Estudar a Constituição de 1934 é sempre um exercício de idealização por se tratar de uma carta política de vigência diminuta, não tendo tempo efetivo de implantação dos seus preceitos, o que para alguns aspectos é uma lástima, mas para outros, um alívio.
Por falar em brevidade temporal e elementos antagônicos, Bonavides e Andrade adjetivaram-na como “dúbia” por tentar acomodar, no mesmo espaço jurídico, passado e futuro, almejando conciliar, por exemplo, “de um lado, um liberalismo insuspeito, herdeiro das formulações de 1891”; “por outro lado, uma forte tendência centralizadora”. Ambivalências também ganharam lugar no disciplinamento constitucional da cultura, como adiante se verá [1].
Em termos mais estritos, a cultura foi localizada no Título V, designado “Da Família, da Educação e da Cultura”, composto de dois Capítulos, sendo o primeiro “Da Família” e o outro a reunião “Da Educação e Da Cultura”. Curioso notar que esses assuntos eram tratados de forma autônoma, pois o Título IV ocupava-se “Da Ordem Econômica e Social”.
A regra mais genérica sobre a cultura foi inserida no Art. 148, para definir que cabia “à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual” [2]. Neste aspecto, no capítulo dedicado aos direitos e garantias individuais, a Constituição estabelecia que “aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de reproduzi-las. Esse direito transmitir-se-á aos seus herdeiros pelo tempo que a lei determinar” (Art. 13, item 20).
Em termos de liberdades culturais, no Art. 113, item 9, constava que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela fórmula que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do poder público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social”. Vê-se que a censura era institucionalizada e, por óbvio, se intensificava “na iminência de agressão estrangeira, ou na emergência de insurreição armada”, casos em que abrangia também a “correspondência de qualquer natureza, e [as] publicações em geral”, inclusive as do poder público federal que versassem sobre “medidas de caráter militar” (Art. 75).
Relativamente ao sistema de distribuição de competências, o Art. 10, III, atribuía “concorrentemente à União e aos Estados: proteger as belezas naturais e os monumentos de valor históricos ou artísticos, podendo impedir a evasão de obras de arte”. Quanto ao município, havia a norma de serem “organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”, cabendo-lhes se beneficiarem do “imposto sobre diversões públicas” (Art. 13).
A grande vedete dos direitos culturais em sentido amplo, porém, era a educação, anunciada como “direito de todos e [que] deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no país, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana” (Art. 149).
Malgrado, tão bela construção normativa, ela anulava-se diante da competência comum atribuída a todos os entes da federação para, por meio de leis próprias, “estimular a educação eugênica” (Art. 138, b), ideia esclarecida por Nicola Matteucci, nos seguintes termos: “a eugenia (ou higiene racial) que há de servir para combater a degeneração racial e para melhorar a qualidade da raça” [3].
Tão aterradora ideia, que Arnaldo Godoy percebe espalhada em vários dispositivos constitucionais (prova de sanidade física e mental de nubentes – Art. 145; luta contra os “venenos sociais” – Art. 138, g, entre outros [4]), contrária às noções de liberdade, diversidade e dignidade, nasceu da influência intelectual de nomes como Oliveira Vianna, cujo pensamento pode ser sintetizado no último parágrafo do livro “Raça e Assimilação”, em que a simples transcrição contemporânea (com adaptação à ortografia corrente) não pode ser feita sem que se sintam arrepios:
Que os estudos do passado e as investigações dos arqueólogos assinalam a existência de grandes centros de cultura nas regiões centrais da África, é o que não ponho em dúvida; mas que estas civilizações sejam criações da raça negra é o que me parece contestável. Não sei se o negro é realmente inferior, se é igual ou mesmo superior às outras raças; mas julgando pelo que os testemunhos do presente e do passado demonstram, a conclusão a tirar é que, até agora, a civilização tem sido apanágio de outras raças que não a raça negra; e que, para que os negros possam exercer um papel civilizador qualquer, faz-se preciso que eles se caldeiem com outras raças, especialmente com as raças arianas ou semitas. Isto é: que percam a sua pureza [5].
Tal pano de fundo ideológico se aproxima do macabro, pois ao cabo almeja, pelo método da miscigenação como política pública (o que abre a porta para os demais, todos escusos), a extinção das pessoas não arianas ou semitas e, em consequência, das suas culturas. Isso adverte eloquentemente que mencionar a cultura em normas jurídicas nem sempre corresponde a defendê-la como bem ao mesmo tempo universal e dotado de pluralidade, persistindo válida a advertência tantas vezes cantada em tempos insanos: “é preciso estar atento e forte!” [6].
Notas:
[1] BONAVIDES, Paulo e PAES DE ANDRADE. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Edições, 2004, p. 326.
[2] Constituição34 (planalto.gov.br)
[3] NICOLA MATTEUCCI. Racismo. Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cascais. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, lª ed., 1998, p. 1061.
[4] Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. A CONSTITUIÇÃO DE 1934 NO CONTEXTO DA HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO. Revista Jurídica Cesumar. jan./abr. 2017, v. 17, n. 1, p. 181-211.
[5] OLIVEIRA VIANNA. Raça e Assimilação. 3ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 285.
[6] GIL, Gilberto, VELOSO, Caetano. Divino Maravilhoso. Letra de música.