou não. Dessa forma não será afetado sistema acusatório, mas irá reforçar ainda mais a divisão de tarefas entre os dois juízes. Isso porque, o juiz das garantias também está suscetível a ter vínculo psicológico com as decisões na fase investigativa que podem contaminar sua imparcialidade. É evidente que não é somente o juiz do processo que está suscetível a violar a imparcialidade e comprometer a originalidade cognitiva.

Portanto, para dar efetividade ao sistema de duplo juiz e preservar a originalidade cognitiva, o juiz do processo que deve decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa. Haja vista, não ter tido qualquer contato com a fase investigativa e, não ter proferido quaisquer decisões.

§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias

Tratam da exclusão física dos autos do inquérito. É uma técnica utilizada na Espanha e na Itália, eliminando dos autos que formarão o processo penal todas as peças da investigação preliminar, com exceção do corpo de delito e das provas antecipadas. Essa exclusão serve exatamente para evitar a contaminação do juiz pelos elementos obtidos no inquérito sem a observância do contraditório. 59

Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.

Este dispositivo consagra lição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que juiz que atua na fase de investigação preliminar é um juiz prevento, contaminado, que não pode julgar, pois a prevenção é causa de exclusão da competência. 60

Ocorre como já argumentado acima que o juiz de garantias pode ter sua imparcialidade viciada por decidir sobre o status libertatis do investigado, e também por ter contato diretamente com as provas produzidas no inquérito. Assim, para ser justa, pelo menos a decisão sobre o recebimento deve ser do juiz do processo. Destarte, melhor demarca o sistema de doble juez e preserva a originalidade cognitiva de ambos. Isso porque, enquanto o juiz de garantias, que tem contato diretamente, deve ficar privado de receber a denúncia, o juiz da instrução por não ter contato diretamente com o inquérito policial estará mais apto a decidir sobre o recebimento da peça acusatória.

Sobre o autor
Gabriel Peon Diniz Pires

Especialista em Advocacia Criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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